Esta tarde, estava eu pela segunda vez na consulta de Neurologia com uma adolescente de 15 anos chamada Érica Vanessa* que vinha referenciada do Centro de Saúde por suspeita de crises epilépticas desencadeadas por situações bizarras... Mais uma, pensei... daquelas que vêm em trânsito para a Pedopsiquiatria, só para excluir definitivamente uma doença orgânica e que têm alta quase directamente para o divã dos psis. Aliás, estava-se mesmo a ver desde o princípio que este nome improvável não augurava nada de bom.
E então de que mal padecia a menina? A pobre criatura desmaiava em cima da mesa da cozinha quase todas as manhãs à hora do pequeno-almoço, sobretudo em dias de testes (ah...) e, mais bizarro ainda, desmaiava frequentemente ao telefone quando a mãe lhe pedia para chamar um taxi para levar o pai ao aeroporto quando este ia viajar em trabalho - era um homem de negócios, muito ligado à filha, que viajava frequentemente (um ah maior de admiração...).
Mas quando fomos fazer uma prova de sugestão, que é um procedimento altamente científico ;), em que injectamos soro fisiológico na veia e lhes mentimos com quantos dentes temos dizendo que o soro é um medicamento para provocar crises, porque só assim podemos saber o tipo de crises que elas têm, ela não teve crise nenhuma.. Estranho... geralmente caem que nem umas patinhas... E se olhássemos bem para o electroencefalograma, ela tinha alguns focos de epilepsia...
E então, depois de muito pensar, depois de muito investigar, o que é que tinha a menina? Só hoje pudemos confirmar.
No dia da primeira consulta colocámos a hipótese de epilepsia reflexa, que é um tipo muito raro, provocado por estímulos súbitos. Mas quando tentámos desencadear uma crise com barulhos (desde lançar o Simpósio ao chão - e asseguro-vos de que o Simpósio lançado ao chão faz um estrondo desgraçado - até rebentar um balão) também não conseguimos. Até que a mãe se lembrou: "Só se for quando eu fecho a tampa do caixote do lixo... Por acaso até já tinha reparado e pensado nisso, mas parecia-me tão absurdo..."
Mas nós já estávamos por tudo... e, mal acreditando no que estava a dizer, pedi-lhe "Traga, então, o caixote do lixo na próxima consulta." Só por vergonha não acrescentei "... mas não diga a ninguém que fui eu que disse isto." E hoje lá vieram os três à consulta, a mãe, a adolescente e um saco enorme do IKEA com o caixote do lixo lá dentro. E pronto, já não havia nada a fazer senão irmos mesmo as três a morrer de vergonha, com o senhor caixote do lixo, para dentro do laboratório de electroencefalografia. E não é que o raio do som de encerramento da tampa metálica desencadeava mesmo uma crise epiléptica no electroencefalograma?!
Pior ainda foi quando nos lembrámos dos "desmaios" ao telefone quando a menina chamava o táxi. Mas quem pede para trazer um caixote do lixo, também pode ligar para a empresa de táxis para saber qual o estímulo que activava o foco epiléptico, pensei. Meu dito meu feito, lá telefonei a chamar um táxi para o Hospital Dona Estefânia e a senhora pediu-me para aguardar um pouco. Coloquei o telefone em alta voz e, do outro lado da linha, começámos a ouvir a Marcha Turca de Mozart - uma versão orquestral ranhosa e roufenha - e, qual não é o nosso espanto, quando, no segundo movimento, o som da percussão de péssima qualidade fez desencadear uma nova crise epiléptica! Pobre criança, que trauma horrível! Ninguém deveria ser submetido a tamanha tortura... Até eu, se pudesse, teria tido uma crise de epilepsia...
E foi assim que esta miúda de histérica passou a crítica musical apurada! Estamos até a pensar criar uma nova corrente de crítica musical científica com base em electroencefalogramas de crianças com epilepsia reflexa, que acham?
*Nome obviamente fictício!
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