São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos, as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
[meus queridos amigos] eu sei que é a noite dos óscares, mas...
...já passa das três e meia da madrugada e ainda vagueiam por aqui no mato mais de 20 pessoas! Pessoal, aqui no mato não há luz, isto está infestado de mosquitos com malária, há sapos e centopeias na casa de banho - e às vezes escorpiões (ratos, felizmente, nunca tivemos). Mas adiante, são três e meia da madrugada. Já passa, até. Vão para a cama que se não amanhã ninguém vos atura! Ou será que são todos cônjuges do outro pessoal que está a ver o tapete vermelho e os vestidos no Teatro Kodak em-directo-para-mais-tarde-fofocar? Aquele pessoal que tem o diagnóstico de aborrecido até à quinta casa e só ainda não foi para a cama porque mal-parece-ir-me-deitar-enquanto-ela-está-a-ver-uma-coisa-que-tanto-prazer-lhe-dá-não-posso-fazer-uma-desfeita-dessas? Bem, se for esse o caso, animem-se. Já faltou mais! Mas aqui para nós, que ninguém nos ouve... assim com jeitinho não se iam deitar à mesma? É que já vão sendo horas, canário*!
*Nota da Autora - Ao contrário da transmissão dos Prémio da Academia, que tem um atraso de cinco segundos para evitar polémicas no uso do vernáculo, a transmissão deste blogue não possui qualquer desfasamento de parágrafos, pelo que se opta por utilizar moderação na linguagem.
*Nota da Autora - Ao contrário da transmissão dos Prémio da Academia, que tem um atraso de cinco segundos para evitar polémicas no uso do vernáculo, a transmissão deste blogue não possui qualquer desfasamento de parágrafos, pelo que se opta por utilizar moderação na linguagem.
domingo, 27 de fevereiro de 2011
[como foi que tudo aconteceu] a primeira vez em áfrica...
(continuando)
A minha estreia em Moçambique não podia ter sido pior… O meu avião tinha descolado da Portela com duas horas de atraso e ainda tinha ido primeiro a Joanesburgo, uma rota programada mas não habitual para aquele dia, pelo que chegámos a Maputo duas horas depois do previsto e quatro horas depois de os meus anfitriões terem chegado ao aeroporto para me buscar. Como se isso não bastasse, a fila para carimbar vistos e passaportes era interminável (os vistos e passaportes à primeira nunca estão bem, é sempre preciso fazer muitas contas, de cabeça, de papel e, às vezes, de carteira, para fazer ver aos funcionários da imigração que os dias que lá vou ficar são os dias que constam no bilhete de regresso e que não, não tenho de lhes dar dinheiro para me fazerem entrar no país porque o vou fazer legalmente!).
Logo a seguir, sem tempo para respirar fundo, tive de enfrentar sozinha o problema seguinte, que foi passar na alfândega com a bagagem, sem fazer a menor ideia do que era a alfândega de Mavalane. Eu sempre fui optimista, mas do meu estado de espírito na altura só me recordo de uma vaga sensação de pânico, porque afinal de contas estava completamente sozinha. E em África pela primeira vez…
A angústia confirmou-se quando me deparei frente-a-frente com um cartaz já amarelecido que numa das paredes anunciava em letras garrafais: “Senhor passageiro, suborno é crime!” Ai, valesse-me Nossa Senhora das Alfândegas, que aquilo não augurava nada de bom… O aeroporto de Maputo era conhecido na altura ser muito difícil de atravessar sem ficar com objectos de valor apreendidos pelos funcionários, a quem quase sempre era necessário oferecer dinheiro e presentes para se poder passar com a bagagem. Assim mesmo, à descarada... Ou melhor, era conhecido mas - passe o pleonasmo à Marquês de la Palice - apenas por quem conhecia o facto… Eu não conhecia nada e a primeira vez que tal me passou pela cabeça foi mesmo segundos antes do confronto final. Ou seja, com tudo isto, já passava das 23 horas, numa jornada que para mim começara às 4 da manhã quando, exausta e transpirada, apreensiva com o que me esperava assim que transpusesse aquela última barreira que me separava de Maputo, furiosa pelo que tinha acabado de passar na imigração e desesperando por um banho e por uma cama me aproximei do tapete da alfândega. Respirei fundo uma última vez: “Calma!”, repeti para mim própria. “Close your eyes and think of Africa!”
(continua)
A minha estreia em Moçambique não podia ter sido pior… O meu avião tinha descolado da Portela com duas horas de atraso e ainda tinha ido primeiro a Joanesburgo, uma rota programada mas não habitual para aquele dia, pelo que chegámos a Maputo duas horas depois do previsto e quatro horas depois de os meus anfitriões terem chegado ao aeroporto para me buscar. Como se isso não bastasse, a fila para carimbar vistos e passaportes era interminável (os vistos e passaportes à primeira nunca estão bem, é sempre preciso fazer muitas contas, de cabeça, de papel e, às vezes, de carteira, para fazer ver aos funcionários da imigração que os dias que lá vou ficar são os dias que constam no bilhete de regresso e que não, não tenho de lhes dar dinheiro para me fazerem entrar no país porque o vou fazer legalmente!).
Logo a seguir, sem tempo para respirar fundo, tive de enfrentar sozinha o problema seguinte, que foi passar na alfândega com a bagagem, sem fazer a menor ideia do que era a alfândega de Mavalane. Eu sempre fui optimista, mas do meu estado de espírito na altura só me recordo de uma vaga sensação de pânico, porque afinal de contas estava completamente sozinha. E em África pela primeira vez…
A angústia confirmou-se quando me deparei frente-a-frente com um cartaz já amarelecido que numa das paredes anunciava em letras garrafais: “Senhor passageiro, suborno é crime!” Ai, valesse-me Nossa Senhora das Alfândegas, que aquilo não augurava nada de bom… O aeroporto de Maputo era conhecido na altura ser muito difícil de atravessar sem ficar com objectos de valor apreendidos pelos funcionários, a quem quase sempre era necessário oferecer dinheiro e presentes para se poder passar com a bagagem. Assim mesmo, à descarada... Ou melhor, era conhecido mas - passe o pleonasmo à Marquês de la Palice - apenas por quem conhecia o facto… Eu não conhecia nada e a primeira vez que tal me passou pela cabeça foi mesmo segundos antes do confronto final. Ou seja, com tudo isto, já passava das 23 horas, numa jornada que para mim começara às 4 da manhã quando, exausta e transpirada, apreensiva com o que me esperava assim que transpusesse aquela última barreira que me separava de Maputo, furiosa pelo que tinha acabado de passar na imigração e desesperando por um banho e por uma cama me aproximei do tapete da alfândega. Respirei fundo uma última vez: “Calma!”, repeti para mim própria. “Close your eyes and think of Africa!”
