A Casa do Gaiato de
Maputo (a capela, os meninos, o refeitório e o berçário para as crianças
desnutridas da aldeia mais próxima).
(Boane, Maputo)
Em 2003, era ainda estudante de Medicina quando parti pela primeira vez para Moçambique em voluntariado. Já contei muitas vezes estas histórias, mas nunca contei a história do surto de sarampo que por lá aconteceu na minha estadia. Não é, de facto, algo que goste de recordar... Mas também nunca pensei, confesso, que a haveria de contar nestas circunstâncias, em plena ameaça de surto de sarampo no nosso país...
Há mais de 10 anos, no meu hospital, quando o diretor perguntou a todos os internos mais novos se alguém já tinha visto um caso de sarampo fui a única a levantar a mão. Os meus colegas olharam-me com curiosidade, meios incrédulos. "Onde?", perguntaram. "Vi mais de 100 casos em Moçambique. Em Portugal nunca." "Ah", responderam, "em Moçambique está bem."
Foi ali, em Boane, próximo da barragem dos Pequenos Libombos, a 50 km de Maputo, que conheci Moçambique... Foram os encantos de primeira vez em África. Na Casa do Gaiato, com o Padre Zé Maria, a Irmã Quitéria, a tia Cármen, a D. Virgínia, de quem já vos falei, e os meninos mais adoráveis que alguma vez tinha conhecido e que viviam no orfanato... Rendi-me a eles no primeiro dia, em que me vieram adornar a mesa-de-cabeceira com uma flor selvagem que crescia numa casca de coco, "para titia sentir o cheiro da terra antes de dormir". Se me pedissem uma só prova de que é possível crescer e que vale a pena investir em Moçambique, eu saberia o que responder.
Era no centro de saúde, a 5 km da Casa do Gaiato, que começavam os meus dias. Depois do mata-bicho* com os meninos, o António, um dos mais velhos, que já tinha carta de condução, ia levar-me ao centro de saúde através de uma picada fabulosa, quase desaparecida por uma vegetação rasteira de savana seca a perder de vista, e onde, a espaços, emergiam as micaias, as árvores que eu amo desde o primeiro dia, com os seus espinhos e a sensação de serem as únicas sobreviventes no meio da secura atroz da planície.
Eu
ia à frente no machibombo**, ao lado do António. Os meninos que não
tivessem aulas nesse dia também iam connosco atrás, para ajudarem em pequenas
tarefas do centro de saúde: encarregavam-se da inscrição dos doentes, ver
temperaturas, medir tensões arteriais, varrer o pátio, ajudar os doentes a
perceber como se tomava a medicação.
Um dia vieram-me mostrar um menino que estava muito doente. Era filho de um professor da escola da aldeia. Tinha 8 meses e não parava de tossir. Prostrado. Não mamava e não aceitava comer mais nada. Tinha os olhos injetados, o nariz congestionado e, desde essa manhã, tinha-lhe aparecido um exantema (borbulhas). Não era fácil ver o exantema, dada pigmentação escura do bebé, mas à luz via-se perfeitamente que as borbulhas lhe cobriam todo o corpo. A história fez-me soar os três C do livro de microbiologia (cough, coryza and conjunctivitis). Procurei o sinal de Koplik, inequívoco, diziam os meus livros, patognomónico, dizia a minha professora.
Peguei na lanterna e procurei pequenos grãos de sal na mucosa junto aos dentes molares... Estavam lá, de facto, mas eram muito mais pequenos do que eu tinha ideia. "Como grãos de sal" lembrava-me eu das aulas da faculdade. Mas... só se fosse sal de mesa e não sal de cozinha, ocorreu-me... Ai, valesse-me Nossa Senhora dos aflitos, então o menino estava ali doentíssimo, prostrado, quase sem respirar e eu com dúvidas se o sinal de Koplik era do tamanho de grãos de sal de mesa ou de sal de cozinha?! Mas como era possível? No meio da savana uma dúvida existencial deste calibre... Mas tinha de ir esclarecer a dúvida. Não tinha outro meio de diagnóstico. Não havia net móvel em Moçambique. Muito menos banda larga ou satélite para me valer do meu Santo António do Google. Fui à sala onde tinha deixado os meus livros, que por sorte tinha levado nesse dia. E lá estava: "like table-salt grains". Era mesmo sarampo, caramba!
