And now for something completely different!
Disclaimer: este post não tem qualquer propósito científico, não pretende ser informativo, muito menos provocativo e a investigação de que resulta não foi de maneira nenhuma sistemática.
Estou hoje aqui, compondo um dos posts mais improváveis da minha vida de médica que já esteve em missão, para vos falar do conhunho, uma doença africana, sobre a qual apenas ouvi falar em Moçambique (nas províncias da Zambézia e Nampula) e que adquiriu nos últimos tempos uma relevância especial, quando saiu uma notícia num Jornal Nampula referindo que o Governador se encontrava doente, não podendo por isso participar nas cerimónias de inauguração de um Centro de Saúde.
No número seguinte, em jeito de fofoca política, vários jornalistas obviamente defensores d' O Partido vieram acusar os delactores do Governador de o terem difamado dizendo que este padeceria de conhunho. E perguntam vocês, meus queridos amigos, o que é o conhunho? Será uma doença assim tão infame que um governador honesto não a possa ter? Foi isso, pelo menos, que eu perguntei.
E envio-vos, a este propósito, a resposta de uma enfermeira amiga minha que se encontra a fazer voluntariado em Nampula sobre o que seria o conhunho. Apreciem, pois o produto de uma aturada e sistemática investigação no terreno (espero que se divirtam):
"Comecei a ouvir as queixas do ekhunyunyu (conhunho, em makuês!) nas comunidades onde aos domingos ia com os Missionários de S. João Baptista, participar nas eucaristias e ajudar nas consultas às comunidades.
Debaixo do cajueiro ou no alpendre onde se improvisava o espaço para atender os paroquianos, enquanto o padre procedia às Confissões, as mamãs diziam-me “Irmã, sofro de conhunho!”. E apontavam para a zona abdominal. Vinham os papás “Irmã, tenho hérnia!” e apontavam para zona inguinal ou genital. Aparecem os mais jovens “Irmã, tenho conhunho aqui na minha perna!”. Volta outra mamã idosa e diz “Irmã, o meu mal é o conhunho”, apontando para a coluna. Na “consulta”, ainda outros contavam que comendo manga verde aparecia logo o conhunho, ou então referiam que se os papás queriam de facto evitar o conhunho nada de ao mata-bicho comer papaia verde ou banana-macaco!
O que me explicaram é o conhunho seria "uma espécie de hérnia", o que para mim a princípio me pareceu ser uma queixa genérica de tumefacção dolorosa, frequentemente abdominal ou inguinal, cujo tratamento passaria por repouso e medicamentos que actuassem sobre o aparelho gastrointestinal, sobretudo anti-obstipantes. Como eu estava enganada!
Depois de várias semanas, meses com esta falsa ideia, comecei a tentar averiguar o que seria, então, esta entidade nosológica junto de várias pessoas, as irmãs, os seminaristas, os alunos, os voluntários, os enfermeiros, a população… Apresento-vos então, em resumo, o produto das minhas mais recentes investigações. São depoimentos de quem já padeceu, padece ou, de uma forma ou de outra, vê a sua vida afectada pelo conhunho:
- "O conhunho é uma espécie de vírus, que entra por uma parte do corpo, e acaba por se propagar ao resto do organismo." (Manifestamente uma doença multissistémica!);
- "O conhunho manifesta-se com dor e a pessoa que já teve o conhunho antes, sabe que é esta doença outra vez a manifestar-se." (Ou seja, uma doença crónica ou recidivante...);
- "Quem trabalha duramente na machamba, pode sofrer de conhunho na muthana (coluna)." (Também pode, portanto, ser agravada pelo esforço físico.);
- "Uma vez sofrendo de conhunho, a pessoa sofrerá para toda a vida." (Incurável, como qualquer doença crónica que se preze);
- "O conhunho quando se fixa no corpo de uma pessoa definitivamente, aloja-se nos testículos do homem e na bexiga da mulher." (Oh, diabo, até pode ser multissistémica, mas comporta-se como uma DST! Lembrem-se que isto em África é, em termos sociais, um handicap praticamente equivalente a ter uma doença alojada no coração ou no cérebro, já que a reprodução é a única função que confere estatuto social...);
- "Os saltos nas picadas e a ingestão de batata doce e papaia ao mata-bicho são causas de conhunho, podendo fazer com que ele saia." (Quê?!);
- "Pode provocar vómitos, diarreias e cólicas abdominais." (Manifestações predominantemente gastrointestinais);
- "Existe uma historia de um casal que quase se divorciou por causa do conhunho. Na partilha dos bens comuns não se conseguiu dividir o conhunho do marido, adquirido durante o casamento. Logo em reunião familiar, os dois não se puderam separar, já que o conhunho não se divide..." (Lá está, o impacto sócio-familiar da doença crónica!);
- "As temperaturas mais baixas fazem “subir” o conhunho nos homens. E então para o conhunho “descer” é preciso aquecer as temperaturas do corpo. Para o povo é um problema sério! Logo dias frios são dias de conhunho!" (De onde forçosamente se conclui que ainda bem que em Portugal não há conhunho!)
Estas são algumas ideias sobre a entidade que afecta a vida de muitos moçambicanos que conheço e que se cruzam comigo. Agora cada vez que me surge alguém com conhunho tento perceber ao máximo tudo sobre a queixa do doente e neste momento julgo que o conhunho será algo entre a doença orgânica e a doença tradicional. (Para quem não está familiarizado, uma doença tradicional resulta de uma zanga dos antepassados com um indivíduo que quebrou um qualquer tabu - o que na Europa seria como que uma doença neurótica ou uma perturbação somatoforme. Tenho um amigo que vive há 10 anos em Moçambique que chama com muita graça "Escrúpulos" às doenças tradicionais!).
Quem já aqui esteve e já contactou com esta entidade saberá que ela afecta extensamente a vida de um povo, de modo que as actividades laborais e escolares e a sua imagem social ficam prejudicadas por esta doença que não tem cura. … enfim continuarei a minha tentativa de saber mais sobre este ekhunyunyu!!!"
P.S. - Será que mais alguém ouviu falar sobre esta doença?
Sem comentários:
Enviar um comentário