domingo, 6 de março de 2011

[conta-me como foi que aconteceu] os dias "atrapalhados"

(continuando)

Aquelas duas aves raras eram… os meus anfitriões! O casal mais disfuncional que alguma vez conheci...

Ela moçambicana, mulata, muito bonita, bem arranjada e sempre maldisposta, com cara de poucos amigos. Ele português, mas já auto-proclamado moçambicano, branco, afável mas com um humor sádico e brejeiro, com a pele tisnada do sol, pouco arranjado e uns óculos enormes de aros de tartaruga que já tinham saído de moda antes de ele os comprar nos anos 70… E enquanto ele ia buscar "a carroça", ela olhava para o tamanho da minha mala com um ar reprovador e ia dizendo, com voz irritada, que estava com uma dor de costas horrível porque o burro “daquele senhor” [sic, referindo-se ao marido] a tinha feito sair de casa para irem para o aeroporto com quatro horas de antecedência!

- Que aborrecido… mas não havia maneira de ter confirmado a hora do voo?
- Desconseguimos… Tentámos telefonar para a TAP, mas ninguém atendeu… E ele tinha tanta certeza de que vínhamos atrasados que quase acidentámos no caminho...

E continuava, resmungava, rabujava, desabafava como uma adolescente com birra. Que estava muito zangada e com uma dor de cabeça excruciante por causa daquela gente toda a barulhar por ali... [As conjugações verbais moçambicanas começavam a entrar-me pelos ouvidos adentro, numa cacofonia divertida.] E que não podia ter dores de cabeça por causa dos nervos, porque tinha os nervos muito sensíveis desde que o marido morrera.

E como se eu olhasse para ela com um ar levemente confuso apressou-se a acrescentar:
- Sim, tenho sofrido muito... "Aquele senhor" não é o meu marido.

E ali mesmo, nem dois minutos depois de nos termos visto pela primeira vez, fiquei a saber o essencial da sua história trágica. Que se tinha casado pela primeira vez aos vinte e um anos com um homem também moçambicano, mulato, inteligente e romântico, com um coração profundamente generoso que a fizera muito feliz nos anos que precederam a Independência. Na altura eram ambos funcionários públicos e tinham uma filha saudável e lindíssima.
Mas, no período “atrapalhado” que se seguiu à revolução da Independência, o marido tinha sido preso e levado para um campo de extermínio, acusado de ser contra-revolucionário por ter estado do lado dos colonos, quando o seu único crime era ter pertencido à classe média moçambicana e ter sido funcionário público do governo Português. Juntamente com centenas de outros homens tinha sido torturado e nunca mais fora encontrado. Nem morto nem com vida. Só quase vinte anos depois é que ela tinha conseguido saber de fonte segura que tinha ficado viúva poucos meses depois de lhe terem levado o marido…

(continua...)

2 comentários:

  1. Não me esqueço daquela pronúncia castiça ao dizerem maRRRido e daqueles sorrisos lindos das gentes moçambicanas

    ResponderEliminar
  2. A coragem e a capacidade de sorrir das mulheres moçambicanas ainda hoje me surpreende. Ouvi histórias horríveis, como o são todas as histórias de guerras, relatos que me impressionaram tanto quanto o sorriso que estas mulheres não perderam...
    Bjinhos
    p.s. espero ansiosa pelos próximos capítulos

    ResponderEliminar