(continuando...)
Só quase vinte anos depois é que tinha conseguido saber de fonte segura que tinha ficado viúva poucos meses depois de lhe terem levado o marido…
Um mês depois da fatídica madrugada em que dez homens cobardes armados até aos dentes lhe tinham arrombado a casa e, em poucos minutos, destruído metade da sua vida, descobrira que estava à espera de um segundo filho. No mesmo dia tinha ido à consulta com o obstetra de onde regressara com uma esperança renovada e com o pressentimento feliz de que aquela gravidez era um sinal de que o marido poderia estar vivo e que ainda haveriam de voltar a ser uma família unida e tranquila. Pela primeira vez em semanas saía-lhe do pensamento a imagem terrível e intrusiva do marido a ser violentamente torturado. Mas a alegria durou um momento. Quando regressou a casa, encontrou a sua mãe a chorar agarrada à neta, que convulsivava ininterruptamente há mais de uma hora com malária cerebral. O mundo caía-lhe aos pés pela segunda vez em tão pouco tempo...
Ainda teve forças para pegar na menina e levá-la para o Hospital Central, desafiando os perigos da rua e o recolher obrigatório mas, apesar dos tratamentos e de todas as tentativas para a reanimar, a sua princesa nunca mais recuperou a consciência e faleceu menos de 24 horas depois. Talvez pelo esforço físico, pelo desgosto, pela desistência ou, simplesmente, porque já estava escrito no seu destino, acabou por perder a gravidez, ficando absolutamente à deriva numa depressão profunda. Revoltada por uma revolução com cujos princípios concordava, mas que tinha sido cega e profundamente injusta para com ela e para com as pessoas que antes viviam honestamente, fazendo o país funcionar, sem prejudicar ninguém. Perdida por a justiça não estar do seu lado, por não poder apresentar queixa por lhe terem raptado e possivelmente morto o marido, sob pena de ser presa também e colocar em risco a família de ambos. Revoltada por não ter como recuperar a sua vida, por a maioria dos amigos ter saído do país aproveitando qualquer pretexto para obter a nacionalidade Portuguesa e assim levar os filhos para longe da guerra civil que já despontava. Por o mundo ter deixado de fazer sentido nas regras e valores em que acreditava. De tal maneira ficara perdida, dizia ela, que na altura nem morrer lhe passava pela cabeça.
Refugiou-se durante meses no convento das Irmãs da Consolata, com quem anteriormente colaborava como voluntária na assistência aos mais pobres e às crianças órfãs da guerra colonial e as Irmãs tinham sido incansáveis na tentativa de restituir-lhe um sentido para a vida. E, entre mimos e rezas da mãe e das Irmãs, lá tinha voltado a levantar a cabeça e a olhar novamente o céu de frente.
(continua)
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