O Monte Namúli
(Zambézia, Moçambique)
Fotos: Algumas são minhas, outras daqui.
As
Flores de Frangipani
Há muitos, muitos anos, a Zambézia era uma terra selvagem, quente de origens, onde nasciam fontes de águas mornas e perfumadas, onde a terra era tão fértil que as mais pequenas sementes podiam dar frutos e as montanhas se cobriam de um véu glaucomatoso todas as manhãs. Para que o céu só se mostrasse depois de todos estarem bem acordados para o poderem contemplar... Numa dessas montanhas, a que haveria de se chamar Namúli, o primeiro homem surgiu na bruma de uma madrugada, coberto de capim e de folhas, germinado nas raízes mornas de um embondeiro. E, depois de um urro de alvoradas, que só não faz parte da história porque ainda não estava lá mais ninguém para ouvir, olhou com espanto aquele céu de paraíso, agradeceu a Muluku, Deus dos antepassados, e desceu avidamente em direção à planície, começando a espalhar a sua semente pelo mundo.
Nessa terra verde, no coração de África, ainda a
criação divina não estava completa, nasceu anos depois, um menino de olhos
negros como a terra mais fértil, e cabelo crespo, como os irreverentes ramos de
um embondeiro. Era um menino com o coração doce e a cabeça cheia de aventuras,
a quem chamaram Trovão. A sua companheira de infância era uma menina terna, de
olhos azuis, transbordantes de futuros, e cabelos perfumados, cujo nome
seria Rosa, se nessa terra existissem rosas ou alguém já tivesse sonhado com flores
delicadas. Por isso lhe deram o nome das flores mais doces das árvores mais
altas, porque o seu perfume só poderia vir do céu. O seu nome era Frangipani,
mas todos lhe chamavam Gigi, como o som do seu sorriso.
Gigi e Trovão corriam felizes pelas montanhas,
trepavam ao cume do monte Namúli, comiam as bagas mais doces dos arbustos
espinhosos e construíam, entre segredos e gargalhadas, pequenas cabanas de
paus e de folhas, onde mal cabiam deitados e entrelaçados um no outro. Era lá
que se deixavam ficar em silêncio, na hora do calor, contemplando o céu pela
abertura no teto que Gigi queria manter descoberta a todo o custo, para
que o céu não lhe fugisse dos olhos e para sentir, nos dias de chuva, o sabor redondo
do sol. Por vezes, nos dias em que o calor se demorava e a terra estava
mais húmida e fértil, o próprio chão se entranhava entre os dois e criava
raízes, como pontes entre um e outro. E era quase difícil despegarem-se,
vestidos da mesma pele.
Os meninos foram crescendo, os dentes de leite
foram caindo e eles enterravam-nos no chão da cabana, onde, pouco a pouco, se
foi formando uma gruta, revestida a raiz de embondeiro. Mas, à medida que os meninos cresciam,
aqueles momentos de silêncio e cumplicidade foram-se tornando cada vez mais
raros. Já todos sabemos, mas eles não tinham quem lhes dissesse, e só depois
poderiam vir a descobrir, que na infância, a dada altura, há uma magia que
se quebra, uma gargalhada que se suspende, toda uma vida que se torna
memória... E no dia em que enterraram o último dente de leite, cada um seguiu o
seu caminho, porque desde que o mundo é mundo, para crescer é preciso
afastar-se da casa onde que se cresceu... Para se poder amadurecer
e depois poder amar e querer gerar vida...
Gigi e Trovão desceram do Monte Namúli e
cresceram em direções opostas, até que um dia, na planície se reencontraram.
Ele tornara-se um homem enorme, com a face e o peito cobertos de pelos, das
raízes do embondeiro que se lhe entranharam na pele nas longas tardes da sua
infância. Os olhos quentes continuavam doces e cheios de aventuras. Gigi
crescera para se tornar numa mulher linda, mas os olhos, outrora de céu, eram
agora olhos azuis de mar. As raízes do embondeiro cresciam no seu ventre,
secando-o por dentro. E o mar, que sonhava que um dia lhe cresceria no ventre,
para depois jorrar vida, só nos olhos lhe crescia todos os dias. E deles
transbordava todas as noites. Nos seus olhos já não se viam futuros por causa daquele
mar morto no seu ventre, onde só existia sangue e lodo…
(continua...)
Sem comentários:
Enviar um comentário