quarta-feira, 9 de março de 2011

[conta-me como foi que aconteceu] história de um amor difícil

Batik africano.
(continuando...)

E, entre mimos e rezas da mãe e das Irmãs, lá tinha voltado a levantar a cabeça e a olhar novamente o céu de frente.

Fora então que “aquele senhor” entrara na sua vida. Antes da Independência tinham-se conhecido vagamente em jantares de amigos comuns, mas depois da revolução foram poucos os amigos que tinham ficado e, inevitavelmente, acabaram por se aproximar. Ele era divorciado, pai de dois filhos que a ex-mulher levara para Portugal após a Independência, livre e absolutamente apaixonado por ela. Era um homem pragmático, com uma visão pombalina da vida em geral e do amor em particular. Tinha reconstruído a vida várias vezes e, de cada vez que saía dos escombros de uma vida anterior, apressava-se a enterrar as memórias dos mortos e desaparecidos e a procurar um novo futuro, cuidando de tudo o que ficara inteiro. Ela nem do próprio estado civil tinha a certeza, quanto mais dos sentimentos contraditórios que a assolavam permanentemente deixando-lhe a cabeça e o coração revoltos.

Quando ele dizia que o que era preciso era enterrar os mortos e cuidar dos vivos e que tinha pena que o Marquês de Pombal não estivesse vivo e em Maputo, porque ele sim, haveria de lhe explicar o que fazer, ela respondia que se o Marquês de Pombal estivesse vivo haveria engarrafamentos de meia-noite nas avenidas novas de Lisboa. E não saíam disto…

Não conseguia admitir-se viúva e a última coisa que queria imaginar era que o marido, horrorizado, a encontrasse com outro homem em casa se algum dia regressasse. Por um lado agradecia a presença de um homem íntegro, bem-disposto, europeu e culto ao seu lado, mas por outro, a sua permanência lembrava-a a cada instante da ausência do marido. Durante mais anos do que seria razoável ela proibiu-o de dormir em sua casa, por mais que ele lhe prometesse que se o marido voltasse ele se iria embora. Só a guerra lá fora e o recolher obrigatório estiveram do seu lado nessa batalha, e acabou por vencê-la, numa noite de aceso tiroteio vindo não sei de que bairro dos arredores, em que amanheceram juntos rezando para que a cidade não fosse arrasada. Ele aturou mais birras e maus-fígados do que provavelmente qualquer homem aturaria, incondicional no seu apoio ao desgosto e a todas as perdas, que a cada dia sem sinais de vida do marido se renovavam.

No coração dela ficou sempre um pouco de raiva irracional (aquela que parece que define o sexo feminino) por ele ter representado a confirmação de que o marido estava morto. E da parte dele, claro, nunca se leva pontapé atrás de pontapé, por mais compreensíveis que sejam as razões, sem se ficar um bocadinho magoado. Por isso, à medida que ele ia conquistando terreno e ela ia cedendo àquele amor impossível, à medida que o amor de impossível passava a apenas improvável, à medida que para além de improvável se tornava evidentemente inevitável, ele ia ficando um pouco mais exigente, ela um pouco menos tolerante, ele mais revoltado por ser sempre tratado como um pervertido apatetado, ou como o mau da fita, ela porque em primeiro lugar nunca lhe tinha pedido para ir viver lá para casa, não sabia de que é que ele se queixava. Ele porque queria que ela o amasse da mesma forma louca que ele, ela porque não queria admitir nem para si própria que o amava como ao primeiro marido. Ele porque se queria casar com ela, ela porque nunca se casaria com ele, nem que o marido fosse encontrado morto…

O resultado era um casal em guerra permanente. Uma guerra com patine, que já tinha feito bodas de prata, ora latente e velada, ora uma autêntica batalha campal, em que ele não perdia uma oportunidade de a esmagar com a sua superioridade intelectual, de raça e de género e ela lhe respondia, invariavelmente, com um amuo seguido de uma acusação fortíssima.

Acabaram por nunca ter filhos. Acabaram por nunca oficializar a relação. Viviam em pecado. Um pecado quase palpável, quase visível, de tal maneira estava instalado naquela casa. Não penso que mais alguém, para além deles, acreditasse que existia algum pecado em viverem juntos e quererem reconstruir a sua vida. Mas era esse sentimento infinito de culpa, de interdito, de desejo que não tinham conseguido conter, de cheiro a corpos impossível de disfarçar – sob o pretexto de que os perfumes lhes provocavam dores de cabeça –, era esse sabor a delito depois das primeiras horas da noite que transbordava naquele apartamento enorme no bairro da Polana, cheio de recordações de vidas anteriores e uma vista arrebatadora sobre a baía de Maputo.
(continua...)

3 comentários:

  1. Quem mandou aqueles dois esperá-la ao aeroporto? Estão a tornar-se personagens muito fortes e o ouvinte interroga-se sobre o link.

    ResponderEliminar
  2. Tenha calma, Pedro... Cada coisa a seu tempo.

    ResponderEliminar
  3. Eu cá estou a adorar. Já me "viciei" na história e na forma rica como a contas :D

    ResponderEliminar