quarta-feira, 14 de abril de 2010

[crescer na guerra] e continuar a ser gente



Ano de 2003, Casa do Gaiato de Maputo. Foi naquele orfanato que vivi os encantos e os horrores de primeira vez em África.

Alguns dos meninos mais velhos, na altura já com 17 ou 18 anos, tinham andado na guerra. Apercebi-me disso já quase no fim da minha estadia no meio de uma conversa com os mais novos, uma frase cruzada captada de raspão, que na altura não me fez muito sentido porque não podia conceber os meus meninos numa situação tão monstruosa. Mas claro, se tinha acontecido com tantas crianças, por maioria de razão poderia ter acontecido a estas, tão desprotegidas...

E nessa noite a frase ecoava-me nos ouvidos, não tanto pelo sentido como pela expressão comprometida do menino que a tinha dito e o olhar fulminante dos outros que o rodeavam. Claramente era um assunto tabu, não entre eles, mas entre eles e os adultos. Ainda assim só consegui ter a certeza de que aquela interpretação não tinha sido fantasia minha quando o Padre Zé Maria mo confirmou, embora não se tivesse alongado muito:

- O que é que isso interessa agora? Já basta tudo quanto sofreram. Há dois anos apareceram aí uns oficiais do exército a perguntar quais é que tinham sido os meninos que tinham sido mobilizados para a guerrilha, queriam nomes, sabe-se lá para quê, mas eu recusei-me a responder. Quase todos agora são adolescentes normais. Só um ou dois é que o psiquiatra achou que precisavam de acompanhamento. Para quê desenterrar o que já lá vai se não os ia ajudar em nada? Mais vale que esqueçam...

Mas não, não esqueciam. Eram diferentes dos outros. E seriam sempre diferentes… Para os mais novos, os que tinham sido mobilizados eram respeitados e reverenciados como uma espécie de heróis e rodeavam-nos para ouvir as suas histórias. Mas os mais velhos escutavam-nos mais com compaixão do que com respeito ou inveja. Entendiam a sua fragilidade… Não me foi difícil depois perceber quais eram estas "estrelas" que tinham um estatuto diferente e assisti a uma ou outra discussão em que não se abordava directamente o assunto da guerra, mas em que se notava claramente o seu fascínio por armas...

Será que se pode sobreviver a tudo isto e depois crescer normalmente, trabalhar com vontade, constituir uma família? Pelos vistos sim... Com mais ou menos marcas, com mais ou menos dificuldades na escola e nos relacionamentos, sei que todos acabaram por crescer, sair da casa e formar uma família... A isto os pediatras gostam de chamar resiliência. Eu não sei que lhe chame, mas não tenho muitas ideias mais...

Sem comentários:

Enviar um comentário