quarta-feira, 31 de março de 2010

[alhos e blogalhos] valha-me nossa senhora do google

Continuam a chegar a este blog inúmeras pessoas em busca incessante por "mulatas selvagens", o que muito me constrange, uma vez que nada tenho a oferecer a estes navegantes exploradores da blogosfera lusófona... Daí que, em desagravo, tenha actualizado o meu perfil, explicitando que "beijo de mulata" é uma flor silvestre e confessando que a suposta mulata do beijo, autora deste blog, afinal é loira caucasiana, portuguesa de gema e pouco dada a actividades públicas conotadas com a pesquisa em epígrafe. Será que chega? (Ou será que este post vai ainda atrair o mesmo tipo de exploradores com maior propriedade e valor mais elevado de prioridade na pesquisa do google?)

[improbabilidades] nomes que dizem tudo


No Hospital de Iapala começava sempre por perguntar aos pais de cada criança, "Nsina nawo mwana?" (Como se chama o seu menino?) E naqueles dias vi desfilar diante de mim, pintadas de preto e em ponto pequeno quase todas as personagens do Antigo Testamento, Ananias, Malaquias, Levítico, Judite, Ozias... Outras tinham nomes próprios como Trinta, Malária, Quietinha, Castelo, Apressado, Médico, Fresquinha, que me faziam sorrir. Há certos nomes que nos entreabrem intimidades distantes e nos permitem, deliciosamente, penetrar em qualquer coisa de interdito nas fantasias e sonhos alheios...

segunda-feira, 29 de março de 2010

[improbabilidades médicas] epilepsia reflexa

Esta tarde, estava eu pela segunda vez na consulta de Neurologia com uma adolescente de 15 anos chamada Érica Vanessa* que vinha referenciada do Centro de Saúde por suspeita de crises epilépticas desencadeadas por situações bizarras... Mais uma, pensei... daquelas que vêm em trânsito para a Pedopsiquiatria, só para excluir definitivamente uma doença orgânica e que têm alta quase directamente para o divã dos psis. Aliás, estava-se mesmo a ver desde o princípio que este nome improvável não augurava nada de bom.

E então de que mal padecia a menina? A pobre criatura desmaiava em cima da mesa da cozinha quase todas as manhãs à hora do pequeno-almoço, sobretudo em dias de testes (ah...) e, mais bizarro ainda, desmaiava frequentemente ao telefone quando a mãe lhe pedia para chamar um taxi para levar o pai ao aeroporto quando este ia viajar em trabalho - era um homem de negócios, muito ligado à filha, que viajava frequentemente (um ah maior de admiração...).

Mas quando fomos fazer uma prova de sugestão, que é um procedimento altamente científico ;), em que injectamos soro fisiológico na veia e lhes mentimos com quantos dentes temos dizendo que o soro é um medicamento para provocar crises, porque só assim podemos saber o tipo de crises que elas têm, ela não teve crise nenhuma.. Estranho... geralmente caem que nem umas patinhas... E se olhássemos bem para o electroencefalograma, ela tinha alguns focos de epilepsia...

E então, depois de muito pensar, depois de muito investigar, o que é que tinha a menina? Só hoje pudemos confirmar.

No dia da primeira consulta colocámos a hipótese de epilepsia reflexa, que é um tipo muito raro, provocado por estímulos súbitos. Mas quando tentámos desencadear uma crise com barulhos (desde lançar o Simpósio ao chão - e asseguro-vos de que o Simpósio lançado ao chão faz um estrondo desgraçado - até rebentar um balão) também não conseguimos. Até que a mãe se lembrou: "Só se for quando eu fecho a tampa do caixote do lixo... Por acaso até já tinha reparado e pensado nisso, mas parecia-me tão absurdo..."