(continua)
sábado, 26 de fevereiro de 2011
[vozes brancas* #40] as cores do mundo
Dois anos e meio, três anos. Já cheguei à conclusão que é nesta idade que eles mais nos surpreendem e nos divertem com as suas concepções do mundo e extrapolações de linguagem. Desde o meu sobrinho, que se recusa a acreditar que o nome da mãe é Catarina desde que descobriu que a avó lhe chama "Filha" até um menino de três anos (sobredotado, não tenho dúvidas) que ontem aprendeu a letra D e, depois de eu lhe explicar que D era a letra do nome dele, apresentou-me de imediato uma lista interminável de palavras começadas por D, que incluía as palavras Domingo e "thalada"... (bom, para além de sobredotado também era "sopinha de massa"... but nobody is perfect, right?)
Depois comecei a perguntar-lhe as cores, abri um livro e mostrei-lhe a imagem de um comboio. Apontei para a janela e ele respondeu de imediato que a "thanela" era "athul".
- Azul quê?, perguntei-lhe.
- "Athul-thanela"!
[Já vos disse que tenho a melhor profissão do mundo? É que gosto sempre de repetir, não vá existir por aí alguém que ainda não tenha percebido...]
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
Depois comecei a perguntar-lhe as cores, abri um livro e mostrei-lhe a imagem de um comboio. Apontei para a janela e ele respondeu de imediato que a "thanela" era "athul".
- Azul quê?, perguntei-lhe.
- "Athul-thanela"!
[Já vos disse que tenho a melhor profissão do mundo? É que gosto sempre de repetir, não vá existir por aí alguém que ainda não tenha percebido...]
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
[refrões de uma vida] o que fazer com os despojos de um dia?
Se um rato morto me disser: "Eu cheiro mal por isto e por aquilo, principalmente porque apodreci." Eu nem por isso deixo de o mandar varrer do meu quarto.
Eça de Queirós in Correspondência de Fradique Mendes
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
[conta-me como foi que aconteceu...] the days before
Maputo, Moçambique
(continuando...)
Na altura ainda não existia internet de banda larga em Moçambique. No local para onde eu ia só alguns meses antes é que tinham colocado electricidade e telefone, as comunicações eram caras, difíceis e pouco fiáveis e só tinha conseguido falar pessoalmente uma única vez com o Padre Zé Maria, director da Casa do Gaiato de Maputo. A única coisa que ele tinha ficado a saber sobre mim era que eu era estudante de Medicina, que queria muito ir e que estava disposta a ajudar no que fosse preciso. A única coisa que eu tinha ficado a saber sobre a Casa do Gaiato era que a minha ajuda – ou qualquer ajuda – seria sempre bem-vinda e que trabalho não me faltaria.
Não conhecia ninguém em Moçambique. Não conhecia ninguém que já tivesse feito voluntariado em Moçambique e a pessoa que me tinha ajudado a estabelecer o contacto pouco me tinha adiantado sobre o país, o dia-a-dia ou mesmo sobre a Casa do Gaiato…
Algumas vezes pensei se não seria loucura da minha parte meter-me num avião para o outro lado do mundo nestas condições. Ainda hoje penso que foi loucura da minha parte ter-me metido no avião nestas condições. Mas nunca dei parte de fraca, isso teria sido a morte dos meus sonhos, sobretudo se tivesse vacilado perante a minha família, que nunca me teria deixado ir se me visse angustiada... Só falei dos meus medos ao meu melhor amigo (sim, meus queridos amigos, esse mesmo, o da crise de soluços...), que me respondeu simplesmente: "Princesa, close your eyes and think of England*!" E pronto, com esta me fui, lá fiz das tripas coração, arregacei as mangas e fiz-me ao caminho.
Eu não tinha qualquer ideia romântica sobre África. Não tinha curiosidade em conhecer parques naturais, praias lindíssimas, areais brancos a perder de vista, ver o nascer do sol no Índico, aprender línguas africanas ou assistir a danças e rituais de iniciação.
Já tinha visto nascer crianças, mas nunca tinha visto ninguém morrer, nunca tinha estado num campo de refugiados, não sabia que era possível crianças irem à guerra e pegarem em armas, nunca tinha visto pessoas a viver numa lixeira e fazer disso um modo de vida. Mas também nunca tinha tido a sensação arrebatadora de que a vida podia fazer sentido a cada instante, desde uma criança que brinca depois de ter estado dois dias em coma, desde um abraço ao nascer do sol até a uma improvável, mas bíblica, chuva de sapos no final de um dia de sonho.
O que eu queria, na altura, era apenas dedicar as minhas férias a trabalhar como voluntária e ter uma experiência com crianças desfavorecidas. Estava, portanto, na ingenuidade dos meus vinte e poucos anos, a anos-luz de imaginar que tinha partido por um caminho sem volta para me apaixonar irremediavelmente...
(continua)
* Conselho habitualmente dado às jovens noivas da Era Vitoriana na noite de núpcias, erroneamente atribuído à própria Rainha Vitória. E como é que uma frase desta crueza aparente me conseguiu confortar assim? Isso, meus amores, é mesmo outra história...
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
[áfrica, meu amor impossível] como foi que tudo aconteceu...
A baía de Maputo, Moçambique.
O meu primeiro contacto com Moçambique foi enquanto ainda estava na faculdade, nas férias do quinto ano de Medicina, antes do meu ano de finalista. Fui para a Casa do Gaiato, na província de Maputo, onde passei um mês na savana, com encantos de primeira vez em África...
E a história começa com Moçambique a 12ºC, numa noite sem lua e pouco iluminada, onde a única coisa que se podia sentir era o cheiro largo a espaço aberto (imaginava eu, nos meus pensamentos românticos de primeira vez, que estava a sentir o “cheiro de África” e, de facto, o que sentia era algum do cheiro de África – o cheiro de um Aeroporto africano misturado com o cheiro a diesel de um avião da TAP...). O pouco que conseguia distinguir distintamente era AE OPO TO IN ERNACI NAL DE MAP TO, o letreiro de néon do aeroporto de Mavalane, literalmente com algumas luzes avariadas... E desta história só posso dizer que adorei, que não estava nada à espera do que acabou por ser e que, à medida que o tempo passava, mais eu ficava rendida a tudo quanto via...
