sábado, 31 de dezembro de 2011

[imagens da zambézia] ... e ei-los, que chegam!








E eis que se chega a Namitathary... O povo macua sabe bem receber!
(Gilé, Zambézia)

E notem, meus amigos, que as flores no meio da estrada na primeira imagem são os discretos e charmosos beijos-de-mulata, em rosa e branco.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

[histórias de dentro de casa] pequenos freaks...

Começo a perceber que eles andam aí! Pequenos inconformistas, meninos que na hora de dormir elegem os mais recônditos objectos, duros e cheios de arestas desconfortáveis, para depois os colocar no papel de objecto de transição fofinho...

Enfim, depois de Mr. B., que dormia aninhado com uma cápsula de Nespresso na mãozinha, depois do meu outro menino, que dormia abraçado a um salazar, ontem na consulta vi um menino que dorme com o frasco das vitaminas... Ursinhos? Fraldinhas? Isso é para meninos, meus amigos! Avizinha-se uma geração fantástica! Ou bem... como direi? Uma geração freak, inconformista, criativa e independente...

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

[nos caminhos da zambézia] instantes...




A caminho de Namitathary para uma festa, a pretexto de três casamentos e trinta baptismos [proporção mais do que usual, tendo em conta a taxa de fertilidade em Moçambique...]
(Gilé, Zambézia)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

[mr. b. está doente...] gripe, a melhor definição

Mr. B., o meu sobrinho de três anos, está doente... Os olhinhos brilhantes, o ar triste, a falta de ânimo, a vontade de parte a parte de estar ao colo e de dar colinho. Está assim mesmo murchinho, não come como comia, não brinca como brincava... Não se queixa de nada, só geme quando tem febre. Há pouco perguntava-lhe:

- Onde é que lhe dói, meu amor?
- Nada, só dói a febre...

[Haverá melhor definição para gripe, meus amigos? Sim, eu sei. Neste momento o meu pequeno neurónio não é mais que uma mão cheia de baba e outra de coisa nenhuma... coisa boa...]

[zambézia] a província mais africana...




Atravessando rios e riachos a caminho de Namitathary... Tem problema di ponte em todos os caminho...
(Gilé, Zambézia)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

[instantes] está na hora da exima...


Preparando a exima para o almoço depois da aula das crianças...
(Gilé, Zambézia)

domingo, 25 de dezembro de 2011

[histórias de dentro de casa] uma ceia para o menino jesus



El Noi de la Mare
(Música tradicional de Natal da Catalunha)

Esta música ficou recentemente conhecida por integrar a banda sonora do filme Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen. No poema original os intérpretes perguntam-se o que poderão oferecer ao filho da Virgem. O que poderia agradar ao Deus menino? Passas? Figos? Mel? Requeijão?
Para a versão original, o link aqui.

Na noite de Natal, à uma e meia da manhã (que isto, meus amigos, um dia não são dias!), depois da missa do galo fomos todos para casa para a ceia... O dia já ia longo, mas Mr. B., o meu sobrinho de três anos, tinha fome novamente e queria esperar pelo menino Jesus, que já tinha nascido e sabia que vinha nessa noite para lhe deixar presentes na chaminé...

Enquanto a mamã dava de mamar ao mano e ele comia mais uma bolacha de gengibre, lá o conseguimos convencer de que o menino Jesus só viria muito à noite e quando já todos estivessem de dentes lavados, pijama vestido e a dormir. Mas se calhar podíamos deixar-lhe alguma coisa para ele comer no caso de ter fome, até porque ele ia trabalhar muito, coitadinho... "Boa!" Então o que lhe podíamos deixar? Fatias douradas? Uma fatia de Bolo Rei? Sonhos? "Não, não, para o menino Jesus não!"

- Então, Mr. B.? O que podemos deixar ao menino Jesus? Mousse de chocolate? Lampreia de ovos? Os biscoitos da avó?
- Não, isso não! Para o Jesus não!
- Mas porquê, querido?
- Porque ele é bebé! Ainda não tem dentes...
- [Toma lá que já almoçaste!] Ah, claro [que cabeça a minha, valha-me Nossa Senhora do Leite!], então, o que lhe deixamos? Leitinho?
- Siiiim!
- Óptimo, vamos buscar então leitinho para o menino Jesus!

Fui atrás dele, mas em vez de se dirigir para a cozinha, foi para o quarto da mãe. E eu ainda envergonhada... Como era possível que eu não me tivesse lembrado de que o menino Jesus era mesmo um bebé? Mr. B. ajoelhara-se e procurava algo dentro de uma mala...

- De que está à procura, Mr. B.?
- Da bomba do leite da mamã...

A bomba de tirar leite! Ai o orgulho de sua titi... Com apenas três anos Mr. B. já sabe que o leite materno é o melhor alimento para os bebés!

sábado, 24 de dezembro de 2011

[se belém fosse em ocua] um conto de natal...



O Cajueiro de Natal. Novamente. Porque há muito a agradecer. E porque a vida é muito mais bonita do que pensamos.

Em Dezembro, em Ocua, era Natal e entardecia sem que por perto qualquer sinal nos pudesse dar testemunho da data. Tempo de fome, de seca e calor asfixiante, em que a chuva tardava como uma noiva cruel, abandonando as sementeiras e o povo no altar, no desespero de uma boda por mil vezes não consumada, de uma promessa de frescura mil vezes adiada... Era Natal e o calor era irrespirável. Era Natal e ao entardecer não havia luzes nas ruas, ninguém a correr a comprar os presentes de última hora, nenhuma árvore ornamentada. Era Natal e, inquietantemente, faltava o cenário, faltava o tom que o pano de fundo imprime no estado de espírito... mas aparentemente só nós o sentíamos. Tudo o resto, alheio à inquietude que nos vivia por dentro, decorria na rotineira placidez de África.

Se Jesus menino tivesse nascido em Dezembro em Moçambique, uma capulana teria bastado para o aquecer. E se Belém fosse em Ocua, em vez da vaquinha e do burrinho no estábulo, talvez uma qualquer ave do mato tivesse batido as asas num leque improvisado, oferecendo um sopro refrescante ao seu corpinho de menino... Que nestes casos a poesia da religião e o seu lado de Alice no País das Maravilhas, de fábula, magia e metáfora têm sempre forçosamente de assomar.

Mas foi precisamente aqui que a Natureza nos declarou, estridentemente, o quanto tínhamos sido injustos. Que tudo quanto a Europa faz de uma forma sistemática, asséptica e geométrica, África improvisa e encanta. E foi quando, em Ocua, em frente à casa da Missão, o cajueiro se encheu de centenas de pirilampos, numa árvore de Natal natural erguida na noite, com mil pequenas luzes piscando.

A missão de Ocua fica na província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique. A história é verídica. Foi a Irmã Mila quem ma contou.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

[vozes brancas* #58] a carta ao pai natal...

Pedro, um menino de 5 anos, sempre bem disposto apesar de uma doença crónica grave que de vez em quando o faz ficar internado com dificuldade em mexer-se, sempre sorridente apesar de por vezes brincar ser impossível e de as dores o acordarem durante a noite. Uma carinha franzina e linda, muito embora as olheiras e a palidez de quem tem sempre o corpo em alerta. Um olhar sempre a direito, maroto até à quinta casa! Há meninos assim. Há meninos que têm a perfeita noção de que não se podem desmanchar nunca. Há meninos pequenos que já aprenderam a ser o suporte emocional dos pais e que não se podem demitir do seu papel de "animadores". Invertem os papéis para fazer sorrir os pais, destroçados pela doença que lhes levou o sonho de um filho saudável.

Há uma semana, no serviço de urgência, durante mais uma crise, a minha colega C. perguntou-lhe se já tinha escrito "a carta" ao Pai Natal. Que sim, que já tinha escrito. E o que lhe tinha pedido, podia saber-se? Pois que tinha pedido um puma de peluche. Grande. Mas se o Pai Natal não pudesse, então também podia ser, sei lá, um conjunto de Gormitis. Ficava contente na mesma, garantia.

Ontem na consulta a C. voltou a perguntar-lhe o que tinha pedido ao Pai Natal.
- Ah, eu ontem escrevi-lhe uma carta e pedi-lhe outra coisa.

A mãe muito espantada, com cara de "agora-que-eu-já-tinha-tudo-tratado-é-que-te-lembras-de-mudar-o-pedido-valha-me-Deus-e-eu-com-tanto-que-fazer":
- Então o que é que tu pediste ontem, filho?

E o Pedro, com um brilho mais do que maroto no olhar:
- Não te digo, é surpresa! Quando o Pai Natal trouxer, logo vês!