Mas nós já estávamos por tudo... e, mal acreditando no que estava a dizer, pedi-lhe "Traga, então, o caixote do lixo na próxima consulta." Só por vergonha não acrescentei "... mas não diga a ninguém que fui eu que disse isto." E hoje lá vieram os três à consulta, a mãe, a adolescente e um saco enorme do IKEA com o caixote do lixo lá dentro. E pronto, já não havia nada a fazer senão irmos mesmo as três a morrer de vergonha, com o senhor caixote do lixo, para dentro do laboratório de electroencefalografia. E não é que o raio do som de encerramento da tampa metálica desencadeava mesmo uma crise epiléptica no electroencefalograma?!

Pior ainda foi quando nos lembrámos dos "desmaios" ao telefone quando a menina chamava o táxi. Mas quem pede para trazer um caixote do lixo, também pode ligar para a empresa de táxis para saber qual o estímulo que activava o foco epiléptico, pensei. Meu dito meu feito, lá telefonei a chamar um táxi para o Hospital Dona Estefânia e a senhora pediu-me para aguardar um pouco. Coloquei o telefone em alta voz e, do outro lado da linha, começámos a ouvir a Marcha Turca de Mozart - uma versão orquestral ranhosa e roufenha - e, qual não é o nosso espanto, quando, no segundo movimento, o som da percussão de péssima qualidade fez desencadear uma nova crise epiléptica! Pobre criança, que trauma horrível! Ninguém deveria ser submetido a tamanha tortura... Até eu, se pudesse, teria tido uma crise de epilepsia...

E foi assim que esta miúda de histérica passou a crítica musical apurada! Estamos até a pensar criar uma nova corrente de crítica musical científica com base em electroencefalogramas de crianças com epilepsia reflexa, que acham?

*Nome obviamente fictício!

[inspiração para uma despedida] nunca nos encontrávamos

Os próprios vizinhos comentavam que nos dávamos tão mal que até ressonávamos em contratempo...

[inspiração para uma despedida] não tem mais onde, nem como...

[inspiração para uma despedida] amo outro

Desculpa, mas decidi casar-me com o visitante 50.000 do blog...

[alhos e blogalhos] valha-me nossa senhora do google

A primeira pessoa que chegou a este blog através de uma pesquisa no google procurava saber "como ensinar uma mulata a falar". Lamento, meu caro leitor, mas eu não sou certamente a melhor pessoa para lhe responder... Alguém?

domingo, 28 de março de 2010

[nocturno africano] as montanhas a arder aqui e ali


No monte negro há constelações de queimadas,
Chamas breves num conciso fogo de estrelas...
Montanhas, ardam-nos sóis, criem luas cheias,
Deves-nos, noite, vários céus de fogueiras!
És montanha, és savana, és África por dentro,
Deves a ti própria ser verde de dia
E de noite arder luz como se a savana
Nunca aparecesse negra à luz mais viva!

a mulata do beijo

[vozes brancas* #5] desenvolvimento e cultura


Um dos aspectos obrigatórios da avaliação do desenvolvimento de uma criança de três anos é se esta já adquiriu a noção de género e se sabe se é menina ou menino. Mas a primeira vez que no hospital de Iapala perguntei a um menino: "Niyuo, muthiana o mulopwana?", ele respondeu-me em Português, com um ar muitíssimo ofendido: "Homem!"

O que poderia querer dizer aquele ar ofendido? Vim a perceber, mas apenas muito depois que, na idade em que as nossas crianças aprendem a dizer que se chamam Ma'ia ou Be'na'do e a dizer com os dedos que têm dois anos, as crianças macuas aprendem se são do sexo masculino ou feminino e a relacionar-se de forma diferente com cada pessoa, consoante o género. Coisa que as nossas só conseguem fazer depois dos três. Em contrapartida, uma criança macua pode chegar à idade adulta sem saber a sua idade ou o nome próprio...

