Maputo, Moçambique
(continuando...)
Na altura ainda não existia internet de banda larga em Moçambique. No local para onde eu ia só alguns meses antes é que tinham colocado electricidade e telefone, as comunicações eram caras, difíceis e pouco fiáveis e só tinha conseguido falar pessoalmente uma única vez com o Padre Zé Maria, director da Casa do Gaiato de Maputo. A única coisa que ele tinha ficado a saber sobre mim era que eu era estudante de Medicina, que queria muito ir e que estava disposta a ajudar no que fosse preciso. A única coisa que eu tinha ficado a saber sobre a Casa do Gaiato era que a minha ajuda – ou qualquer ajuda – seria sempre bem-vinda e que trabalho não me faltaria.
Não conhecia ninguém em Moçambique. Não conhecia ninguém que já tivesse feito voluntariado em Moçambique e a pessoa que me tinha ajudado a estabelecer o contacto pouco me tinha adiantado sobre o país, o dia-a-dia ou mesmo sobre a Casa do Gaiato…
Algumas vezes pensei se não seria loucura da minha parte meter-me num avião para o outro lado do mundo nestas condições. Ainda hoje penso que foi loucura da minha parte ter-me metido no avião nestas condições. Mas nunca dei parte de fraca, isso teria sido a morte dos meus sonhos, sobretudo se tivesse vacilado perante a minha família, que nunca me teria deixado ir se me visse angustiada... Só falei dos meus medos ao meu melhor amigo (sim, meus queridos amigos, esse mesmo, o da crise de soluços...), que me respondeu simplesmente: "Princesa, close your eyes and think of England*!" E pronto, com esta me fui, lá fiz das tripas coração, arregacei as mangas e fiz-me ao caminho.
Eu não tinha qualquer ideia romântica sobre África. Não tinha curiosidade em conhecer parques naturais, praias lindíssimas, areais brancos a perder de vista, ver o nascer do sol no Índico, aprender línguas africanas ou assistir a danças e rituais de iniciação.
Já tinha visto nascer crianças, mas nunca tinha visto ninguém morrer, nunca tinha estado num campo de refugiados, não sabia que era possível crianças irem à guerra e pegarem em armas, nunca tinha visto pessoas a viver numa lixeira e fazer disso um modo de vida. Mas também nunca tinha tido a sensação arrebatadora de que a vida podia fazer sentido a cada instante, desde uma criança que brinca depois de ter estado dois dias em coma, desde um abraço ao nascer do sol até a uma improvável, mas bíblica, chuva de sapos no final de um dia de sonho.
O que eu queria, na altura, era apenas dedicar as minhas férias a trabalhar como voluntária e ter uma experiência com crianças desfavorecidas. Estava, portanto, na ingenuidade dos meus vinte e poucos anos, a anos-luz de imaginar que tinha partido por um caminho sem volta para me apaixonar irremediavelmente...
(continua)
* Conselho habitualmente dado às jovens noivas da Era Vitoriana na noite de núpcias, erroneamente atribuído à própria Rainha Vitória. E como é que uma frase desta crueza aparente me conseguiu confortar assim? Isso, meus amores, é mesmo outra história...
Sem comentários:
Enviar um comentário