Para todos um Natal muito feliz, cheio de saúde e confiança!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[instantes] a vida é simples...

Já repararam, meus amigos, como cheiram bem as madrugadas de Dezembro em Lisboa?

[as melhores do serviço de urgência] ainda não teve alta...

Serviço de Urgência. Um bebé de doze meses, lindo e bem disposto, com uma infecção respiratória ligeira.

Eu - O seu menino tem sido saudável?
Mãe - Sim, Doutora, só está a ser seguido na consulta de Ortopedia porque nasceu com os pés para dentro.
Eu - Nasceu com pé boto?
Mãe - Sim, exactamente!
Eu - Ah, mas já está muito bem! Já deve ter tido alta da consulta, ou não?
Mãe - Ele está bem e até já anda sem apoio, mas ainda tem ali uma coisita e o Doutor não lhe quis dar alta do pé esquerdo...

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

[o melhor do mundo...] resiliência, a melhor definição!



Brincando ao faz de conta num campo de refugiados... É isto que as crianças têm a chamam de resiliência!
(Fotos da exposição Africa, de Stefano Zardini)
 
O link aqui. Mas aviso-vos, meus amigos, desta vez quem lá for vai à sua própria responsabilidade...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

[os hipopótamos da zambézia] e agora também crocodilos!





Imagens do Rio Chire [daqui]
(Zambézia, Moçambique)

Ainda a propósito do régulo defunto que reencarnou em hipopótamo na Zambézia, encontrei esta história fantástica num comentário do facebook, onde mais uma vez se confirma que a Zambézia só pode ser a província mais africana de Moçambique:

O rio Chire, em Pinda, na Zambézia tem ainda uma outra história deliciosa de uma velha que comandava um batalhão de crocodilos, tipo chicundas*, que raptavam e escravizavam os homens para trabalhar na machamba da velha. Os homens navegavam o rio no dorso dos crocodilos e eram por eles guardados. Terá sido contada por um "desaparecido" que conseguiu fugir da escravidão e voltar Pinda quando a guerra acabou. Essa história é dos anos da "última" guerra. O sistema Zambeze e as suas infinitas estórias!
* Chicunda - escravo soldado. Os chicundas acabaram por se tornar um grupo étnico à parte, com as sua própria língua, trajes e tradições, e especializaram-se, como homens livres, como carregadores e remadores nas viagens no Zambeze. Definição do Glossário de Moçambicanismos de V. L. Lindegaard.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

[welcome to mozambique] moçambique é fotogénico!



Esta é uma foto da exposição de um colega meu (Martino Gliozzi) no King's College. Foi tirada na praia do Wimbe, em Pemba e deu-lhe o título de "Os Capitães da Areia". 

Eu e o Martino trabalhávamos juntos há meses quando nos apercebemos pela primeira vez da paixão romântica comum por Moçambique e que até já tínhamos estado nos mesmos locais. Vão lá ver, meus amigos! Vão lá ver que vale a pena.

[improbabilidades] sinceramente, eu até tenho bom feitio, mas...

Na semana passada uma senhora pediu-me para lhe passar uma nova receita, que a anterior não tinha sido aceite na farmácia. O médico tinha escrito "Solução oral manipulada" mas na farmácia disseram-lhe que, para ser comparticipada, a receita tinha de estar no masculino: "Manipulado". Pronto. Era só Isto. Tenham uma boa noite.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

[welcome to mozambique] à beira do lago dos encantos...





Um dia também hei-de passear de barco ao pôr do sol no grande lago...
(Lago Niassa, Moçambique)
Fotos da minha amiga M.

[welcome to mozambique] sem stress!


Um delicioso bar na praia... Daqui, onde vale sempre a pena ir.
(Inhambane, Moçambique)

domingo, 18 de dezembro de 2011

[caderneta de cromos] as peta zetas e a bronquiolite aguda

E porque tivemos reclamações de pessoas que afirmavam desconhecer o que era afinal isso de Peta Zetas (inclusivamente de uma médica pediatra!), a bem da cultura dos cromos-anos-eighties dos leitores deste blogue e para alargar a cultura pediátrica de pais e profissionais de saúde, que passam a ter um novo recurso para descrever os sons que fazem os bebés com bronquiolite ao respirar: aqui têm uma verdadeira ode às Peta Zetas e o som das mesmas! Por Nuno Markl. Vejam lá se os pais do post ali de baixo não são geniais!

sábado, 17 de dezembro de 2011

[caderneta de cromos] as melhores do serviço de urgência

Serviço de Urgência em plena estação de Outono-Inverno, com o usual bazar de quinquilharias respiratórias. Um bebé com seis semanas de vida, pequeno o suficiente para se considerar um quase recém-nascido, mas maduro o suficiente para quase jurar que não ia ter complicações. Tinha uma infecção respiratória que me deixou preocupada e pedi aos pais para me telefonarem horas depois para me informarem da evolução do menino.

Nessa tarde os pais telefonam, preocupados, mas optimistas, bem dispostos e ambos perdidamente apaixonados pelo milagre que lhes tinha acontecido: o menino continuava a conseguir mamar, mas não tão bem como antes e às vezes fazia um barulho diferente a respirar.

Eu - É um barulho assim como se fosse um assobio?
Mãe - Não... não o que eu chamaria de assobio...
Eu - Então? É mais assim um fervilhar?
Mãe - Também não é bem um fervilhar, não sei se isto é normal, Doutora.
Eu - Mas é muito diferente do barulho que fazia há pouco?
Mãe - Mais ou menos, o timbre é parecido mas mais agudo, o ritmo é que é diferente...
Eu - É mais lento, como se fosse um ronronar? Ou mais rápido?
Mãe - Não é bem isso, é mais agudo...
Pai [com voz de quem está ali mesmo ao lado] - É assim como se tivesse Peta Zetas nos pulmões!
Mãe [voz triunfante] - É isso! É como se tivesse Peta Zetas!
Eu [com um sorriso] - Ah, pronto, já percebi! Tem, uma bronquiolite, era o que eu esperava...

(Peta Zetas... Muito bom! Os pais de hoje são tão filhos dos anos 80!)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

[improbabilidades] os hipopótamos da zambézia


Um hipopótamo mansinho...

A propósito da notícia da improvável reencarnação do defunto régulo de Morrumbala em hipopótamo [de que já vos falei], o post genial de António Cabrita no Raposas a Sul fez-me lembrar a mulher que certa vez internámos no Hospital do Gilé com uma doença inflamatória pélvica muito grave. O marido explicava-nos que ela tinha ficado doente quando tinha dado à luz um peixe-gato, depois de uma gravidez complicadíssima, cheia de hemorragias e de outros sinais de maldição. "Um peixe-gato? Como assim um peixe-gato?" perguntávamos. Mas o marido era irredutível, ele tinha visto com os seus próprios olhos o peixe ainda vivo, mas agónico, e os bigodes que comprovavam a sua natureza felina. O curandeiro tinha-lhes dado uma explicação complexa para o sucedido, mas fora incapaz de a tratar, por isso acabaram por recorrer ao hospital e pedir-nos ajuda... No Raposas a Sul falou-se de ago parecido...
Se bem me lembro, foi em 2007 que a STV fez uma reportagem sobre a mulher que supostamente teria dado à luz um bule e três chávenas de chá. Durante essa semana, nas aulas da universidade, tive que debater as dúvidas dos alunos sobre se tal seria possível, porque na verdade a metade deles queria crer nessa possibilidade.


A mim o que me espantava era a falta de ambição da parturiente. Se se pode ser mãe de um serviço inteiro da Vista Alegre, porquê ficar-se por um bule e três chávenas? E parecia-me até um óptimo princípio para uma economia no casamento, as nubentes primeiro pariam o recheio da casa, mobílias, candelabros, carpetes, panelas e tachos, depois a própria casa, e só depois casariam.

Há coisas que não são do domínio das antinomias, de ser-se racionalista ou crédulo, mas simplesmente da ordem da sensatez e do conhecimento das coisas naturais: o adn humano e o “adn” da cerâmica não comportam qualquer tipo de coincidência ou de transitividade.

Não obstante, suponhamos que sim – também para os gregos do tempo do Aristóteles as mulheres podiam parir qualquer coisa, ostras ou ouriços, pois nunca se sabia que partidas podiam os deuses pregar – que uma mulher podia parir um bule. Onde foi registado? Como se chama a criatura? E como é que a STV abandonou um caso destes, não acompanhando a educação e infância do bule, vendendo para as televisões de fora um exclusivo desta monta? Que falta de inteligência comercial.