Ingenuidade a minha (é tão triste ser loira, benza-nos Deus), tentar traduzir literal e acriticamente as etapas de desenvolvimento que vêm nos tratados de Pediatria... A verdade é que está escrito em todos os tratados que o desenvolvimento infantil é igual em todas as culturas e que as etapas do desenvolvimento são transversais. Mas é preciso não perceber rigorosamente nada da cultura africana para acreditar nisso!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[olavula emakhuwa] falar macua


No hospital da Missão...
(Iapala, Nampula)

Como poderiam confiar em mim as pessoas em cuja língua as palavras "medicamento" e "veneno" são uma só? Alguém pode censurar estas mães sofridas de me trazerem as crianças já quase em estado terminal, e só depois de terem recorrido aos préstimos de curandeiros e médicos tradicionais? E vêm tantas vezes contra a vontade da restante família, que anuiu apenas ao argumento de "se não há mesmo mais nada a fazer, vamos então ao hospital..."

[inspiração para uma despedida] nem mais uma oportunidade

Se um rato morto me disser: "Eu cheiro mal por isto e por aquilo, principalmente porque apodreci...", eu nem por isso o deixo de mandar varrer do meu quarto!

Eça de Queirós in Correspondência de Fradique Mendes

[esperança] sonhos do dia e da noite

A caminho do rio para o banho do final do dia...
(Gilé, Zambézia)

Com que poderá sonhar uma família em cuja língua as palavras "sonho" e "feitiço nefasto" são uma só? Em cuja cultura o futuro é pertença dos antepassados e fazer planos representa uma intrusão intolerável em território proibido...

Concretizando, por exemplo, pode alguém sequer dar nome a uma criança antes de ela nascer? Não! O sacrilégio levaria certamente à morte ou infelicidade da criança e da sua família...

sábado, 27 de março de 2010

[nocturno africano]



À noite, em Iapala, a aldeia mais bonita da minha vida, no meio do mato em Moçambique, antes de sair do hospital, passava à porta da enfermaria de Pediatria e ficava a ouvir as canções de embalar que as mamãs cantavam em conjunto para adormecer os meninos. Uma das mais bonitas tinha a seguinte tradução do macua:

Quero agradecer-te por teres nascido.
Dorme, porque enquanto estiveres a dormir,
eu vou ficar aqui, a repetir o teu nome!

quinta-feira, 25 de março de 2010

[desabafos]

Este homem nunca ouviu falar em desmotivação nem em burnout. É um puro. Ainda não tem no bucho os mil bancos na Estefânia que nos fazem perder o respeito pela realidade...

[if you love me, shaw me]

Galatea never does quite like Pygmalion. His relation to her is too godlike to be altogether agreeable...
G. Bernard Shaw

(Mas a mim ninguém me convence que não é ao contrário... Tenho a certeza de que Pigmalião é que nunca acreditou que merecia algo perfeito!)

terça-feira, 23 de março de 2010

[psicanálise selvagem]


Sentindo-se em perigo iminente, o psicanalista viu a vida de outra pessoa passar-lhe diante dos olhos...

[encantos de primeira vez em áfrica]



Já vão quase dez anos desde a minha primeira missão de voluntariado em Moçambique, altura em que, ainda com pouca experiência, me colocaram a dirigir o Centro de Saúde da Casa do Gaiato, no meio do mato a 50 km de Maputo...

E uma experiência que parecia inicialmente aterradora, porque não conhecia nem a língua, nem a cultura e mal conhecia as doenças, transformou-se numa paixão!

Precisava permanentemente de uma intérprete, a Inês de Maria, que para além de tradutora fazia também de exegeta e mediadora cultural, adaptando as minhas perguntas à realidade local. Ainda hoje sorrio quando me lembro que perguntava a uma doente com candidíase vaginal se o corrimento era de tipo iogurte e ela, imperturbável, traduzia iogurte para coco ralado ou mandioca cozida... Ou quando comecei a compreender um pouco do dialecto, uma vez uma senhora queixou-se que a filha de sete anos tinha a “dor do mês”.
– Com sete anos já é menstruada?! Perguntei, abismada, ainda para mais porque a menina não aparentava sequer ter sete anos, mas apenas cinco ou seis.
– Não, não é menstruada, assegurou-me a Inês, o que ela disse é que a menina tem epilepsia, aqui as pessoas chamam-lhe tradicionalmente a “doença do mês” ou a “doença da lua”...