(continua)
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
[vozes brancas* #39] onde estão os bichos do chão
Ontem entrou na minha consulta um menino de dois anos e meio, agarrado às suas três chuchas amarelas como a uma botija de oxigénio nas profundezas do Índico, uma na boca, as outras para esfregar no nariz nos momentos de tédio e para roçar na parede... Cumprimentei-o e ele, educadíssimo de derreter qualquer coração de Pediatra, tirou a chucha para me dar um beijinho, mas deixou-as cair a todas ao mesmo tempo. Apanhou apenas a que tinha na boca e deu-ma:
- Olha, ti'a os mic'óbios, fa'favor...
- Claro, querido, mas o que são micróbios? - perguntei-lhe a sorrir.
- São os bichos do chão.
- Ah. E as outras chuchas não têm também bichos do chão?
- Não, só e'ta! E'tas não p'estam!
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
- Olha, ti'a os mic'óbios, fa'favor...
- Claro, querido, mas o que são micróbios? - perguntei-lhe a sorrir.
- São os bichos do chão.
- Ah. E as outras chuchas não têm também bichos do chão?
- Não, só e'ta! E'tas não p'estam!
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
[olavula emakhua] a sabedoria dos macuas
Mòro ori sinto othela. Khonrumaniwa.
O amor é como o fogo. Não se pode dar ordem a alguém para se aquecer.
O amor é como o fogo. Não se pode dar ordem a alguém para se aquecer.
domingo, 20 de fevereiro de 2011
[lascia la spina cogli la rosa] das coisas que me doem...
Aprendendo os números na melhor escola das redondezas. Tinha quadro e giz, mesas e cadeiras e o pavimento e as paredes de pedra e cal... E professores tranquilos.
(Murrupula, Nampula)
Mas neste caso não consigo... Quando vejo mais uma menina adolescente grávida ou infectada pelo vírus da SIDA ou com o coração destroçado após ter sido obrigada a ter relações com um professor só me apetece mandar tudo às urtigas... Ir-me embora para não ver vidas destruídas por inconsequências, prepotências e irresponsabilidade! Ou mandá-las a todas para casa das Irmãs, que são umas autênticas guerreiras a defender as suas meninas, com garras e unhas e dentes e leis e até prisão se for preciso! Se cada uma tivesse um padrinho, ou um anjo da guarda...
[outras palavras] das coisas que genuinamente me magoam...
Lido no Voz de Nampula
As raparigas de Nampula descobriram uma nova maneira de ganhar a vida sem recorrer a actos tidos como estando à margem da moral e do bom senso, como é o caso da prostituição infantil, que é deveras frequente nesta cidade. Lavam carros em diversas esquinas da cidade para pagar propinas nas escolas que frequentam, com a esperança de um dia mudarem de vida.
O fenómeno é de certa maneira novo, pelo menos a nível da chamada Capital do Norte, a cidade de Nampula. Raparigas nas idades compreendidas entre onze e dezasseis anos, descobriram uma actividade rentável com vista a melhorar as suas condições de vida. Trata-se de limpeza de viaturas que estacionam em locais públicos, na sua maioria em hotéis, centros comerciais e até mercados.
Na última sexta-feira, a reportagem do Canalmoz, na cidade de Nampula, surpreendeu um grupo de três raparigas, nomeadamente Memuna, Maria e Bety, que junto, às bermas do Hotel Girassol, se dedicavam à limpeza de carros para ganhar dinheiro. Era por volta das vinte horas quando as encontramos a efectuarem os serviços. Convidamo-las para uns dedos de conversa. A priori recusaram-se a dar a cara, mas depois de muita insistência da nossa parte cederam e logo foram avisando: “não aceitamos que nos tirem fotos, porque estudamos e nossos colegas vão se rir de nós”.
Em conversa tímida, Memuna, a mais velha das três jovens, com apenas dezasseis anos, foi aos poucos nos revelando de onde surge a ideia. “Lá no bairro (Namicopo) muitos dos nossos amigos saem todos os dias de manhã e regressam à noite com muito dinheiro” disse para depois prosseguir, “eu, por exemplo, ando na sexta classe e o senhor professor pediu-me setecentos meticais para passar de classe e como não tinha, os meus amigos, que frequentam aqui, convidaram-me também a ganhar dinheiro”. Conta Memuna que “durante a primeira semana tive muitas dificuldades, pois ninguém aceitava que eu lhe limpasse o carro, mas depois as coisas foram mudando e melhorando” e “agora consigo, numa noite, entre duzentos e trezentos meticais”. Esta nossa fonte defende que não pode se dar ao luxo de ir ali de dia “porque as pessoas ver-me-ão, como disse anteriormente, e rir-se-ão de mim”.
Esta posição manifestada por Memuna é igualmente partilhada pelas suas companheiras que avançaram um dado importante: “nós somente vivemos com nossas mães, que dão o seu máximo para cultivar comida e também ajudamos desta maneira”.
Para quê este serviço?
As meninas dizem ter começado a batalha no meio de muitas dificuldades e a primordial foi pagar aos seus professores a fim de transitarem de classe, necessidade que ficou satisfeita em menos de uma semana. “Nós não tínhamos como pagar os professores para passarmos de classe e também não queremos ser como as outras raparigas que preferem prostituir-se para ganhar dinheiro, quando muito bem podem conseguir o que querem, vivendo de forma honesta”, desabafaram as nossas interlocutoras, para quem esta vida compensa. “Não vamos deixar este serviço porque ganhamos dinheiro”. (Aunício da Silva)
As raparigas de Nampula descobriram uma nova maneira de ganhar a vida sem recorrer a actos tidos como estando à margem da moral e do bom senso, como é o caso da prostituição infantil, que é deveras frequente nesta cidade. Lavam carros em diversas esquinas da cidade para pagar propinas nas escolas que frequentam, com a esperança de um dia mudarem de vida.
O fenómeno é de certa maneira novo, pelo menos a nível da chamada Capital do Norte, a cidade de Nampula. Raparigas nas idades compreendidas entre onze e dezasseis anos, descobriram uma actividade rentável com vista a melhorar as suas condições de vida. Trata-se de limpeza de viaturas que estacionam em locais públicos, na sua maioria em hotéis, centros comerciais e até mercados.
Na última sexta-feira, a reportagem do Canalmoz, na cidade de Nampula, surpreendeu um grupo de três raparigas, nomeadamente Memuna, Maria e Bety, que junto, às bermas do Hotel Girassol, se dedicavam à limpeza de carros para ganhar dinheiro. Era por volta das vinte horas quando as encontramos a efectuarem os serviços. Convidamo-las para uns dedos de conversa. A priori recusaram-se a dar a cara, mas depois de muita insistência da nossa parte cederam e logo foram avisando: “não aceitamos que nos tirem fotos, porque estudamos e nossos colegas vão se rir de nós”.