Agora há semanas que não ouço falar senão do régulo encarnado no hipopótamo. E que ouço quadros técnicos deste país porem as mãos no fogo em como é verdade… pois se o hipopótamo mudou de regime alimentar e agora come o picapau que fazia as delícias do régulo e encharca-se com o bom vinhito, pelo qual até o Santo Agostinho se pelava.

E eis-me na mesma encruzilhada: se comento, sou um racionalista desatado, se não comento sinto-me a observar os efeitos perniciosos uma alucinação colectiva.

Acontece, por outro lado, que literalmente acredito em tudo. Eu acredito piamente que o facto do régulo ter encarnado no hipopótamo constitui uma demonstração de vanidade total dos poderes sobrenaturais do régulo. Na cadeia evolutiva dos seres, para citar Pascal, estando o homem encravado entre a besta e o anjo (para dar o nome de uma figura ao espírito), qual a vantagem de voltar em hipopótamo?

É um retrocesso. Pode até ser verdade mas é absolutamente improdutivo. Vejam lá o extremo poder que alguém exibe voltando em hipopótamo! Não seria preferível possuir uma criança e voltar como mestre-escola, o maior da região e arredores? Voltar em hipopótamo parece-me o mais disparatado dispêndio de energias. Ainda por cima pervertendo a natureza sã do hipopótamo, tornando-o alcoólico. E o pior é que vejo a mesma absoluta inépcia comercial por parte da TVM. Como é que se tem um assunto desta natureza entre mãos e não se consegue fazer uma série de 18 episódios com ele, vendendo-o em todos os canais internacionais? Será que, na verdade, eles próprios não acreditam nas suas tradições? Há, em tanta improdutividade, qualquer coisa que me escapa.

Repito, eu acredito que o régulo tenha voltado em hipopótamo. Porém não vejo a utilidade do fenómeno. Nem para a comunidade, nem para o hipopótamo. Ou antes, para este até discirno um sinal positivo: magnificado em vinho, na próxima encarnação ressuscitará em régulo.

O que eu consegui enxergar, na reportagem, foi o aproveitamento político. O responsável provincial que lá foi prestar homenagem ao hipopótamo-régulo, confirmou a comunidade na identidade das suas tradições e deixou-a contentinha e refém do seu secular obscurantismo. E, aliviem-se as almas beatas, o dinheirinho gasto em vinho não foi desviado em sandálias para as crianças.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

[cada mulher é uma ilha] ...que o mar só toca porque quer




O dia em que o Índico se tornou frio e distante e decidiu esquivar-se ao contacto íntimo e envolvente com o seu corpo... Nesse dia, a mulher, alheia a tudo quanto já tinha deixado de existir em seu redor, apanhava marisco na maré-vaza...



...no final do dia, a mulher, com o cesto cheio, levantou a cabeça e seguiu o seu caminho por entre as águas, acreditando ainda que pelo menos o mar e o céu são garantidos... e nunca chegou a perceber que o mar nos toca apenas porque quer. E o céu só ilumina quem ama...
(Ilha de Moçambique, Nampula)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

[o regresso a iapala] em jeito de epílogo...






O regresso a Iapala...
(Nampula, Moçambique)

(...continuando a história que começou aqui...)

E no final da semana voltámos para Iapala. Íamos todos eufóricos e de coração leve. O carro, que à ida tinha parecido o carro dos loucos, parecia agora o carro do circo, connosco a cantar estrada fora. Eu com uma alma nova, já com o sono atrasado em dia, a Inês e o Sr. Rafael totalmente renascidos e o Cachimo felicíssimo ao meu lado, amoroso e trocando comigo olhares cúmplices. A família a quem tínhamos dado boleia para o Hospital Central bateu-nos à porta dias antes da partida e partilharam o carro connosco. Claro que tivemos outro furo. No mesmo pneu, que não devia ter ficado bem consertado na oficina… Desta vez, sem crianças doentes e sem angústias, mudámo-lo nós. Todos juntos, num trabalho em equipa, os risos que se diluíam no meio do silêncio e do cheiro da savana. A Inês foi recebida em euforia pelas outras meninas da casa, a Irmã Lurdes ficou comovidíssima e a madrinha dela cumpriu de alma e coração a intenção de lhe pagar os estudos até ao fim da faculdade.

Foi na semana seguinte, em Iapala, que conheci o J. F., director da ONG com que colaboro. Chegou com um padre comboniano para visitar a Missão e o trabalho da Irmã Lurdes com os leprosos. Encontrou-me no hospital. Vinha a comentar, na sua boa disposição, que se devia ter inadvertidamente transformado num homem muito mais respeitável durante viagem, porque todos os polícias por que tinha passado o tinham tratado por “Sr. Padre”.

– Ou terá sido só da barriga? É que o Padre Alberto é muito mais magro do que eu e os polícias acharam todos que ele era o meu empregado. Ahaha!
– Sim, só pode ter sido isso – brincava o Padre Alberto – eu ao menos tenho cara de empregado de padre, sempre me “emprestas” alguma dignidade. Podia ser pior. Podia ter cara de empregado das finanças…

Foi uma noite de boa disposição! Falou-me do trabalho da associação na luta para a erradicação da lepra e na assistência médica e moral aos doentes. Eu estava tocadíssima pela história da Inês. Nunca antes tinha sentido tão na pele o sentido da palavra “estigma”. Daí que quando, meses depois, me convidaram para ir novamente para Moçambique integrada no programa de combate à lepra emocionei-me. Claro que aceitaria. Por pouco tempo que fosse. Se pudesse devolver a vida a alguém que ainda tivesse vida, a minha própria vida teria mais sentido.

E pronto, foi assim que tudo começou. O que se seguiu, talvez um dia vos conte... Acompanhei outros voluntários no seu trabalho lindíssimo. E fui testemunha de verdadeiros milagres. E assisti à alegria de ver devolvido um futuro a muitas vidas que afinal não tinham terminado!

No ano seguinte a Irmã Lurdes fundou a missão do Gilé, na Zambézia (como foi que ele teve coragem de deixar Iapala é coisa que ainda hoje me intriga...). A Inês foi com ela porque em Iapala só havia escola até à 7ª classe. Completou a 12ª no Gilé e foi depois estudar enfermagem para Quelimane. A última vez que soube dela, estava a trabalhar em Tete, já com o curso tirado e, imagino, casada e já com filhos. Os pais ainda hoje de vez em quando me telefonam ou mandam SMS a agradecer o que fiz pela filha. Por vezes, quando alguma das Irmãs vem a Portugal, mandam-me pequenos presentes: castanha de caju, café da sua machamba, desenhos feitos pelos irmãos mais novos da minha menina. Enchem-me a alma. Quero acreditar que ela é feliz.

Obrigada a todos os que vieram comigo nesta viagem...
(um) beijo de mulata

[coisas da zambézia] a província mais africana de moçambique






Imagens do Gilé, Mulevala e Milevane, da província mais improvável e africana de Moçambique.
(Zambézia, Moçambique)

É também da Zambézia que nos chega uma das maiores improbabilidades da cultura africana. Uma notícia recente tem sido objecto de discussão acesa e recorrente...
Um régulo ter-se-á metamoforseado em hipopótamo após a sua morte, na localidade de Pinda, distrito de Morrumbala, na Zambézia. Trata-se do régulo Luis Dambuenda, que perdeu a vida em Fevereiro último, vítima de doença.

Segunda a Rádio Moçambique, que faz fé nos depoimentos dos familiares e dos residentes locais, uma semana após o funeral, "os seus espíritos transformaram-se num hipopótamo". Dados recolhidos no local pela Rádio Moçambique indicam que o "animal" é inofensivo e vive actualmente no rio Chire, junto à travessia de Pinda para Mutarara, distrito de Tete.

Por vezes, o "Régulo-hipopótamo" sai da água, pesseia pela povoação de Dambuenda, sem fazer mal aos seus subditos, consome vários alimentos, incluindo bebidas alcoólicas, além de brincar com crianças da zona. O insólito tornou-se um fenómeno de atracção para os residentes locais e pessoas que usam a travessia do rio Chire, de Pinda para Mutarara e vice-versa.

O Governador da Zambézia, Francisco Itai Meque, que se deslocou ao local, disse que foi informado de que é tradição naquela família as pessoas transformarem-se em animais depois da morte. Meque foi informado também que os anteriores régulos, já falecidos, transformaram-se também eles em leões ou cobras, conforme a sua escolha.

A história não acaba aqui, claro que continua...