(Como se vê, perdi grandes oportunidades de ficar calada, mas foi divertido.)

segunda-feira, 22 de março de 2010

[if you love me, shaw me]

There are two tragedies in life. One is not to get your heart's desire. The other is to get it.
G. Bernard Shaw

[vozes brancas* #4] e vidas pequeninas

Entrei para a consulta com uma menina de dois anos ao colo de sua mãe. A sala estava na penumbra e, enquanto procurava o interruptor, ouvi-a perguntar num murmúrio:
- Mãe... onde estão as cores?

(Tenho a melhor profissão do mundo!)

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[circularidades de uma rapariga loira]

"Se me enganas uma vez a culpa é tua. Se me enganas duas vezes a culpa é minha."
Anaxágoras

Pois... a partir de agora é obsessão.
(Até tudo não passar de um ritual, até tudo se tornar uma anedota, até ser um nó na garganta e na cabeça. E um gosto amargo nos sonhos da noite...)

domingo, 21 de março de 2010

[circularidades de uma rapariga loira]

Gilé, Zambézia.

Pode-se tirar um homem de Moçambique, mas não se pode tirar Moçambique do homem!*

*Da minha experiência, este raciocínio é igualmente válido para Massamá, Brooklin e Barreiro. Mas por razões inteiramente diversas...

[olavula sana] palavras bonitas



Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.

Sophia de Mello Breyner Andresen

[todos temos personalidade] DSM beijo-de-mulata

Perturbações dos Beijos - Cluster C

- Dependente - Precisa de outra pessoa para quem enviar os beijos. Sem ela não envia beijo nenhum.

- Obsessivo-compulsivo - Envia beijinhos persistentemente.

- Evitante - Desculpem. Já vos tomei tempo demais. Não vos deveria ter ocupado tanto tempo inutilmente comigo apenas para vos enviar beijos patológicos...

[todos temos personalidade] DSM beijo-de-mulata

Perturbações dos Beijos - Cluster B

- Anti-social - Desde os 15 anos que beija muito, como quer e bem lhe apetece, não tendo mesmo escrúpulos em enviar falsos beijinhos.

- Borderline - Envia inúmeros beijos curtos, mas muitíssimo intensos, cada dia para um sítio diferente (sky is the limit). Sempre à procura de emoções fortes, muitas vezes dedica-se a desportos radicais, como os beijinhos saltitantes (beiji-jumping).

- Histriónico - Beija sempre. Mas só da boca para fora.

- Narcísico - Envia beijos fantásticos, mas só àqueles que admira. Unicamente esses o podem compreender. Tem inveja dos beijos dos outros e está frequentemente empenhado em fantasias de beijos poderosos, perfeitos ou do beijo ideal. Luta arduamente para se tornar membro das instituições mais conceituadas de beijos de elite.

[todos temos personalidade] DSM beijo-de-mulata


Perturbações dos Beijos - Cluster A


- Paranóico - Nunca envia beijinhos. Qualquer beijo poderá constituir um pretexto a ser utilizado contra si para que o beijem também.


- Esquizóide - Nunca envia beijinhos. Ele lá tem as suas razões.


- Esquizotípico - Nunca envia beijinhos. Ou melhor... nunca envia beijinhos no sentido em que nunca chega efectivamente a realizar movimentos de sucção com o músculo orbicular dos lábios contra a face de outrem... mas, em espírito, envia um beijo de luz para expressar o quanto deseja que a aura do outro se ilumine e assim permaneça. Depois envia um conjunto de sete beijos para desfazer todo o mau-olhado que recai potencialmente sobre essa pessoa. Projecta-se no outro e acaba por se tornar no próprio receptor dos beijos. Duvida da eficácia dos seus próprios beijos para desfazer o mau-olhado que afinal é sobre si que recai. Entra em stress e envia um beijo em lá bemol para chamar a mãe. Tenta beijar o próprio cotovelo para lhe transmitir o seu desespero, abraça a bíblia para pedir um copo de água e um lenço de papel, mas deixa-a cair acidentalmente. A queda da bíblia é um indício muito forte de que alguém, algures, o quer beijar, pelo que tranca a porta para veicular a ideia de que pretende ficar só.

sábado, 20 de março de 2010

[vozes brancas* #3] nomes que dizem tudo

Na consulta com um menino de 4 anos:
- Henrique, como é o teu nome todo?
- Henrique Craveiro Sobral Forcado Campino Bombeiro e Polícia**!