Em conversa tímida, Memuna, a mais velha das três jovens, com apenas dezasseis anos, foi aos poucos nos revelando de onde surge a ideia. “Lá no bairro (Namicopo) muitos dos nossos amigos saem todos os dias de manhã e regressam à noite com muito dinheiro” disse para depois prosseguir, “eu, por exemplo, ando na sexta classe e o senhor professor pediu-me setecentos meticais para passar de classe e como não tinha, os meus amigos, que frequentam aqui, convidaram-me também a ganhar dinheiro”. Conta Memuna que “durante a primeira semana tive muitas dificuldades, pois ninguém aceitava que eu lhe limpasse o carro, mas depois as coisas foram mudando e melhorando” e “agora consigo, numa noite, entre duzentos e trezentos meticais”. Esta nossa fonte defende que não pode se dar ao luxo de ir ali de dia “porque as pessoas ver-me-ão, como disse anteriormente, e rir-se-ão de mim”.
Esta posição manifestada por Memuna é igualmente partilhada pelas suas companheiras que avançaram um dado importante: “nós somente vivemos com nossas mães, que dão o seu máximo para cultivar comida e também ajudamos desta maneira”.
Para quê este serviço?
As meninas dizem ter começado a batalha no meio de muitas dificuldades e a primordial foi pagar aos seus professores a fim de transitarem de classe, necessidade que ficou satisfeita em menos de uma semana. “Nós não tínhamos como pagar os professores para passarmos de classe e também não queremos ser como as outras raparigas que preferem prostituir-se para ganhar dinheiro, quando muito bem podem conseguir o que querem, vivendo de forma honesta”, desabafaram as nossas interlocutoras, para quem esta vida compensa. “Não vamos deixar este serviço porque ganhamos dinheiro”. (Aunício da Silva)
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
[instantes] ...porque a vida é todos os dias
Está na hora de juntar a família e ver novamente, como todos os dias, que a vida faz sentido quando comem todos do mesmo tacho, mesmo que não haja talheres ou pratos. Com a certeza de que amanhã cada hora vai voltar a fazer sentido, com uma cor igualmente viva, na eterna repetição que envelhece cada gesto...
(Gilé, Zambézia)
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
[o que eu tenho para te dizer neste dia?]
Ilha de Moçambique e nascer do sol na praia das Chocas.
(Nampula, Moçambique)
O que eu tenho para te dizer neste dia, V.?
- Koxukuru vanjene! Pelo sorriso, pela vida, pela garra, pela simplicidade, pelo trabalho! Os Macuas não dão os parabéns, porque as datas para eles são ridículas. Para quê festejar uma coisa que já aconteceu há tanto tempo? Mas a vida é simples, como eles também dizem e nós aprendemos. E se não se festeja, pelo menos agradece-se, recorda-se. Porque dom é não esquecer.
Lembras-te deste dia? As fotos são tuas...
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
[e porque hoje é o dia da disfunção eréctil] improbabilidades do mato
Aviso: Reader discretion is advised.
Tal como meu mentor espiritual (sim, o dos soluços, who else?) me fez questão de recordar esta manhã, hoje é o dia europeu da disfunção eréctil. E acho que vou agarrar o mote, já que não me apraz falar de São Valentim, um santo que afinal parece que foi banido da igreja no louco ano de 1969 porque havia dúvidas de que alguma vez tivesse existido, e também porque até tenho uma história para contar sobre o assunto...
Ora então, de todas as vezes que trabalhei como voluntária em Moçambique, apesar de a minha especialidade de formação e coração ser a Pediatria, sempre vi adultos e crianças e, obviamente, tratei todas as doenças sexualmente transmissíveis (DST) que me passaram pelas mãos [passe a expressão] e que grassam como a malária por todo o país. Para isso de muito me serviu a minha formação na consulta de DST no Centro de Saúde, onde durante meses, antes de iniciar a especialidade, tratei das mazelas e desgraças dos "porbaixos" dos tios e tias da Lapa e restante Lisboa. E, ó gentes vos juro, trabalho foi coisa que nunca nos faltou.
Outra circunstância que também contribuiu em larga medida para a minha grande actividade assistencial nesta área foi a recusa determinada de todas as minhas amigas médicas em tratar destes assados:
- Aquela doutora ali é que é especialista - indicavam elas, muito afavelmente, apontando na minha direcção, quando algum doente as abordava com estas questões.
De modo que quando algum homem me entrava na consulta e o via fechar a porta atrás de si, percebia imediatamente qual era o assunto que o afligia. E, por fim, a palavra tinha corrido de tal modo pelas aldeias em redor que eles já sabiam que eu só os tratava se trouxessem a(s) mulher(es) com quem tivessem tido um relacionamento no último mês. Sim, que aquilo era uma consulta de DST modesta mas séria! Só que isso custou-me alguns momentos de choque cultural, como o de um dia, em Iapala, em que um homem apareceu logo à primeira acompanhado de quatro mulheres e eu perguntei, um pouco ingenuamente:
- Mas a sua mulher não se importa que o senhor venha com as outras?
A resposta foi, simplesmente, um não menos espantado:
- Não, elas são todas amigas!
E pronto, lá chamei por Santa Rita de Cássia, padroeira dos matrimónios desavindos e, por que não?, dos matrimónios polígamos, que mais salada-russa do que estes deve ser difícil e calei-me muito bem caladinha, que perante isto não há nada a dizer, só repetir o discurso da prevenção, que haveria de cair necessariamente [e por vezes literalmente] em saco roto...
Mas se as DST não me traziam questões de maior - sabia diagnosticá-las, tinha exames à disposição e os medicamentos necessários -, os homens com disfunção eréctil vinham por arrasto e isso é que era para mim um bicho-de-sete-cabeças... Não gosto, pronto. Nunca tive qualquer formação para além da formação básica durante o curso e não era situação que me despertasse curiosidade ou interesse científico... Nestes casos fazia apenas uma investigação básica (ver se os ditos senhores tinham reflexos normais nos membros inferiores, se não tinham anemia ou insuficiência cardíaca e pouco mais) e tentava terminar a consulta o mais rapidamente possível, dizendo que não tinha medicamentos para isso e que o melhor era procurarem um curandeiro, porque era do meu conhecimento que existiam várias árvores de cuja casca se extraía um produto viagra-like que combatia a disfunção eréctil. Aliás, era notório que muitos homens padeciam desse mesmo mal nas redondezas, uma vez que algumas árvores estavam tão esquartejadas que quase se lhes viam as entranhas... E se a situação fosse psicológica não me estava a ver a fazer psicoterapia a homens de outra cultura. Curandeiro com eles e vá de chamar o próximo.
