terça-feira, 6 de abril de 2010

[psicanálise selvagem] freud não fumava. nada.

Há alguns anos atrás, no meu primeiro ano de médica, estreei-me no Centro de Saúde da Lapa a fazer consulta de Medicina Geral e Familiar. Uma tarde, um compositor famoso residente na freguesia abordou-me dizendo que queria deixar de fumar, mas que tinha múltiplos bloqueios e associações mentais que o faziam, quase de forma supersticiosa, ter medo de deixar o tabaco... Que sabia que era a forma mais básica de raciocínio e defesa de personalidade, blá blá, blá, mas que não conseguia lutar contra isso. Que até tinha feito psicanálise durante 5 anos, não por este motivo, claro, mas que nem com esse treino desconstruía os vícios de raciocínio (nem deixava o do tabaco...).

Era a última consulta do dia e não me apetecia nada ir para casa estudar, portanto alongámo-nos na história da sua vida e o senhor, depois da observação, deixou-se ficar deitado na marquesa a falar... Eu poderia ter insistido para ele se levantar, mas foi tudo tão natural que também o deixei ficar e regressei para o outro lado da secretária, para continuar a ver passar a vida... Nisto, ele deixa escapar um lapso linguístico que não me passou despercebido e fiz-lhe o reparo porque era relevante para o caso...

Mas longe de admitir o lapso, parece que o meu reparo lhe carregou num interruptor qualquer:
- Mas isso é um disparate, não era nada disso que eu queria dizer. Aliás, deixei a psicanálise precisamente por causa disso! Os lapsos podem ocorrer sem que queiram dizer que eram o nosso desejo mais íntimo.
- Tem razão, concordo, mas não deixa de ser uma associação que fez espontaneamente... e depois embatucou com ela... Se calhar neste caso era relevante...
- Mas isso é dizer a mesma coisa, só que enfeitada com laçarotes cor-de-rosa!
- Pois, talvez... mas eu acredito que quando as associações nos fazem sentido as devemos explorar...
- Eu acho é que Freud era um alucinado. E mais perigoso do que tudo é que o raciocínio dele é tão circular que às vezes se torna irrefutável!
[Comecei a ficar nervosa]
- Isso é verdade, tem razão... Mas eu não estava a falar em Freud, estava a falar na associação que fez.
[Já com alguma agressividade]
- Mas isso é um absurdo, sabe bem que estava a falar na herança de Freud. E essa história da livre associação é dogmática, não é nada científica, não sei como é que uma médica consegue cair nesse erro! [De súbito, caindo em si, levantou-se da marquesa…] Desculpe, eu estava a falar consigo, mas era como se estivesse a falar com o meu pai…
- Ah, agora é que você foi Freudiano! Agora é que o Freud saltava lá do caixão!
[E dando uma gargalhada]
- Tem razão… E acha que Freud fumava?
- Acho que não…
- Pois... o meu pai também não...

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