(Não há dia que não me derreta totalmente!)

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade
**Os primeiros três nomes são, obviamente, fictícios.

[vozes brancas* #2] e raciocínios irrepreensíveis

Há tempos, uma prima minha estava internada no Hospital de Santa Maria e a sobrinha de quatro anos perguntou-lhe se a podia ir visitar porque tinha muitas saudades. Respondeu-lhe que não, que os meninos pequeninos não podiam ir aos hospitais visitar os "crescidos". A minha pequena prima deve ter ficado intrigada e a matutar no assunto... No dia seguinte pergunta novamente à tia:
- Bia, tens a certeza de que os meninos pequeninos não podem mesmo ir ao Hospital?
- Tenho, querida.
- Mas informa-te bem porque, olha, eu nasci lá...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[esperança] ser criança em moçambique


Iapala, Nampula.

... uma das imagens mais serenas da savana ao fim da tarde era a ternura das mães a pentear as suas princesas na varanda... Aliás, a minha intuição de pediatra sempre me disse que lá no hospital, se uma mulher estava muito doente mas ainda estava penteada e trazia as filhas penteadas, então não estava deprimida, tinha esperança no futuro e ia colaborar nos tratamentos. Não me lembro de alguma vez esta ideia me ter falhado!

[vozes brancas* #1] neurologices

Descrição de afasia** por uma menina de 7 anos:
- Eu não conseguia falar... Depois até me deram um papel para escrever, mas também não consegui porque, quando eu escrevo, as palavras que ponho no papel são as palavras da boca.

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
** Perturbação neurológica que origina uma incapacidade de compreensão ou expressão da linguagem.

sexta-feira, 19 de março de 2010

[circularidades de uma rapariga loira]

Tu és azul e eu não estou triste... (I'm not blue)

[esperança] a nossa riqueza são as crianças!


Aprender a ser mãe...
(Gilé, Zambézia.)

Quando me falam em controlo de taxa de natalidade lembro-me sempre de que fui o sétimo...
Gabriel Garcia Marquez

quinta-feira, 18 de março de 2010

[improbabilidades] e contradições


Mas alguém utiliza radiadores com um calor destes?! Mais ainda se o céu é tão azul como o dizem... Não admira que precisem de se dedicar a duas actividades profissionais em simultâneo, que a crise toca a todos. Em Moçambique também se vive no fio da navalha!

[histórias de amor]


A história da minha paixão por Moçambique é já tão complicada que, de cada vez que a tento contar, me contradigo alarvemente. E quando, por vezes, lá acerto, sou invariavelmente mal citada... Mas, pouco a pouco, vou tentando recordar-me e contar os encantos de primeira vez em áfrica. Do sol, do vento, do verde e do mar, da savana e do sorriso das crianças... Para não ter de estar sempre a tentar arranjar explicações para este sentimento de perda de cada vez que me venho embora e para conseguir dizer que o país não é o meu, mas quero à viva força que não cresça sem mim...

[psicanálise selvagem]

Hoje sonhei com um divã em Moçambique...

quarta-feira, 17 de março de 2010

[improbabilidades] nada de improvisos, ora essa!



... casa de banho pública para necessidades maiores e menores! A extraordinária versatilidade desta magnífica construção...

terça-feira, 16 de março de 2010

[improbabilidades] e improvisos


No meu quarto em Iapala (Moçambique) havia uma osga - a minha querida Amélia - trazida uma tarde pelo cozinheiro, ante o meu olhar de ponto de interrogação: eu tinha-lhe pedido insecticida porque não tinha rede mosquiteira no quarto.
- Não sei o que é 'setcida, Doutóra.
- Remédio para os mosquitos - reformulei.
- Ah, não tem problema!