Mas, certo dia, um dos enfermeiros do hospital insistiu tanto que me vi obrigada a investigar mais sobre o assunto... E, quanto mais investigava, menos percebia o que se passava, porque as respostas eram todas afirmativas: que sim, que às vezes acordava com erecção, que sim, que às vezes tinha erecções e ejaculação durante o sono, que sim, que pois e que também... Mas então, haveria algum problema na relação com a mulher?
- Não, doutora, eu ainda tenho amor!
- Mas que estranho, então o que é que lhe acontece?
- Doutora, para "brincar" com a minha mulher eu não apanho aquela força... eu só consigo "brincar" quatro vezes por noite...
[Caiu-me o queixo...] - Ah... bem... acho que sendo assim não o posso ajudar. Tem de ir ao curandeiro mesmo...
[E muitas questões se poderiam colocar a partir desta, mas o post já vai longo e o dia é o dia Europeu da disfunção eréctil e não Africano por alguma razão...]
Tal como meu mentor espiritual (sim, o dos soluços, who else?) me fez questão de recordar esta manhã, hoje é o dia europeu da disfunção eréctil. E acho que vou agarrar o mote, já que não me apraz falar de São Valentim, um santo que afinal parece que foi banido da igreja no louco ano de 1969 porque havia dúvidas de que alguma vez tivesse existido, e também porque até tenho uma história para contar sobre o assunto...
Ora então, de todas as vezes que trabalhei como voluntária em Moçambique, apesar de a minha especialidade de formação e coração ser a Pediatria, sempre vi adultos e crianças e, obviamente, tratei todas as doenças sexualmente transmissíveis (DST) que me passaram pelas mãos [passe a expressão] e que grassam como a malária por todo o país. Para isso de muito me serviu a minha formação na consulta de DST no Centro de Saúde, onde durante meses, antes de iniciar a especialidade, tratei das mazelas e desgraças dos "porbaixos" dos tios e tias da Lapa e restante Lisboa. E, ó gentes vos juro, trabalho foi coisa que nunca nos faltou.
Outra circunstância que também contribuiu em larga medida para a minha grande actividade assistencial nesta área foi a recusa determinada de todas as minhas amigas médicas em tratar destes assados:
- Aquela doutora ali é que é especialista - indicavam elas, muito afavelmente, apontando na minha direcção, quando algum doente as abordava com estas questões.
De modo que quando algum homem me entrava na consulta e o via fechar a porta atrás de si, percebia imediatamente qual era o assunto que o afligia. E, por fim, a palavra tinha corrido de tal modo pelas aldeias em redor que eles já sabiam que eu só os tratava se trouxessem a(s) mulher(es) com quem tivessem tido um relacionamento no último mês. Sim, que aquilo era uma consulta de DST modesta mas séria! Só que isso custou-me alguns momentos de choque cultural, como o de um dia, em Iapala, em que um homem apareceu logo à primeira acompanhado de quatro mulheres e eu perguntei, um pouco ingenuamente:
- Mas a sua mulher não se importa que o senhor venha com as outras?
A resposta foi, simplesmente, um não menos espantado:
- Não, elas são todas amigas!
E pronto, lá chamei por Santa Rita de Cássia, padroeira dos matrimónios desavindos e, por que não?, dos matrimónios polígamos, que mais salada-russa do que estes deve ser difícil e calei-me muito bem caladinha, que perante isto não há nada a dizer, só repetir o discurso da prevenção, que haveria de cair necessariamente [e por vezes literalmente] em saco roto...
Mas se as DST não me traziam questões de maior - sabia diagnosticá-las, tinha exames à disposição e os medicamentos necessários -, os homens com disfunção eréctil vinham por arrasto e isso é que era para mim um bicho-de-sete-cabeças... Não gosto, pronto. Nunca tive qualquer formação para além da formação básica durante o curso e não era situação que me despertasse curiosidade ou interesse científico... Nestes casos fazia apenas uma investigação básica (ver se os ditos senhores tinham reflexos normais nos membros inferiores, se não tinham anemia ou insuficiência cardíaca e pouco mais) e tentava terminar a consulta o mais rapidamente possível, dizendo que não tinha medicamentos para isso e que o melhor era procurarem um curandeiro, porque era do meu conhecimento que existiam várias árvores de cuja casca se extraía um produto viagra-like que combatia a disfunção eréctil. Aliás, era notório que muitos homens padeciam desse mesmo mal nas redondezas, uma vez que algumas árvores estavam tão esquartejadas que quase se lhes viam as entranhas... E se a situação fosse psicológica não me estava a ver a fazer psicoterapia a homens de outra cultura. Curandeiro com eles e vá de chamar o próximo.
Mas, certo dia, um dos enfermeiros do hospital insistiu tanto que me vi obrigada a investigar mais sobre o assunto... E, quanto mais investigava, menos percebia o que se passava, porque as respostas eram todas afirmativas: que sim, que às vezes acordava com erecção, que sim, que às vezes tinha erecções e ejaculação durante o sono, que sim, que pois e que também... Mas então, haveria algum problema na relação com a mulher?
- Não, doutora, eu ainda tenho amor!
- Mas que estranho, então o que é que lhe acontece?
- Doutora, para "brincar" com a minha mulher eu não apanho aquela força... eu só consigo "brincar" quatro vezes por noite...
[Caiu-me o queixo...] - Ah... bem... acho que sendo assim não o posso ajudar. Tem de ir ao curandeiro mesmo...
[E muitas questões se poderiam colocar a partir desta, mas o post já vai longo e o dia é o dia Europeu da disfunção eréctil e não Africano por alguma razão...]
[coisas que eu levaria uma vida inteira a aprender] e nem assim...
Dançando na igreja ao som de aleluias e hossanas... Delicioso este dançar espontâneo, numa ousada e hilariante intromissão no mundo dos adultos, como uma criança que cita Churchill com erros de percepção fonética numa reunião de políticos...
(Nampula, Moçambique)
sábado, 12 de fevereiro de 2011
[improbabilidades] o curandeiro de nahavara
O curandeiro de Nahavara...
(Gilé, Zambézia)
Uma tarde, quando eu e a R. íamos visitar um doente a Nahavara, um bairro dos arrabaldes do Gilé, passámos por acaso próximo da casa de um curandeiro, imediatamente reconhecível pelas bandeiras brancas dispostas em círculo em torno da grande taça onde se preparavam os medicamentos, pela proximidade de um embondeiro com vestígios de farinha lançada nas cerimónias tradicionais de cura e pela distância respeitosa das casas dos vizinhos...
