- [Pai,] eu sou mesmo seu filho?
- É filho de quem então?
- Não sei, a mãe...
- As mães, as mães. Que é que ela lhe falou?
- Nada, pai. Ela nunca me contou nada.
- Pois eu lhe vou dizer uma coisa...
E calou-se. A sua voz se engasgou, parecia ter desistido em meio da garganta. Tentou recomeçar, mas redesistiu. Passou a mão pelo pescoço como se limpasse a voz pelo lado de fora. No enfim de um infinito, ele voltou a falar:
- Você é meu filho. E nunca volte a duvidar.
Batia com os dedos sobre os lábios, a lacrar o dito. Até me podia contar como eu fora concebido. Eu não fora gerado logo inicialmente, no início do casamento. Nem de uma só vez. Quando ele e minha mãe namoravam, sempre que o faziam, o céu se desabava em chuva. Debaixo do dilúvio, o casal se prosseguira amando. Faz conta não houvesse mundo nem chuva. Tinham suas razões: pois há ininterruptos anos que eles vinham fabricando seu único primeiro filho. Amavam-se sem paragem. De cada vez que seus corpos se cruzavam, diziam, estavam fabricando mais uma porção do corpinho do vindouro.
- Esta noite vamos fazer-lhe os olhos.
Como fosse esse o produto dessa noite, eles escolheram fazer amor sob o inteiro luar. Escolheram um descampado bem debaixo da lua. E assim fizeram, iluminados, dando seguimento à confecção do menino. Quantos tempos andaram nisso? Se encolhiam os ombros: um menino assim pode demorar a vida inteira...
- Está-me entender, filho?
Mia Couto in O Último Voo do Flamingo
Adoro!
ResponderEliminarLourencinha
Muito bonito! Obrigada por recordares este mimo que a minha memória já tinha deixado desvanecer! Beijinhos para a princesa das palavras!
ResponderEliminarVera
Lourencinha, obrigada!
ResponderEliminarVera, minha querida, adoro-te!
(um) beijo de mulata