E horas depois regressou com a Amélia!
(A verdade é que funciona)

segunda-feira, 15 de março de 2010

[welcome to mozambique] pisem só onde eu pisar...



No Gilé, à beira do Rio dos Encantos:
- Artemisa, costuma haver cobras por aqui?
- Não, Doutora, só mesmo crocodilos...
- Mas estão pessoas a lavar a roupa, crianças a tomar banho, não há perigo?
- Sim, há perigo, mas é difícil eles saírem [aparecerem] a esta hora da tarde. Aqui há sombra e eles gostam de sol...
- Mas já tem havido acidentes?
- Sim, há muitos acidentes com crocodilos.
- E mesmo assim as pessoas permanecem tanto tempo expostas ao pé do rio?
- Doutora, os acidentes só dependem do destino das pessoas...

sábado, 13 de março de 2010

[improbabilidades] folie à trois

Infelicidade é só perceber muito tempo depois que se viveu um distúrbio psiquiátrico que nem sequer vem no DSM-IV... O que vale é que, a três, uma psicose é muito mais divertida... Psiquiatras de todo o mundo: Para quando o DSM-V?

[nkinswela olavula emakhuwa] macua... o macua é difícil...

Uma tarde, no hospital de Iapala, disse em macua a uma criança que não parava quieta no banco de urgência: "Senta-te, está quieto!". Percebi logo, pelo silêncio imediato e a cara divertida das pessoas que tinha dito asneira da grossa... Depois de muita insistência lá me disseram que o que lhe tinha ordenado, alto e bom som tinha sido "Pede-me em casamento!"

sexta-feira, 12 de março de 2010

[nkinswela olavula emakhuwa] macua... o macua é difícil...

Na missão de Iapala, em Moçambique, uma imagem repetia-se em cada celebração: durante o "Cordeiro de Deus" todos os fiéis baixavam a cabeça para esconder a face. Isto até que alguém ganhou coragem para informar o senhor padre de que fazia um erro fonológico: em vez de "Cordeiro de Deus" dizia sempre "Ó Deus todo nu que tirais o pecado do mundo"...

terça-feira, 9 de março de 2010

[sem medo, nem dó, nem drama] mulheres de moçambique




[olavula emakhuwa] falar macua


Não se ensina um caminho a uma criança, é preciso percorrê-lo com ela.

Provérbio Macua

[sem medo, nem dó, nem drama] mulheres de moçambique





segunda-feira, 8 de março de 2010

[medicina tradicional] o conhunho

And now for something completely different!

Disclaimer: este post não tem qualquer propósito científico, não pretende ser informativo, muito menos provocativo e a investigação de que resulta não foi de maneira nenhuma sistemática.

Estou hoje aqui, compondo um dos posts mais improváveis da minha vida de médica que já esteve em missão, para vos falar do conhunho, uma doença africana, sobre a qual apenas ouvi falar em Moçambique (nas províncias da Zambézia e Nampula) e que adquiriu nos últimos tempos uma relevância especial, quando saiu uma notícia num Jornal Nampula referindo que o Governador se encontrava doente, não podendo por isso participar nas cerimónias de inauguração de um Centro de Saúde.

No número seguinte, em jeito de fofoca política, vários jornalistas obviamente defensores d' O Partido vieram acusar os delactores do Governador de o terem difamado dizendo que este padeceria de conhunho. E perguntam vocês, meus queridos amigos, o que é o conhunho? Será uma doença assim tão infame que um governador honesto não a possa ter? Foi isso, pelo menos, que eu perguntei.
E envio-vos, a este propósito, a resposta de uma enfermeira amiga minha que se encontra a fazer voluntariado em Nampula sobre o que seria o conhunho. Apreciem, pois o produto de uma aturada e sistemática investigação no terreno (espero que se divirtam):

"Comecei a ouvir as queixas do ekhunyunyu (conhunho, em makuês!) nas comunidades onde aos domingos ia com os Missionários de S. João Baptista, participar nas eucaristias e ajudar nas consultas às comunidades.

