sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

[psiquiatrices] o mato em lisboa #1...

Numa das enfermarias do meu hospital, temos um menino vindo de Angola ao abrigo do protocolo com os países de expressão portuguesa. Transferido por aplasia medular: a medula óssea do menino, sem razão aparente, pura e simplesmente deixou de funcionar e produzir sangue.

O Lázaro* tem 8 anos e está internado em isolamento há 124 dias e é um doce de criança. Uma paciência de antigo testamento. Em Portugal tem apenas a mãe, uma típica mulher de armas africana! Uma mulher que não reage, mas resiste até ao limite. Uma mulher que não é pró-activa, não é empreendedora, não se vê tomar qualquer iniciativa, mas é um suporte a toda a prova. É uma mulher acabada de sair do mato, quase analfabeta. que não arreda pé do quarto do filho e permanece o tempo todo sentada à cabeceira, com a bíblia aberta e o ar meio resignado, meio alheado de quem está habituado a sofrer... Cuida do filho. Fala pouco, faz poucas perguntas. Sai do quarto três vezes por dia para comer e tomar banho. Mas tem esperança. E está à espera. Apenas.

Há duas semanas, 110 dias depois de ter sido internado, o Lázaro começou a dar sinais de estar a começar a ficar saturado... Não dormia bem, recusava-se a comer até ao fim, não queria falar muito, resistia a tomar a medicação. Passava mais tempo sem brincar, sem ler ou ver televisão. Os colegas de Pedopsiquiatria foram chamados novamente para intervir junto do menino e de sua mãe.

Depois de mais de uma hora de conversa o menino estava mais calmo, a mãe menos alheada e ligeiramente mais sorridente e o colega da Pedopsiquiatria, ainda a tirar a bata esterilizada, máscara, touca e luvas, apareceu à porta da sala de reuniões.

- Então, o que achou do menino?
- Bem, não me pareceu muito diferente da outra vez, só está mais cansado de estar aqui, o que é compreensível. Não tem nada de anormal. Expliquei à mãe que ele foi retirado do ambiente dele e tem estado muito isolado e não pode brincar com ninguém nem ir para a rua como em Angola. Disse-lhe que ela tinha de brincar mais com ele.
- E ela? Percebeu alguma coisa?
- Sim, acho que sim... Não consegui que falasse muito, mas acho que percebeu o que eu lhe disse...

No dia seguinte, a mãe, colaborante e cheia de boa vontade, fazia o que o médico lhe tinha sugerido que fizesse: brincava, um pouco desajeitada, com os carrinhos e aviões no chão, junto à cama do filho, enquanto este, deitado na cama, alheio a tudo o que se passava em seu redor, via os primeiros programas da manhã do Canal Panda.

[E pronto, meus amigos, só um materialista diria que as palavras que o médico proferiu foram as mesmas que a senhora percebeu. A cultura de fundo é o que faz com que as palavras façam sentido. Numa sociedade africana, em que as crianças brincam livres e soltas pela rua, a ideia de os pais brincarem com os filhos não faz qualquer sentido. O médico dissera-lhe: "A senhora tem de brincar mais com o menino." E a senhora, que estava com o menino, estava a tentar brincar. Certamente intrigada por lhe terem dado um conselho tão bizarro, mas enfim, se o médico tinha dito... por um filho faz-se qualquer coisa...]

(continua...)

* Nome obviamente fictício.

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