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

[outras palavras] reconstruir-se...



Homem triste à janela...
(Ilha de Moçambique, Nampula)
Foto da net. Mais uma vez lamento mas não tenho o link...


Demoro-me no outro lado de mim
porque me atrai
esse ser impossível
que sou
esse ser que me nega
... para que seja ainda eu

Porque desejo esse alguém
que me invade e me ocupa
que me usurpou a palavra e o gesto
me fez estrangeiro do meu corpo
e me deixou mudo, contemplando-me.

Lanço-me na procura da minha pedra
no infindável trabalho
de me reconstruir
recolhendo os sinais do meu desaparecimento
percorrendo o revés da viagem
para regressar a um lugar inabitável.

Todas as vezes que me venci
não me separei do meu sonho derrotado
e, assim, me fiz nuvem
reparti-me em infinitas gotas
para que fosse bebido, vertido, transpirado
e voltasse de novo a ser céu
transparência de azul, harmonia perfeita
e poder regressar ao lugar interior
para me deitar, de novo,
no sangue que me iniciou.

Mia Couto

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

[aviso à navegação] a história da inês chegou ao fim!

Dois meses depois, com angústias pelo meio, reclamações, unhas roídas, desistências, risos e desesperos, a história da Inês e do Sr. Rafael chega ao fim com todos vivos e saudáveis. Há ainda umas pontas soltas e por isso vou ter de fazer um epílogo (sim, que qualquer história que se preze tem sempre um epílogo), até porque ainda vos vou contar como foi que regressámos a Iapala e, mais importante do que tudo o resto, o que foi que fiz com o que esta história me ensinou, que não foi nada pouco... A todos os que conseguiram chegar ao fim da história: os meus parabéns! A vida afinal também pode ser simples.

[welcome to mozambique] enfim, tudo se compõe...

(...continuando a história que começou aqui...)

Nessa noite a terra tremeu. Literalmente. Um terramoto violento, de 7,5 na escala de Richter, com epicentro em Manica, a 800 km do jardim da casa das Irmãs, onde eu passeava, olhando a lua e namorando a noite negra e ardente do Cruzeiro do Sul. [Já vos contei a história...]

No dia seguinte o Sr. Rafael acordou muito mais orientado. Comeu, colaborou em tudo, tomou os medicamentos. A Inês chegou logo às 8 da manhã, terminando com a minha ansiedade. Não me sentia capaz de esperar até à hora de almoço. Quando destapei as feridas, estava tudo muito melhor! Os olhos da Inês brilharam pela primeira vez em semanas e semanas.

– Ah… então não é lepra!
– Claro que não, Inês, já te tinha dito. E mesmo que fosse, princesa! Lepra tem cura.
– Pois… mas na trad’ção não tem.
– O que é que isso quer dizer?
– Quer dizer que a doença tem cura, mas a pessoa fica marcada.
– Pois… mas isso tem outro nome, Inês. Isso chama-se estigma. E é uma coisa muito feia e injusta. Ninguém tem culpa de ficar doente.

Os olhos dela fixaram-se. Como se alguém tivesse dito o que ela mal se atrevia a pensar, mas que também sentia…
– E só ficamos marcados se acreditarmos nisso! Se não acreditares não ficas marcada. Inês, não deixes que te digam que tens lepra. Nunca mais. Isso é psoríase. E mesmo que fosse, minha querida! Lepra é uma doença vulgar, não é “tradição”, como toda a gente diz.
– Sim, tia P…
– Mas mudaste as ligaduras?
– Sim, o meu tio mudou porque se molharam.
– O teu tio é enfermeiro?
– Não, é estofador. Tia P. conhece-o.
– Ah, sim, o “tio grande”! Jeitoso, o teu tio: estão mais bem colocadas do que as minhas… Deve ser da profissão. Ser estofador deve dar-lhe muito à-vontade com os tecidos…

Já só me apetecia brincar e rir… A Inês deu a sua primeira gargalhada. No resto da semana vi a Inês todos os dias. Parecia que renascia de dia para dia. Que voltava a endireitar a cabeça e a ter novamente carne para encher a pele que cicatrizava. Voltou a falar, a sorrir, a cantar. O Sr. Rafael também melhorava de dia para dia e estava feliz porque pela primeira vez em muitos anos não sentia vontade de beber! E lembrava-se do terror que tinha sentido quando vira os bichos no seu quarto. Lembrava-se da sensação de morte iminente que tivera nessa altura. Estava feliz por ainda estar vivo e por as alucinações se terem ido embora. Curiosamente repetia para quem o quisesse ouvir, que aquilo que vira não tinham sido espíritos. Que não fazia sentido. Não sabia bem explicar, mas parecia-lhe mais que tinham sido “coisas da sua cabeça”.

Já o Sr. Revenda, andava maravilhado… De cada vez que passava por mim, olhava-me, num misto de pasmo, admiração e medo… Afinal também havia feiticeiros brancos. Isso é que nunca lhe tinha passado pela cabeça. Uma das Irmãs ouviu-o, dias depois, a referir-se a mim em conversa com um outro empregado chamando-me Mukhulukana*. Às vezes, num momento de maior audácia, puxava o assunto e parecia que fazia menção de me perguntar como é que eu tinha conseguido exorcizar os espíritos do corpo do Sr. Rafael, mas arrependia-se de imediato e desviava a conversa. Por um lado, eu podia ser perigosa e usar os meus poderes contra ele, mas eu sentia que aquilo que o impedia de fazer “a pergunta” não era só isso. Provavelmente ele pressentia que talvez a minha resposta pudesse implicar rever os seus conceitos acerca do mundo tal como ele o entendia. Rever todas as ideias sobre os antepassados, o mundo dos vivos e dos mortos e as leis que regem a vida. E isso era ainda mais perigoso e ameaçador… Por isso continha-se.

Mas ele pressentia que tinha estado perante algo de muito raro. Por vezes parecia que tinha tido um vislumbre de um mundo para lá da tradição, onde a tradição podia não ter lugar, onde as doenças podem não ser castigos, onde pessoas comuns, como a Inês e o Sr. Rafael, podem ter uma segunda oportunidade sem recorrer a poderes especiais… Mas eu não insisti. A vida não é assim tão simples. Não se pode levar um homem a deixar de acreditar no conjunto de crenças que estruturaram todo o seu pensamento, sob pena de o deixar sem um sentido para a vida. Mas talvez estes exemplos pudessem ter lançado uma semente e, um dia, caso alguém da sua família viesse a padecer de uma doença grave, talvez ele se lembrasse de mim com esperança e procurasse ajuda de um médico e não de um curandeiro.

*Mukhulukana - Palavra macua para curandeiro ou médico tradicional.

(continua...)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

[vozes brancas* #57] espírito woodstock

Esta tarde eu e Mr. B., o meu sobrinho de três anos, estávamos animadamente a montar o antiquíssimo presépio dos avós, com cenas da vida campestre e íamos tirando as figuras de dentro de um cesto enorme e desembrulhando-as do papel de jornal. Cada figura era uma surpresa e protagonista de uma história mais ou menos fiel à oficial, com algumas adaptações, que penso que no texto original não estavam nem o casal de moleiros à porta do moinho, nem os patinhos no rio, nem os pescadores sentados na ponte a pescar tubarões, nem os soldados a tentar trepar as muralhas do castelo para ir salvar a princesa, nem o cão vadio a roubar as galinhas ao pastor. Já íamos a meio das figuras quando chegou a vez do São José, habitualmente a figura com que Mr. B. se identifica. Vi-lhe a indignação estampada no rosto quando o desembrulhou.

- Oh, tem barba!

Mr. B. tem uma aversão visceral a homens de barba comprida. Não sei concretamente o motivo, mas penso que é um misto de medo e repugnância. Pela reacção dele, os homens com barba parecem-lhe uma encarnação áspera, feia e pouco asseada do lobo mau...

- Sim, o pai do Jesus tinha barba porque já era um senhor muito velhinho quando o Jesus nasceu e o Jesus, que era muito maroto quando era pequenino, gostava de puxar a barba ao pai na brincadeira...
- [Ignorando ostensivamente a minha história do menino e das barbas] E o que é isto?
- É a caminha do Jesus, feita de palhinhas, porque ele nasceu num estábulo.
- E isto?
- É a mangedoura, onde comiam o burrinho e a vaquinha que estiveram a aquecer o menino Jesus a noite inteira quando ele nasceu... É que estava muito frio. [Valha-me Deus, que a história do Natal é mesmo uma Alice no País das Maravilhas...]
- E a cozinha? Onde é que comem o pai e a mãe?
- A cozinha é lá fora, perto do moinho. A Nossa Senhora e os pastores faziam uma fogueira e punham as panelas ao lume para fazer o jantar...
- E a casa de banho?
- Não havia casa de banho, os estábulos não tinham casas de banho nem água.