Em frente à casa do curandeiro ficava uma outra palhota desabitada, que me explicaram depois que era onde os doentes e respectivas famílias ficavam alojados quando vinham de longe, porque os tratamentos podem ter duração de vários dias e, nos casos mais graves e renitentes, até de várias semanas... A palhota-de-internamento ostentava a inscrição "Bem-Vindo" na fachada, numa óbvia e sábia estratégia de marketing do curandeiro e quase só faltava anunciar os horários dos tratamentos e se as refeições estariam incluídas no alojamento... Ao lado da palhota do curandeiro um pequeno aterro, onde se enterravam depois de queimados os utensílios e medicamentos que restavam de cada tratamento, porque os medicamentos são sempre preparados à medida de cada doente e os utensílios, uma vez terminada a sua função, devem ser destruídos e não aplicados em outras pessoas, pelo risco de "contaminação" e transmissão de doenças, sejam elas problemas mentais, sociais, físicos ou feitiços e maus-olhados...
Fiquei excitadíssima! É que não era tarde nem era cedo. Tinha ali a minha oportunidade de ir conhecer mais de perto um curandeiro, um verdadeiro Mukhulukana macua e travar conhecimento com as cerimónias rituais de um representante vivo da cultura e das suas crenças e tabus... Já tinha imaginado como faria a abordagem e tinha o discurso preparado:
- Mosèliwa, Papá? [O dia amanheceu bem para si?]
- Ah, kosèliwa! [Sim, o dia amanheceu bem para mim.]
- Papá, eu sou médica em Portugal mas tenho uma preocupação muito grande...
- ... [Silêncio, olhar interrogativo de quem se pergunta, "Mas onde é que esta estacionou a nave?"]
- Txonnté! [Por favor, peço-vos.] Estou há muitos dias com uma grande dor no peito e não há medicamento nenhum dos que eu trouxe de Portugal que me consiga fazer passar a dor...
- ... [Semblante carregado... olhar ainda mais interrogativo...]
- Pensei que, como foi uma doença que apanhei aqui em Moçambique, talvez o Papá que conhece melhor as doenças daqui me possa ajudar a curar...
- ... [Silêncio... Olhar agora absolutamente neutro e impenetrável...]
- Mohiwè, Papá? [Compreendeu o que eu disse?]
- Ah, kohiwè. [Sim, compreendi. Um sorriso de quem nunca viu uma branca vestida de capulana e ainda por cima a falar macua.]
- E será que me pode ajudar? [A minha expectativa a crescer... Será que isto está a correr bem? Será que ele percebeu mesmo o que eu disse? Como é que ele vai reagir? Será que vai ficar ofendido? Ai, valha-me Nossa Senhora da Zambézia...]
- ... [Olhar agora enigmático... Será que se está a concentrar para iniciar o ritual de cura? Estará só a fazer-se difícil para eu começar a negociar um preço? Será que é suposto eu oferecer algo neste momento ou só no final? Ai que me devia ter preparado para isto com a ajuda de alguém daqui... Bem, o melhor é fazer o mesmo que ele: olhar para baixo e esperar que ele responda...]
- ... [Concentra-te, mulher, olha para baixo e mostra respeito...]
- Ainda bem que veio... [Encaro-o de frente. A resposta apanhou-me de surpresa...] Eu também estou doente... [Ó diacho, acho que não vinha preparada para isto... Então venho ao curandeiro e sai-me uma destas?]
- Então o que se passa, Papá?
- Quando mijo... sai sangue...
- Ah, deve ser bilharziose, Papá. Mas hoje não trouxe medicamentos para isso. Mas venha ter comigo ao hospital amanhã.
- Não, não posso ir ao hospital.
- ... [Ó valha-me São Vito, não só venho a um curandeiro que não me quer curar, como ainda tenho de o tratar e lhe preservar a reputação? Medicina científica 1 vs Medicina Tradicional 0! Isto só a mim! Mas bem feita, virou-se o feitiço contra o feiticeiro, que é para aprender a não ser cusca e não ir meter o nariz numa cultura alheia...]
- Mas não pode lá ir como se fosse visitar alguém? Depois fala comigo e eu dou-lhe os medicamentos.
- Está bem.
- Então apareça lá amanhã às 16:00. Eu vou estar no Banco de Socorro.
- Obrigado.
E foi assim o meu primeiro contacto directo com um curandeiro... Pode ser que da próxima vez tenha mais sorte...
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
[um olhar limpo de futuros] a força que um sorriso pode ter!
A afilhada do R., que graças a ele continua a estudar e este ano completou a 10º classe com distinção! Há esperança!, diz ele. E também eu também tenho a certeza de que há esperança...
(Foto do R., Murrupula, Nampula)
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
[instantes] um drive-in market na gorongosa
Um pouco por todo o país, em qualquer localidade, assim que se pára o carro, basta abrir o vidro e espreitar levemente para fora para sermos de imediato rodeados por dezenas de pessoas, entre mulheres e crianças que, deitando mão ao pouco português que sabem, nos tentam vender tudo o que tiverem, procurando com todas as forças e do alto do que a voz lhes permitir, agarrar a oportunidade de fazer negócio. Uma oportunidade que é sempre única, que é sempre urgente, que é sempre mágica e libertadora. Ou, pelo menos, eles assim nos conseguem fazer acreditar...
(Foto do R., Gorongosa, Sofala)
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
[instantes] uma ciclovia no mato
Em Nampula, todo o mato é uma imensa ciclovia. E todas as pessoas estão a caminho de algum lado. Lentamente, mas a caminho... Sempre.
(Namaíta, Nampula)
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
[o leproso de la mancha] mais lepra é o estigma do que a própria doença
Foi na Namaíta, uma localidade com paisagens de cortar a respiração que vi este doente de lepra. Tinha manchas na pele. Apenas manchas, mais nada. Tinha a doença no início, mas a vida já meio acabada pela humilhação. Infelizmente, nem os profissionais de saúde escapam a esta lepra que é o preconceito que lhes vem do chá que beberam de pequeninos e lhes ensinou que a lepra só atinge quem rompe os tabus da sociedade. Mais lepra é a ignorância!
Na ficha de saúde deste doente pode ler-se: (...) Ele confessa que o pai falecido teve manchas de lepra e fazia tratamentos em gafaria. (...)
(Namaíta, Nampula)
[doutor galinha] natural do gilé
Anúncio de um curandeiro natural de Mamala, Gilé. Surripiei-a do Portal de Sena, um blog delicioso que encontrei graças ao primeiro homem que me descobriu aqui no mato (dito assim parece suspeito, mas pronto...), o Sr. umBhalane.