Mas o menino, Ângelo era o seu nome, apesar de filho de um professor e de uma funcionária do centro de saúde, estava ligeiramente desnutrido. Tinha nascido com baixo peso e os pais, apesar de terem um salário que os mantinha ligeiramente acima do limiar da pobreza, comiam carne apenas duas vezes por semana e muito poucas verduras e fruta. O preço destes géneros alimentares, luxuosos em Moçambique, era abolutamente proibitivo para eles. Mas era uma alimentação manifestamente insuficiente para uma grávida, já mãe de quatro filhos mais velhos. Para agravar a situação o bebé ainda mamava quase exclusivamente e a diversificação alimentar apenas começara no mês anterior...
Estava com febre. O teste da malária foi positivo, infelizmente, compondo o quadro. Prescrevi-lhe tudo o que pude que o pudesse ajudar: antibiótico para a pneumonia óbvia, broncodilatador, antimalárico, polivitamínico, vitamina A em dose gigante. E uma solução de reabilitação nutricional. Os olhos do pai escureceram quando leu "desnutrição ligeira" na ficha do filho: "Nós damos tudo o que podemos, mas a comida é muito cara..."
- Eu sei, pai...
Foi difícil tratá-lo nestas circunstâncias. Eu fiquei horas à cabeceira do menino, com medo que me morresse ali mesmo... tenho sempre a fantasia de que se não arredar pé dali, a morte não se atreve a ir buscá-los. O menino melhorou lentamente. Veio novamente no final da minha estadia para se vacinar. Já tinha 9 meses. E o pai perguntou-me então:
- Lá em Portugal também há sarampo?
- Não, senhor professor, lá em Portugal não há sarampo.
- Mas como? Vacinam os meninos à nascença? Aqui em Moçambique só se vacina aos 9 meses.
- Não, em Portugal vacinamos aos 15 meses [Em 2003 o Programa Nacional de Vacinação era mais otimista do que agora e a nossa cobertura vacinal ainda maior...]
- Afinal?! Então como não têm sarampo?
- Todas as pessoas estão vacinadas. Não há sarampo em Portugal!
Os olhos dele brilharam, como se lhe tivesse confirmado que o paraíso existia na terra:
- Gostava de conhecer Portugal, Doutora. Deve ser um país lindo...
- Ora, professor, lindo é Moçambique! - respondi.
Mas nas semanas que mediaram estes dois episódios, tive alguns dos piores dias da minha estadia. A mãe do Ângelo tinha-o levado dias antes do seu agravamento à enfermaria das crianças desnutridas. Tinha lá ido levar umas roupinhas que já não lhe serviam para oferecer às mães dos bebés desnutridos. O filho tinha ido com ela, obviamente, às suas costas na capulana...
Já estão a imaginar o que aconteceu naqueles dias... O pior surto que já vi, entre os meninos mais vulneráveis de todos. O Padre José Maria ia desesperando... tanto esforço humano e económico para reabilitar aquelas crianças e uma doença maldita vinha agora dizimá-las. Ainda assim tivemos "apenas" 10% de mortalidade! E digo "apenas" porque o que dizem os livros é mortalidade de 50% em crianças desnutridas. Era essa a taxa de mortalidade no Hospital Central de Maputo... Ainda sei de cor, passados estes anos todos, o nome dos meninos que não resistiram apesar dos nossos esforços naqueles dias negros...
Foi preciso ir a Maputo comprar mais antibióticos e mais antimaláricos e mais polivitamínicos e mais não sei quantos medicamentos para reforçar a reserva que quase se esgotou nos dois primeiros dias. Foi difícil convencer os responsáveis do distrito de que era necessário vacinar de emergência todas as crianças que ainda não tinham sido vacinadas. Demorou semanas a conter o surto... Mas graças ao esforço de todos, o surto apagou-se, tal como veio...
Mas ainda nem posso acreditar que ontem uma adolescente foi ligada a um ventilador no meu hospital por esta mesma doença, anacrónica e maldita!
:(
ResponderEliminarTendo vivido isso de perto, ainda deve ser mais difícil ver e aceitar este surto em Portugal, perfeitamente evitável...
Obrigada.
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