Nisto, Mr. B. pega no São José e leva-o para a outra ponta do presépio, onde estava o riacho, a ponte e os patinhos...
- O que é que o São José foi ali fazer, B.?
- Foi ao rio fazer a barba!

[Ah, temos homem! Já pode ir com a tia para a savana, que um homem nunca se atrapalha!]

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[o encontro] ...e a inês, finalmente, veio ter comigo...

(...continuando a história que começou aqui...)

Já passava das 19:00 quando regressámos a casa com o Sr. Rafael. Mas, para meu desespero, as Irmãs informaram-me de que a Inês tinha chegado às 17:00, tinha esperado, esperado, esperado e, por fim, vendo a hora do último chapa aproximar-se, tinha desistido e ido embora dez minutos antes…

– Dissemos-lhe que voltasse amanhã à hora de almoço.
– Oh, meu Deus, pobrezinha… E acha que ela volta?
– Acho que sim. Fartámo-nos de lhe dizer: “Aquela médica vai curar-te!” e ela ao fim quase que já sorria.
Quase que já sorria… Ela está deprimidíssima, não é?
– Sim, infelizmente… Prepare-se, P., que aquela menina está destruída. Está um frangalho autêntico! Faz mesmo impressão olhar para ela. Só pele e osso e coberta de chagas dos pés à cabeça. Feridas infectadas em cada centímetro de pele, não admira nada que as pessoas tenham pensado que era lepra. Mas só me parece que se calhar tem SIDA.
– Ah, isso não tem, que eu vi as análises dela no Anchilo. É negativa. Mas tem feridas?
– Sim, feridas horríveis, todas infectadas. Aquela menina é uma chaga viva… Pensámos mesmo que só podia ser SIDA. E acha que não é mesmo lepra? Às tantas uma pessoa já duvida…
– Ah, lepra também não é… Nem uma coisa nem outra.
– Então ainda bem. É uma excelente notícia… E conseguiu algum medicamento?
– Só um. Mas não é de todo o mais apropriado para a psoríase. E então com feridas infectadas pode impedir a cicatrização e agravar a infeção… Nem sei que faça…

Só me apetecia chorar por não ter chegado a tempo. Que provações, caramba! Mas podia ser que no dia seguinte tivesse mais sorte na farmácia…

Passei mais uma noite praticamente em claro, com um olho no Sr. Rafael e outro nos meus livros, a estudar a melhor maneira de tratar a minha menina com o que podia haver em Nampula e, de manhã, logo depois do mata-bicho fui plantar-me à porta da maior farmácia da cidade para ser a primeira a entrar assim que abrisse. Tinha duas horas para meter novamente o meu ar mais decidido, a minha voz "o-meu-pai-é-o-dono-disto-tudo", convencer o empregado a deixar-me vasculhar em todas as gavetas e tentar descobrir algum medicamento que me servisse. Depois tinha de ir ver os meninos da escolinha.

Ao fim de duas horas tinha encontrado corticóides de várias potências diferentes, um antibiótico para as infeções da pele, um antissético para as feridas e sabão de alcatrão. Não havia mais nada. Já estava mentalizada de que ia cometer o maior sacrilégio que existe: colocar um corticóide numa ferida infectada numa criança com psoríase. Valesse-me Nossa Senhora. Ou o antibiótico. Ou dos dois o que tivesse mais força… E à hora de almoço vi chegar a Inês.

Quando achamos que já vimos de tudo, quando pensamos que já vimos todas as desgraças do mundo, que já vimos pessoas a morrer e a sofrer, a suportar aquilo que achamos que vai para além da força humana, parece que deixamos de estar preparados para aceitar que pode haver pior. Ainda pior.

Quem eu vi chegar nesse dia, sozinha e a medo, foi uma menina que tinha sido literalmente enterrada em vida pelas pessoas que mais a amavam… Uma menina sem brilho no olhar, pálida, esquelética, sem voz, com as feridas infectadas cobertas por uma pasta negra e seca de medicamento tradicional, restos dos dias mais horríveis da sua vida que permaneciam colados à pele. E que só saíram arrastando quase metade da pele com eles.

– Inês, ainda bem que vieste, estou mesmo feliz por teres vindo, estava à tua espera!

Baixou os olhos e nem respondeu. Obviamente eu não podia estar a falar a sério, como é que se pode ficar feliz por ver uma leprosa?

– A Irmã Lurdes, em Iapala, está muito preocupada contigo porque não voltaste à escola depois das férias, pediu-me para te ir procurar. Ela quer muito que voltes para Iapala para completares os estudos.
– Mas eu não posso voltar, eu estou… doente – a voz quase apagada, depois de tantos dias sem falar com ninguém e a acreditar que a vida tinha terminado…
– Mas vais ficar boa, eu estou aqui para te tratar. Sabes, a tua madrinha escreveu à Irmã Lurdes para lhe dizer que se quiseres continuar a estudar, ela tem muito gosto em continuar a pagar-te os estudos. Ela também está muito preocupada contigo…

Não era bem verdade, claro, a madrinha da Inês, em Itália, por mais bem intencionada e preocupada que fosse com a sua afilhada, não conhecia certamente a realidade de Moçambique e provavelmente não fazia a menor ideia do que se passava com ela. Mas podia ser mais uma referência que fizesse a Inês voltar à realidade… Olhou-me com estranheza.

– Sabes, tu tens uma madrinha na Europa que te paga os estudos, que reza por ti e se preocupa contigo.
– Sim eu sei… é italiana… ela reza por mim?
– Claro, Inês. E eu também tenho rezado muito. E a Irmã Lurdes e as outras meninas também em Iapala.
– Mas eu tenho… lepra – ousava até dizer o nome da doença que a amaldiçoava.
– Sim, estás doente. Mas não tens lepra, já disse aos teus pais e ao teu tio que isso não é lepra. E eu e as Irmãs vamos cuidar de ti. Tu tens de ficar boa!

Baixou os olhos novamente, derrotada. Não ia ser fácil fazê-la voltar a acreditar em si própria e que o futuro ainda podia existir… Tinha a humilhação colada à pele. Fomos para o jardim para lhe darmos um banho de mangueira. Um banho que durou quase duas horas para lenta e delicadamente lhe descolar aquela papa horrível, negra e nauseabunda que lhe infectara as lesões. Com ela sentada numa cadeira no jardim, sob o sol tórrido da tarde, eu e as Irmãs lavámos-lhe cada centímetro de pele com uma paciência de Job e, por fim, enchi-me de coragem e, com um sorriso nos lábios e um pedido de ajuda a Deus (ou com um “Deus me perdoe”, nem sei bem…) apliquei-lhe o corticóide mais potente que tinha encontrado, em toda a pele, e envolvi-a em ligaduras. Tomou a primeira dose dos antibióticos à minha frente. À cautela dei-lhe dois diferentes não fosse a infecção piorar…

– Hoje vais de noiva, Inês, assim toda branquinha, vestida de ligaduras – a boa disposição da Irmã Conceição fê-la quase sorrir pela primeira vez…

Fiquei a vê-la desaparecer em direção ao chapa, com a pior dúvida que um médico pode ter: “Será que não lhe fiz pior?” Mas era a minha única opção… Ou pelo menos eu não tinha visto outra. Tinha-me resolvido a arriscar. A velha máxima da Medicina ecoava-me na mente: Primum non nocere, acima de tudo não fazer mal! Naquele momento só me lembrava das aulas de Dermatologia e da voz do meu professor que dizia: “Nunca se aplica um corticóide sem consultar um Dermatologista primeiro!” Claro que não era verdade, mas eu na altura ainda não tinha quase experiência nenhuma… Hoje, com vários anos de prática, esta angústia parece-me completamente despropositada, mas naquele dia acho que nem me consegui acalmar.

Quando voltei para o jardim para arrumar os medicamentos, vi uma das aspirantes a Irmãs que me ajudara a dar banho à Inês, também ela, curiosamente, natural do bairro de Napipine, a lavar energicamente as pernas e as mãos. Claramente tinha medo de que a água que lavara a Inês e lhe salpicara o corpo a contagiasse. Sim, não valia a pena ter a veleidade de pensar que tinha acreditado em mim quando lhe tinha dito que a Inês não tinha lepra. Fiquei triste, confesso. Mas pensando bem, já tinha sido um esforço incrível e louvável ter tocado e dado banho a uma leprosa.