(Imagino que seja em Marromeu, Sofala)
E até me atreveria a perguntar, será que foi este o médico tradicional que conseguiu curar um padre meu conhecido de uma asma tesa que o afligia desde criança, utilizando para tal... uma casca de cágado?
E perguntam vocês: "Uma casca de cágado? Uma casca de cágado como?" Não se preocupem, perguntem à vontade, que eu também perguntei. E portanto sei a resposta:
- Uma casca de cágado, Padre Manuel?
- Sim, Doutora, uma casca de cágado.
- Mas uma casca de cágado é que o curou? Mas como é que a tomava? Pilada?
Ao que parece, não, não era pilada nem moída. Ele curou-o fazendo-o beber água exclusivamente por uma casca de cágado durante seis meses seguidos. Ah, meus amigos, não sorriam, é a mais pura das verdades. O Padre Manuel ficou completamente curado da tal asma tesa que o afligia desde criança! Mas, infelizmente, teve azar com o tratamento e ficou com o efeito secundário mais frequente do tratamento com casca de cágado... Ele por acaso descrevia-o muito bem:
- Tenho sempre uma espuma na garganta que me faz comichão todas as noites e às vezes amanheço a tossir muito... Mas nunca mais tive aquela aflição no peito. Só alguma dificuldade em respirar.
[Para quem não compreende o que isto quer dizer: o Sr. Padre, depois do tratamento rigoroso, ficou com uma rinite alérgica e... asma.]
Há um provérbio macua que assevera que só quem toma os medicamentos com convicção se curará. Mas enfim, como ele próprio dizia, apesar de não ter ficado totalmente satisfeito com o tratamento, sempre é melhor a tosse e a comichão na garganta do que a asma... Outros há que "apanham menos sorte" e ficam com asma a vida toda porque o tratamento "não lhes deu efeito"...
E perguntam vocês: "Uma casca de cágado? Uma casca de cágado como?" Não se preocupem, perguntem à vontade, que eu também perguntei. E portanto sei a resposta:
- Uma casca de cágado, Padre Manuel?
- Sim, Doutora, uma casca de cágado.
- Mas uma casca de cágado é que o curou? Mas como é que a tomava? Pilada?
Ao que parece, não, não era pilada nem moída. Ele curou-o fazendo-o beber água exclusivamente por uma casca de cágado durante seis meses seguidos. Ah, meus amigos, não sorriam, é a mais pura das verdades. O Padre Manuel ficou completamente curado da tal asma tesa que o afligia desde criança! Mas, infelizmente, teve azar com o tratamento e ficou com o efeito secundário mais frequente do tratamento com casca de cágado... Ele por acaso descrevia-o muito bem:
- Tenho sempre uma espuma na garganta que me faz comichão todas as noites e às vezes amanheço a tossir muito... Mas nunca mais tive aquela aflição no peito. Só alguma dificuldade em respirar.
[Para quem não compreende o que isto quer dizer: o Sr. Padre, depois do tratamento rigoroso, ficou com uma rinite alérgica e... asma.]
Há um provérbio macua que assevera que só quem toma os medicamentos com convicção se curará. Mas enfim, como ele próprio dizia, apesar de não ter ficado totalmente satisfeito com o tratamento, sempre é melhor a tosse e a comichão na garganta do que a asma... Outros há que "apanham menos sorte" e ficam com asma a vida toda porque o tratamento "não lhes deu efeito"...
Estes curandeiros, meus amigos, são sábios. São uns autênticos Voltaires do mato! Eles sabem como ninguém que uma parte importante da Medicina consiste precisamente em entreter o doente enquanto a natureza se encarrega da cura. E quando a doença não se cura sozinha é importante dar ao doente a certeza de que está muito melhor. O que o curandeiro conseguiu foi reduzir o impacto emocional das crises... Mas, caramba, uma casca de cágado é que não lembra ao careca!
domingo, 6 de fevereiro de 2011
[alhos e blogalhos] valha-me santo antónio do google
A Nossa Senhora do google pelos vistos não anda a dar conta do recado. A ver agora o que Santo Antoninho faz por mim, seja ele de Lisboa, de Pádua, de Namecuna, uma aldeia próxima de Iapala*, onde consta que também já terá aparecido um Santo António milagreiro ou, simplesmente, do google, onde parece que nos encontramos todos hoje em dia...
Meus queridos amigos, é verdade que ando intrigada: alguém me consegue explicar como é possível que uma pessoa que venha ter aqui ao mato buscando no google "mulatas selvagens" vá, invariavelmente, parar ao post sobre o improvável acordar do Bispo D. Manuel Vieira Pinto em Iapala, rodeado de galinhas?
Aliás, quando recebo mails de homens que me dizem qualquer coisa como "fui parar ao teu blogue por acaso" imagino sempre que devem ter começado por ler este episódio...
*Província de Nampula, Norte de Moçambique
Meus queridos amigos, é verdade que ando intrigada: alguém me consegue explicar como é possível que uma pessoa que venha ter aqui ao mato buscando no google "mulatas selvagens" vá, invariavelmente, parar ao post sobre o improvável acordar do Bispo D. Manuel Vieira Pinto em Iapala, rodeado de galinhas?
Aliás, quando recebo mails de homens que me dizem qualquer coisa como "fui parar ao teu blogue por acaso" imagino sempre que devem ter começado por ler este episódio...
*Província de Nampula, Norte de Moçambique
[outras palavras] áfrica, meu amor impossível...
Se pudesse dizer-te... por P. João Torres
Outras palavras, palavras de outrém, mas a paixão é a mesma... E a tristeza só pode ser a mesma, que quase se adivinha a dor no peito.
(Ocua, Cabo Delgado)
sábado, 5 de fevereiro de 2011
[vozes brancas* #38] enxaqueca infantil
Na consulta de ontem, um menino de quatro anos com gripe e uma dor de cabeça daquelas de ficar esparramado no sofá o dia inteiro sem ver televisão, a ponto de ter feito o inédito pedido à empregada de "por favor, importa-se de baixar o som dos bonecos?"... Aliás, tinha sido precisamente esse inusitado pedido que tinha alarmado a mãe. Sim, que ser aquele pirata a pedir para baixar a televisão era coisa nunca vista nem sonhada, veja lá doutora que este leãozinho deve estar mesmo muito doente, pois se ele nunca se queixa de nada...
- Mas deu-lhe alguma coisa para as dores?
- Não, Doutora, não lhe dei nada. Ele não tinha febre...