Debaixo do cajueiro ou no alpendre onde se improvisava o espaço para atender os paroquianos, enquanto o padre procedia às Confissões, as mamãs diziam-me “Irmã, sofro de conhunho!”. E apontavam para a zona abdominal. Vinham os papás “Irmã, tenho hérnia!” e apontavam para zona inguinal ou genital. Aparecem os mais jovens “Irmã, tenho conhunho aqui na minha perna!”. Volta outra mamã idosa e diz “Irmã, o meu mal é o conhunho”, apontando para a coluna. Na “consulta”, ainda outros contavam que comendo manga verde aparecia logo o conhunho, ou então referiam que se os papás queriam de facto evitar o conhunho nada de ao mata-bicho comer papaia verde ou banana-macaco!

O que me explicaram é o conhunho seria "uma espécie de hérnia", o que para mim a princípio me pareceu ser uma queixa genérica de tumefacção dolorosa, frequentemente abdominal ou inguinal, cujo tratamento passaria por repouso e medicamentos que actuassem sobre o aparelho gastrointestinal, sobretudo anti-obstipantes. Como eu estava enganada!

Depois de várias semanas, meses com esta falsa ideia, comecei a tentar averiguar o que seria, então, esta entidade nosológica junto de várias pessoas, as irmãs, os seminaristas, os alunos, os voluntários, os enfermeiros, a população… Apresento-vos então, em resumo, o produto das minhas mais recentes investigações. São depoimentos de quem já padeceu, padece ou, de uma forma ou de outra, vê a sua vida afectada pelo conhunho:

- "O conhunho é uma espécie de vírus, que entra por uma parte do corpo, e acaba por se propagar ao resto do organismo." (Manifestamente uma doença multissistémica!);

- "O conhunho manifesta-se com dor e a pessoa que já teve o conhunho antes, sabe que é esta doença outra vez a manifestar-se." (Ou seja, uma doença crónica ou recidivante...);

- "Quem trabalha duramente na machamba, pode sofrer de conhunho na muthana (coluna)." (Também pode, portanto, ser agravada pelo esforço físico.);

- "Uma vez sofrendo de conhunho, a pessoa sofrerá para toda a vida." (Incurável, como qualquer doença crónica que se preze);

- "O conhunho quando se fixa no corpo de uma pessoa definitivamente, aloja-se nos testículos do homem e na bexiga da mulher." (Oh, diabo, até pode ser multissistémica, mas comporta-se como uma DST! Lembrem-se que isto em África é, em termos sociais, um handicap praticamente equivalente a ter uma doença alojada no coração ou no cérebro, já que a reprodução é a única função que confere estatuto social...);

- "Os saltos nas picadas e a ingestão de batata doce e papaia ao mata-bicho são causas de conhunho, podendo fazer com que ele saia." (Quê?!);

- "Pode provocar vómitos, diarreias e cólicas abdominais." (Manifestações predominantemente gastrointestinais);

- "Existe uma historia de um casal que quase se divorciou por causa do conhunho. Na partilha dos bens comuns não se conseguiu dividir o conhunho do marido, adquirido durante o casamento. Logo em reunião familiar, os dois não se puderam separar, já que o conhunho não se divide..." (Lá está, o impacto sócio-familiar da doença crónica!);

- "As temperaturas mais baixas fazem “subir” o conhunho nos homens. E então para o conhunho “descer” é preciso aquecer as temperaturas do corpo. Para o povo é um problema sério! Logo dias frios são dias de conhunho!" (De onde forçosamente se conclui que ainda bem que em Portugal não há conhunho!)

Estas são algumas ideias sobre a entidade que afecta a vida de muitos moçambicanos que conheço e que se cruzam comigo. Agora cada vez que me surge alguém com conhunho tento perceber ao máximo tudo sobre a queixa do doente e neste momento julgo que o conhunho será algo entre a doença orgânica e a doença tradicional. (Para quem não está familiarizado, uma doença tradicional resulta de uma zanga dos antepassados com um indivíduo que quebrou um qualquer tabu - o que na Europa seria como que uma doença neurótica ou uma perturbação somatoforme. Tenho um amigo que vive há 10 anos em Moçambique que chama com muita graça "Escrúpulos" às doenças tradicionais!).