– Não se preocupe, Irmã, a Inês não tem nenhuma doença contagiosa.
– Sim, obrigada, P..

(continua...)

sábado, 3 de dezembro de 2011

[à espera da inês] ...nada, não tem!




Na casa das Irmãs da Caridade...
(Nampula, Moçambique)

(...continuando a história que começou aqui...)

Acordei sobressaltada. Já era tarde. Tinha de me levantar e correr para a farmácia e depois para casa das Irmãs da Caridade porque precisava de estar em casa às 18:00 para receber a Inês, que viria hoje… quer dizer… será que vinha mesmo? Bem, podia ser que sim… Tinha de me preparar mentalmente para que não viesse, mas o tio que não pensasse que eu ia desistir. Ele que me aguardasse porque eu, nestas coisas, consigo ser chata como a potassa! Ó se consigo!

Mas se já me tinham advertido de que ia ser difícil encontrar algum medicamento contra a psoríase, procurá-lo foi uma autêntica tortura. Comecei numa ponta da cidade e fui correndo as farmácias todas que encontrava no caminho para casa das Irmãs. “Nada, não tem.”, era a resposta invariável para qualquer pergunta. Mas não era possível! Tinham de ter! E insistia, perguntava por todos os nomes comerciais de que me lembrava, perguntava pelos princípios activos, exigia falar com os donos das farmácias. “Nada, Dona, não tem esse medicamento aqui… Mesmo penso que em toda cidade de Nampula não tem. Nunca ouvi falar. Talvez só no Maputo…”

Eu zangava-me, na minha eterna dificuldade de aceitar um “não” como resposta. Empregados e patrões permaneciam impassíveis. Não era nada com eles. Se eu não encontrava o que precisava, isso era problema meu, não deles. Mas… mas… e não se poderia encomendar? “É d’fícil, Dona. Vai demorar muito tempo.” Acabei por interromper o périplo à quarta ou quinta farmácia. O tempo estava a passar e tinha de pelo menos ver a Inês, confirmar o diagnóstico e prometer-lhe, mais uma vez, que a haveria de curar, nem que mandasse vir os medicamentos de Portugal.

Cheguei esbaforida a casa das Irmãs da Caridade. Levava um nó na garganta e uma sensação terrível de derrota. Desde o princípio que a história da Inês me estava a deixar perturbada e com a sensação de que tudo podia correr mal. Mas, fossem as minhas angústias fundadas ou sem qualquer fundamento, a verdade é que aquela história macabra me estava a consumir...

Fui imediatamente rodeada pelas dezenas de crianças do orfanato, que brincavam no pátio e, desesperadamente, pediam colo a sorrir a quem quer que passasse por elas, numa carência de afectos e vinculação que só aumentava o meu nó na garganta. Recostado num dos bancos do pátio, o Sr. Revenda em pessoa ressonava num equilíbrio precário, quase desaparecido entre as crianças que lhe tinham saltado para o colo. De vez em quando abria um olho para lhes fazer uma festa ou acomodar mais um petiz, nem que fosse apenas encostado a ele, ou quando alguma criança mais obstinada lhe puxava por um braço ou uma perna, tentando “destronar” as donas do colo, e voltava a tentar adormecer naquela posição cómica de avô enorme, com um colo do tamanho de uma família inteira. Apontou-me a custo a porta por onde deveria entrar para encontrar as Irmãs e o Sr. Rafael. Peguei ao colo numa das meninas, que desde o portão não desistia de me sorrir, tentando trepar por mim acima e entrei em casa.

Duas Irmãs afadigavam-se em volta do Sr. Rafael, acompanhadas pelas “minhas” Irmãs. Só praticamente naquele instante tinham conseguido canalizar uma veia ao Sr. Rafael, que se debatia, cuspia, esperneava, mordia e blasfemava sem dar tréguas. Tinha tido duas convulsões. “Mas por hipoglicémia.”, garantiram-me, e tinham durado nem um minuto ao todo…

– Só quando entrou em coma depois das convulsões é que parou de se debater e conseguimos colocar-lhe o cateter, assim com um golpe de sorte. Tem umas veias péssimas e como está desidratado é ainda mais difícil…
Entretanto já recuperara a consciência. Mas a glicemia continuava instável.
– Irmãs, temos algum aparelho em casa para medir a glicemia?
– Não, não temos…
– Nós temos um a mais que vos podemos dispensar… Realmente, depois destas convulsões é mais seguro só levarem o doente para casa se tiverem maneira de medir a glicemia – as Irmãs da Caridade eram realmente extraordinárias! –, o problema é que não temos fitas para o aparelho…
– E será que se podem comprar em algum sítio?
– Sim, a farmácia Canani ou a Calêndula costumam ter fitas que dão para esta máquina.
– Ai, credo! Só de pensar que vou ter de lá voltar… Hoje já apanhei uma canseira de farmácias! E um desgosto tão grande que até estou angustiada…
– Então? Não conseguiu os medicamentos para a Inês?

Já todas sabiam da história da minha menina.
– Não… devo ter corrido umas cinco farmácias, mas nenhuma tinha um dos medicamentos que fosse. Nem sei como vou fazer…
– Mas que doença tem ela? Pode ser que nós tenhamos alguma coisa
– Não tenho a certeza, mas acho que tem psoríase.
– Ah, para a psoríase não temos nada…
– Pois… nem nas farmácias…
– Mas procurou bem?
– Bem… fui a umas quantas. E insisti muito em todas. Mas não vou desistir, vou procurar em todas as da cidade.
– Não, pergunto se procurou mesmo em cada farmácia.
– Como?
– Sim, eles dizem sempre “Nada, não tem." Sempre! E às vezes até sabem que têm, mas está na gaveta de cima e não lhes apetece ir buscar um banco. Ou outras vezes não sabem que têm. Os empregados das farmácias não são farmacêuticos, não sabem sequer os nomes dos medicamentos. Só sabem os mais conhecidos. Todos os outros só se vendem quando está o patrão. E mesmo assim às vezes até os donos têm surpresas!
– Por acaso apeteceu-me várias vezes vasculhar naquelas gavetas… Mas não tinha tempo…
– Ah, mas é isso que nós fazemos! Sem pejo nenhum.
– Bem, eu também não tenho vergonha de pedir para procurar. Mas acha que vou conseguir encontrar alguma coisa?
– Em último caso talvez encontre corticóides em pomada.
– Ah, isso não queria mesmo nada…
– Pois, não é o melhor, mas duvido que encontre mais alguma coisa. E mesmo os corticóides não se encontram facilmente. É preciso muita persistência.
– Ok, então lá vou eu outra vez. E rápido, que já são 17:30 e se não me despacho então é que nem Inês nem Sr. Rafael, não trato nenhum hoje!
– Sim, então vá, que as Irmãs da Caridade já perderam muito tempo connosco hoje e têm de ir cuidar dos meninos delas. Eu fico aqui a cuidar do Sr. Rafael e a Irmã Assunção vai consigo à farmácia comprar as fitas para a máquina.
– Vamos então…

Parecia que me tinha nascido uma alma nova! Se não fosse o delirium tremens do Sr. Rafael nunca nos teríamos lembrado de ir procurar as Irmãs da Caridade para saber o “truque” para encontrar medicamentos em Nampula! Não ia ser fácil, já sabia. Mas era possível.
A farmácia estava apinhada de gente àquela hora, próximo da hora do fecho, mas os empregados reconheceram a Irmã Assunção e chamaram-nos para trás do balcão.

– Tem fitas para este aparelho?
– Nada, não tem…
– Tem a certeza?
– Sim, Irmã.
– Mas olhe, dá-me licença que procure?
– Hum…
– Sim, não se preocupe que eu procuro – voltei a pôr o meu tom de voz de mulher-que-não-aceita-um-"não"-como-resposta –, se tiver as fita, estão arrumadas onde?
– Ali, nas gavetas junto ao tecto. Tem um escadote ali.

Troquei um sorriso com a Irmã Assunção, como quem diz: “Pois… confere!” E foi assim que depois de muito vasculhar naquelas gavetas caóticas encontrei as benditas fitas e uma pomada com corticóide.

– Bingo! Encontrei! Muito obrigada, Senhor. Agradecemos muito a gentileza – pus o meu melhor e mais diplomático sorriso forçado. Claro que o que me apetecia era apertar o pescoço àquele homem, mas enfim, pelo menos tinha-me deixado remexer em tudo. Se calhar arriscando-se a problemas com o patrão…
– De nada, Irmã…
– Podemos pagar rápido? Estamos com pressa.
– Sim, eu sei. Mukunyas* têm sempre pressa!