[Um clássico...] - Ah, está bem, mas pode sempre dar-lhe um analgésico se ele tiver dores... Onde é que te dói a cabeça, Duarte?
[Apontando para a fronte] - É aqui. Mas à tarde estava-me a doer de lado...
- E ficaste maldisposto por causa da dor de cabeça?
- Sim, fiquei com vontade de vomitar... [E, vendo o olhar subitamente horrorizado da mãe...] Mas era só vontade, eu não vomitei, mãe!
[Oh, valha-me a Santa, papéis de pais e filhos invertidos já tão cedo! A mãe conta com o filho para lhe acalmar a ansiedade... Nota mental: tenho de me pôr a pau com esta família, que qualquer dia rebenta tudo... Mas, enfim, agora o que é preciso é tratar a gripe, depois logo se trabalha o resto...] - E ficaste tonto?
- Sim, de manhã, quando me levantei, vi o candeeiro da sala a andar à roda. [E olhando a mãe de soslaio...] Mas agora já não.
- E como é que é a dor?
- ...
- Bem, Doutora, eu acho que ele ainda é muito pequenino para conseguir responder a esse tipo de perguntas...
- Tem razão, mas pode ser que ele consiga. Tenta lá dizer, Duarte, como é que é a dor? É assim sempre a doer ou é como se fosse alguém a bater?
- É assim como se fossem cólicas, mas mais rápido!
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
- Mas deu-lhe alguma coisa para as dores?
- Não, Doutora, não lhe dei nada. Ele não tinha febre...
[Um clássico...] - Ah, está bem, mas pode sempre dar-lhe um analgésico se ele tiver dores... Onde é que te dói a cabeça, Duarte?
[Apontando para a fronte] - É aqui. Mas à tarde estava-me a doer de lado...
- E ficaste maldisposto por causa da dor de cabeça?
- Sim, fiquei com vontade de vomitar... [E, vendo o olhar subitamente horrorizado da mãe...] Mas era só vontade, eu não vomitei, mãe!
[Oh, valha-me a Santa, papéis de pais e filhos invertidos já tão cedo! A mãe conta com o filho para lhe acalmar a ansiedade... Nota mental: tenho de me pôr a pau com esta família, que qualquer dia rebenta tudo... Mas, enfim, agora o que é preciso é tratar a gripe, depois logo se trabalha o resto...] - E ficaste tonto?
- Sim, de manhã, quando me levantei, vi o candeeiro da sala a andar à roda. [E olhando a mãe de soslaio...] Mas agora já não.
- E como é que é a dor?
- ...
- Bem, Doutora, eu acho que ele ainda é muito pequenino para conseguir responder a esse tipo de perguntas...
- Tem razão, mas pode ser que ele consiga. Tenta lá dizer, Duarte, como é que é a dor? É assim sempre a doer ou é como se fosse alguém a bater?
- É assim como se fossem cólicas, mas mais rápido!
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
[nomes que dizem tudo #14] ou que nos fazem imaginar coisas selvagens
Os dois irmãos, Guisado e Castigo, com um sorriso de derreter a mais disfórica das criaturas, a caminho do rio Molocué para o mergulho do fim da tarde... Como raio é que a madrinha ou o padrinho destes anjinhos se foi lembrar de dar nomes deste calibre a dois recém-nascidos?
(Gilé, Zambézia)
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
[improbabilidades] nomes que dizem tudo
Improvável é uma pediatra entrar numa enfermaria e deparar-se com dois gémeos, de suas graças Figo e Zidane, internados para circuncisão religiosa e não ter um ataque de riso... Obviamente nascidos em pleno Euro 2004! When else?
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
[curar... curar é difícil...] sobretudo se a doença for cabeça grande*
A casa do curandeiro...
(Muiane, Zambézia)
Se tomas remédios sem convicção, não te curarás!
Sabedoria popular Macua
* Muru tokhotokho, à letra, cabeça grande, doença tradicional macua, equivalente a uma doença psicossomática cultural.
[welcome to mozambique] medicina tradicional
Uma banca de medicina tradicional numa rua de Nampula.
(Nampula, Moçambique)
E para quem se interessa pelo assunto: no plano mais afastado de quem aprecia a imagem está a famosa batata africana (namuassa para os macuas e Hypoxis rooperi para os entendidos, para os armados em bons e para os investigadores). Há alguns anos estava muito em voga para tratamento da SIDA, antes de os anti-retrovirais estarem tão disponíveis e difundidos no país. Eu própria também tive oportunidade de ver alguns doentes de SIDA que começaram a tomar batata africana em Iapala e verifiquei que, apesar de não melhorarem da doença, melhoravam do apetite e, consequentemente, do estado nutricional, acabando por quebrar um ciclo vicioso que a breve trecho seria fatal... Hoje em dia já se vê muito menos batata africana à venda pelas estradas. Curiosamente, na Europa, o grande boom da utilização da batata africana foi na Alemanha e para tratamento médico da hiperplasia benigna da próstata. Mas acho que entretanto foi abandonado porque não dava grande resultado...
Ao centro, uma casca de cinchona, de onde de extrai o quinino para tratamento da malária. Mais perto de nós, à esquerda, as "escovas de dentes macuas" para uma higiene dentária profunda e coloração da boca, língua e gengivas de um laranja quente, sinal de status na rara classe média do Norte de Moçambique (os mais pobres não lavam os dentes e os mais ricos utilizam dentífrico importado). À direita, carvão vegetal que imagino que seja utilizado para afecções intestinais. E, ao centro, umas plantas fibrosas que dizem que são incrivelmente eficazes nas parasitoses intestinais (ouvi descrições quase apocalípticas em primeira mão, a que vos vou obviamente poupar, sob pena de nunca mais ninguém querer vir aqui ao mato ouvir mais histórias de África...). Tudo o resto acho que não conheço.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
[welcome to mozambique] beleza pura
Em alternativa ao salão de cabeleireiro "Entra feia e sai bonita", já que não nos recordamos da sua localização exacta (valha-me São Cristóvão, que nunca devo ter tido um pingo de androgénios no cérebro...), podemos sempre aconselhar a quem vive em Nampula os serviços do Salão Beleza Pura, na berma da estrada que segue para Nacala. Resultados garantidos ou eles devolvem o seu dinheiro!*
(Nampula, Moçambique)
*Com mais ou menos coação, mas pronto...
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
[instantes] um olhar de sede morta
Beber água fresca limpa de um riacho pela casca de uma árvore... Prazer súbito de quem desesperava de sede e ardor no peito num calor de inferno e, em segundos, a força da água o faz reconciliar novamente com a vida em torno...
(Foto do R., Murrupula, Nampula)
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