Quem já aqui esteve e já contactou com esta entidade saberá que ela afecta extensamente a vida de um povo, de modo que as actividades laborais e escolares e a sua imagem social ficam prejudicadas por esta doença que não tem cura. … enfim continuarei a minha tentativa de saber mais sobre este ekhunyunyu!!!"

P.S. - Será que mais alguém ouviu falar sobre esta doença?

domingo, 7 de março de 2010

[desabafos]

Acho que vou enfiar a cabeça dentro de um balde para descansar o espírito, que é o que fazem as pessoas quando têm:
a) um balde;
b) uma cabeça;
c) um espírito.

Fernando Pessoa

[improbabilidades] nomes que dizem tudo



...num bairro de Nampula

sábado, 6 de março de 2010

[improbabilidades] e estatística


Manifesto Pró-Estatística*


A Estatística, mais do que muitas das ditas Ciências Humanas, prepara-nos para a vida ao ensinar-nos a pegar em valores imutáveis e operacionalizá-los. Acredito mesmo que a sociedade seria muito mais justa se todos fôssemos Matemáticos e tivéssemos interiorizado valores como:
  • A Esperança matemática
  • Os intervalos de Confiança
  • A Estima
  • A Fidelidade da amostra
  • A Independência das variáveis
  • Os graus de Liberdade
  • A Bondade do ajustamento
  • Os testes para a Igualdade das amostras
  • A importância de não excluir outliers
  • A não rejeição da hipótese nula
  • A Integração dos Valores da distribuição normal

Em Estatística pode-se até, com facilidade, subir o nível de significância e sem qualquer presunção inicial determinar a relação estatística entre duas variáveis discretas!

* Hoje, finalmente, aprendi a fazer queries no SPSS!

quinta-feira, 4 de março de 2010

[improbabilidades] nomes que dizem tudo

Uma tarde, em Iapala - a minha aldeia no meio do mato em Moçambique - a mamã Teresa, empregada dos padres veio ter comigo muito chorosa com um bebé nos braços. Tinha ido à cidade registar o menino, mas não a tinham deixado dar-lhe o nome do futuro padrinho.
- Mas porquê, mamã?
- Disseram que não era nome normal...
- Ah... Mas afinal que nome é que lhe queria dar?
- Padre Arlindo.
(Tive mesmo de deixar cair um brinco no chão para esconder a cara... Mas vistas bem as coisas até seria um Arlindo nome...)

terça-feira, 2 de março de 2010

[fuga de ideias]

As pessoas têm sobre África ideias loucas. As pessoas pensam, minha senhora, que África é uma floresta virgem onde um leão come um preto, o preto come um rato assado, o rato come as colheitas verdes e tudo é verde e preto. Mas é falso, minha senhora. África, como terá oportunidade de ver, é amarela. Amarela-clara, cor de whisky...
Lídia Jorge in A Costa dos Murmúrios

[medicina tradicional] é tão triste ser loira...

Há alguns anos, estava eu a fazer voluntariado médico em Moçambique, quando me vieram trazer um menino de 15 anos com os gânglios do pescoço muito aumentados de volume - era possivelmente um linfoma.

Duas semanas depois, ainda a tentar tratar da sua transferência para a capital, observei novamente o adolescente e notei que os gânglios se tinham reduzido a metade. Nos entretantos a família tinha procurado um curandeiro que lhe dera a beber chá de beijo-de-mulata. Obviamente duvidei do curandeiro, duvidei de mim mesma, acreditei só no prognóstico e nos meus livros e com o acordo da família transferi o menino para Maputo...

Anos depois, inteiramente por acaso, vim a descobrir que desta flor lindíssima se extrai a vincristina, um agente de quimioterapia activo contra o linfoma...

[momentos selvagens] wilde moments

Todos os santos têm um passado... só os pecadores têm futuro.
O. Wilde

[olavula emakhwa] falar macua

Para criar uma criança é preciso uma aldeia inteira!