*Mukunya - Palavra macua que designa um indivíduo de pele clara.
 
(continua...)

[welcome to mozambique] estou a vender caju, mamã...


Tenho caju para vender, mamã...
(Niassa, à Beira do Grande Lago)
Foto da minha amiga M.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

[a saga continua] ...ainda não desisti, mas estou exausta...


Os meninos da escolinha das Irmãs, na fila para o almoço.
(Nampula, Moçambique)

(...continuando a história que começou aqui...)

Depois da saída do Sr. Cachimo (comigo obviamente a tratá-lo por tu e sem o "senhor" antes do nome) e da terceira dose de tranquilizantes, o Sr. Rafael adormeceu finalmente pacífico e pude então dormir umas horas na cama ao seu lado, acalentada pela ternura que tinha descido sobre nós e invadido toda a madrugada, até que as Irmãs me vieram render. Daquele lado do convento, o chamamento da mesquita e o uivo da “cadela muçulmana” praticamente não se ouviam, e os cânticos das Laudes foram nessa manhã assim uma espécie de despertador de luxo, que teve o condão de trazer lentamente a luz de volta à parte do meu cérebro que quase tinha deixado de acreditar que o sol voltaria a romper um dia e continuava a repetir-me: "amanhã não existe!" Eram horas de me levantar para ir para a escolinha ver a segunda leva de meninos.

Não disse às Irmãs que praticamente não tinha dormido a noite inteira, mas o negrume por debaixo dos meus olhos quando aparece nunca engana ninguém e, enquanto eu mata-bichava*, elas trataram de reduzir para metade o número de crianças que eu veria nessa manhã. Quando cheguei à escolinha, deparei-me com uma fila muito menor de pedrinhas e pauzinhos à porta da secretaria, com que os pais marcavam a sua ordem de chegada, para se poderem tranquilamente sentar nas sombras por ali e não terem de estar de pé à torreira do sol enquanto esperavam a consulta. As senhas de vez estavam a começar a ser distribuídas pelo Sr. Rosário, numa cena hilariante, em que chamava as pessoas pelos objectos da fila: “Azulejo partido!” e alguém se levantava e gritava: “Presente!”

– Mas, Sr. Rosário, hoje há muito menos crianças do que ontem. O que foi que se passou? Fiz alguma coisa que tenha desagradado aos pais?
– Não, Doutora, as Irmãs disseram que hoje estava cansada e metade dos meninos passava para amanhã ou depois de amanhã.
– Ah, está bem…
– Doutora, estou a pidir um favor.
– Sim, se eu puder… diga.
– Meu sobrinho tem problema di olho…

[Lembram-se da história do Helder, que vos contei aqui há tempos? Foi uma história parecida com essa...]

E foi mais uma manhã intensa, passada entre histórias de pobreza, de fome, de orfandade e de viuvez, de irmãos e pais falecidos, de perdas tão difíceis para uma criança que acreditaríamos que não seria possível alguém voltar a levantar a cabeça, quanto mais sorrir e brincar com alegria, não fosse essas crianças estarem precisamente a sorrir e a brincar felizes lá fora no pátio antes de entrarem no meu gabinete de consulta e chegarem completamente afogueadas das correrias. Já não era coisa que me surpreendesse, a capacidade do ser humano, sobretudo das crianças, de recuperar a alegria de viver, desde que tivessem alguém que as amasse. E estas crianças eram, felizmente, muito amadas… Mais uma manhã a tentar falar macua entre a galhofa geral. Mas não me importava que se rissem de mim: era bom para desanuviar o ambiente, quebrar o gelo e aproximar-me dos pais.

Infeções, tuberculose, anemias, malárias… histórias de doenças de maus espíritos que faziam desmaiar as crianças e as punham a contorcer-se no chão, sacudidas por forças que quase as arrastavam para o outro lado do mundo e da vida. Para aquele lado de onde não se regressa mais, a não ser para cumprir rituais esquecidos ou para clamar justiça… Uma doença que para mim se chamava epilepsia, mas que para as famílias se chamava maldição ou punição… Com a ajuda dos tradutores tentei desmistificar a doença, convencer os pais de que epilepsia tinha tratamento e que não eram os espíritos que causavam as crises. Bastava tomar medicamentos todos os dias… Surpreendentemente consegui que aderissem. Pouco tempo depois vim a saber que os pais tinham ido agradecer às Irmãs porque os medicamentos tinham espantado os espíritos do corpo dos meninos!

Passei a manhã de tal forma embrenhada nas consultas, que só quando por fim me levantei para ir almoçar me lembrei novamente da Inês e do Sr. Rafael… Agora sim, estava exausta. Bendita intuição das Irmãs, que as tinha feito reduzir para metade o número de meninos que eu teria de ver nesse dia. Depois de almoço tinha de dormir a sesta, nem que fosse uma hora. Mas antes de me ir deitar fui ver como estava o Sr. Rafael. Abri a porta da casa, que estava só no trinco e tropecei desastradamente no Sr. Revenda que, por algum motivo bizarro que não descortinei de imediato, se deitara no chão encostado à porta de casa e dormia um sono sobressaltado. Acordou com um olhar apavorado e colocou-se de pé num segundo e só então me reconheceu.

– Doutora… – a voz meio perturbada, meio aliviada.
– Vinha ver como está o Sr. Rafael, Sr. Revenda. Desculpe tê-lo acordado… Mas não estaria mais confortável na sua cama?
– Não, Doutora. Mi deitei aqui porque estava cansado… Sr. Rafael está lá dentro.
– Obrigada.

Mas que local mais estranho para dormir… Quase parecia a história de uma tia minha, que se tornou anedota privada da família, quando uma tarde teve um ataque de sono tão grande que adormeceu nas escadas a caminho do quarto. Mas não, o Sr. Revenda, por mais sono que tivesse, não seria como a minha tia Maria José. Tinha-se deitado à porta de casa porque o terror do que estava a acontecer o deixara confuso: segundo a tradição, quando os espíritos rondam as casas, deve-se permanecer no interior, com as portas e janelas bem fechadas... mas onde ficar, para onde fugir quando é dentro da própria casa que está a ameaça? Não se tinha conseguido resolver, portanto acabara por decidir que provavelmente o local mais seguro seria perto da porta, por onde poderia ter de escapar a qualquer momento, quando os espíritos levassem o Sr. Rafael.

Apesar de as Irmãs o terem encarregado de continuar a dar soro oral ao doente, era uma ordem que não lhe fazia sentido nenhum. Em que é que beber soro ajudaria um homem obviamente já condenado à morte? Um homem que nem a intervenção do melhor curandeiro provavelmente já conseguiria salvar? Mas o problema é que o Sr. Rafael não tinha voltado a acordar desde a última dose de tranquilizantes que eu lhe tinha dado de manhã antes de sair. Também não tinha voltado a beber líquidos… e continuava agitado e a transpirar. Estava a ficar desidratado e podia estar em hipoglicémia… Se não o conseguisse fazer beber líquidos rapidamente ia acabar mesmo por ir para o hospital. E como é que ia ter tempo para procurar os medicamentos para a Inês com ele naquele estado?

Felizmente nesse momento chegaram as Irmãs com uma ideia brilhante: tinham ligado para as Irmãs da Caridade e elas, também habituadas a estas andanças, tinham-se disponibilizado imediatamente para lhe colocar um soro e, sorte das sortes, tinham recebido no dia anterior um tranquilizante apropriado para estes casos que se podia dar pela veia.

– Ah, que bom! É que acho que isto está mesmo a ficar incontrolável… E eu estou exausta. Há vários dias que não descanso nada.
– Deixe estar que nós o levamos. Vá lá ter depois para vermos se temos condições para o manter em casa ou se temos de o levar para o hospital… Esperemos que não. Sabe como é o Hospital Central, não sabe?
– Infelizmente sim…
– Então descanse, nem que seja uma ou duas horas…
– Obrigada!
– Obrigada nós! Sr. Revenda, precisamos da sua ajuda…

Continuava com mil preocupações, mas o cansaço era muito maior que qualquer aflição e no sossego do meu quarto, naquela cama estreita sob a rede mosquiteira que lhe dava um ar exótico, lá consegui adormecer num sono cheio de recordações dos momentos da noite anterior…

* Mata-bichar - Tomar o mata-bicho (pequeno-almoço). Não se esqueçam da mais fundamental regra de gramática em Moçambique: preferir sempre as conjugações divertidas às conjugações perifrásticas.

(continua...)

[welcome to mozambique] porque a S[a]ÍDA existe de certeza...


Campanha permanente da luta contra a SIDA.
(Tete, Moçambique)
Imagem daqui.

Porque hoje é o dia. Porque já houve um tempo em que me sentia derrotada quando via um doente infectado pelo vírus da SIDA. Mas porque sempre houve quem se recusasse a baixar os braços, agora um doente é um desafio contra o tempo, contra a doença e o preconceito, para interromper a cadeia de contágio e impedir que a doença se perpetue, enrolada no ciclo da pobreza. E porque há quem se recuse a baixar os braços, pensemos hoje nos doentes, sobretudo nas crianças e nos seus pais. Com carinho e esperança... Para que pelo menos não lhes falte um colo.

[inspiração para uma despedida] requiem em mal menor


Girl with umbrella 
 (Street art by Banksy, New Orleans)

Menina, o céu às vezes vinha sacudir as nuvens sobre os teus olhos para que o teu corpo as temperasse de sal (ou de saudade, que é a flor-de-sal à tona da memória)... e então o teu corpo transbordava. E o céu chovia. Ou chuviscava, pelo menos, que dizem que a chuva molha-tolos reaviva as memórias delicadas e reaquece as recordações que teimam em esfriar...

Mas sabes, esta noite sentiste o sol queimar-te a pele e então percebeste que era o sal do teu corpo que estava exausto. Eu sei quando foi que aconteceu. Foi quando o céu deixou de chorar por ti. Agora podes escolher: ir ao fundo da memória e chorar sozinha, com o sal grosseiro e sujo que não se esgota, ou ser feliz, sob um céu sem nuvens. E chorar só de vez em quando, com a caixinha de flor-de-sal que guardaste para as memórias felizes.

[a noite mais longa] e só quem vive no convento...

  (...continuando a história que começou aqui...)  

  – Doutora…
  – Sim, Sr. Cachimbo?
   – Eu tenho uma coisa para lhe dizer… Não me leve a mal. Eu até fico envergonhado, mas já lhe queria ter dito isto há muitos dias.

   – [Ó meu Deus, mas o que é que eu lhe vou responder? Será que deixei transparecer alguma coisa? Será que ele pensa que é possível? Ele não tem noção do mar de diferenças que nos separa?]…
   – Doutora, nós pertencemos a mundos diferentes e acho normal que eu não conheça nada do que a Doutora já viveu e que Doutora não saiba muito sobre a minha vida, por mais que falemos sobre isso… Nem sequer imaginamos, quer um quer outro, o que é o passado de cada um…
   – Isso é verdade, Sr. Cachimbo.
   – Sim, a Doutora fala de Lisboa e eu imagino uma cidade como Nampula, não consigo imaginar uma cidade maior do que essa. Mas sei que Lisboa é mil vezes melhor e maior, eu é que não tenho imaginação para chegar aí porque nunca vi outra cidade grande e os limites do meu pensamento são os limites do mundo que eu já percorri – era notório que se estava a esforçar para compor aquele raciocínio. – É o mesmo que eu tentar explicar à Doutora o que era a nossa vida durante a guerra. Dormir no mato, ter sempre medo, acordar e ter uma cobra debaixo da esteira ali aninhada porque estava quente ao pé de nós. E começar o dia a agradecer a Alá por a cobra não nos ter mordido… Eu posso explicar, mas Doutora não vai conseguir entender…
   – [Olha, agora deu-lhe para filosofar antes de me começar a falar de amor… Mas não está mal. Para um homem nascido no mato e criado numa sociedade e numa cultura tão machista, em que a mulher está garantida à partida e não tem de longe o mesmo valor que o homem, está a sair-se mesmo muito bem. Sorte da mulher que ele amar e acabar por ficar com ele… Mas, bolas, que responsabilidade, como é que eu agora lhe vou explicar que por mais que ele se esforce eu não vou querer nada, mas ainda assim transmitir-lhe que acho tudo muito bonito e que com uma mulher que o ame vai funcionar de certeza?] Sr. Cachimbo, é muito bonito o que me está a dizer… mas não é preciso, eu sei disso.
   – Mas eu quero dizer isto, Doutora, para Doutora não levar a mal o que eu tenho para dizer.
   – [Será que ainda consigo desviar a conversa?] Mas eu não levo a mal, acho normal que queira conversar. Eu também gosto de conversar consigo. E já viu como o Sr. Rafael está a melhorar com a medicação?
   – Ah, ainda bem… É que eu ando há muito tempo para lhe dizer isto…
   – [Bem, já não vou a tempo de chutar a conversa para canto… vamos lá agarrar o toiro pelos cornos!] O que é que tem para me dizer, Sr. Cachimbo?
   – Doutora, o meu nome não é Cachimbo…
   – [Hãn?!] Como?

   Um sorriso de alívio quase se transformou numa gargalhada sonora desconcertada. Tanta coisa para isto? Felizmente a penumbra do quarto era uma aliada.

   – Não é Cachimbo, é Cachimo.
   – Cachimo?
   – Sim, Cachimo, como Cássimo ou Kassim. É um nome muçulmano. Vem do Árabe. É nome de califas, quer dizer “aquele que pode dar" ou “aquele que divide”, não é cachimbo. Cachimbo é nome de vício.
   – Ah, desculpe, foi mesmo sem intenção de o ofender… Sabe que aqui é muito comum as pessoas terem nomes de objectos e Cachimbo podia ser um nome normal. Mas já podia ter dito há mais tempo, se isso o incomodava…
   – Sim, eu sei, Doutora, mas não queria fazê-la sentir mal.
   – Pois, mas não me envergonha, é um nome que eu não conhecia e percebi mal. Não foi de propósito.
   – Eu sei, Doutora… Doutora é uma mulher muito boa, com muito bom coração.
   – Obrigada, Sr. Cachimo... [Ah, graças a Deus, que alívio ele não me colocar numa situação tão constrangedora… Afinal era mais sensato do que eu pensava, felizmente.]
  
   O Sr. Rafael continuava a dormir mas a respiração dele, em muito pouco tempo, tinha deixado de estar tão tranquila e começava a agitar-se novamente. A duração de acção dos tranquilizantes estava a ser muito mais curta do que o que eu pensava. Nem duas horas depois, já se mexia novamente, quase acordado. Voltou a conseguir engolir água. Novamente a temperatura desregulada, a transpiração, os tremores e a agitação desorientada. Mas o coração continuava a bater rítmico e, desta vez, não chegou a estar consciente o suficiente para pensar que o estávamos a envenenar e não cuspiu água nenhuma. Dei-lhe nova dose de tranquilizantes, voltámos a arrefecê-lo com toalhas molhadas e a trocar os lençóis. Íamo-nos animando, numa conversa bem disposta sobre as nossas vidas, aquilo que gostávamos de fazer nas horas vagas. Ele falava-me da descoberta da internet num cibercafé de Nampula e de como tinha conseguido voltar a falar com o irmão que vivia em Cuba, eu falava-lhe de como gostava de música e de como me agradavam as músicas macuas que ouvia na igreja e à noite, no hospital, as mamãs a cantar aos filhos.

   Quanto ao resto da noite, acho que não a consigo contar propriamente. Lembro-me da ternura que foi caindo mansamente, envolvendo o quarto, lembro-me de uma penumbra interminável, de uma vela que bruxuleava e cansava os olhos, numa ameaça constante de se extinguir, de uma sensação de irrealidade, de um sol que nunca mais rompia, da cama ao lado da do Sr. Rafael, que foi muito mais do que uma cadeira desconfortável para os dois, de um sono e um cansaço tão intensos que mesmo com tudo o que foi acontecendo não saí daquele estado, entre o mareada e o letárgica. Tudo o resto, que relembro por vezes… a mim pertence. O que vos consigo contar também é que me recordo de um abraço forte ao início da madrugada, quando o Sr. Cachimo se foi embora, depois de ter estado comigo a noite inteira, de me ter impedido de adormecer e de ter dividido angústias e preocupações e esforços nos cuidados ao nosso doente, mesmo duvidando da minha explicação para a doença e provavelmente também com medo de ser “contaminado” pelos espíritos.

   Despediu-se com um “Obrigado por me ter chamado, fiquei muito feliz. Se precisar de mais alguma coisa volte a chamar-me.” Agradeci-lhe do fundo do coração. Não mencionei o assunto, mas tinha bem presente que ele me tinha ajudado a cuidar de um homem alcoólico, um homem totalmente impuro à luz da sua religião e com quem discutira dias antes.

(continua...)