domingo, 15 de abril de 2012

[et in iapala ego] os primeiros dias no mato...

(Há oito anos atrás, quando terminei o curso de Medicina, tive umas férias de três meses antes de começar o internato. Foi aí que, pela segunda vez, parti para Moçambique em voluntariado. Desta vez para Iapala, uma localidade no meio do mato, no Norte de Moçambique, a 180 km de Nampula. Já em tempos vos contei como foi o meu primeiro dia em Iapala. Agora conto-vos como foi começar a trabalhar no hospital...)


A enfermaria de Pediatria do hospital da missão.
(Iapala, Nampula)


Em Iapala o trabalho no hospital começava às 07:00 em ponto. No pátio do hospital, em frente à sala de triagem, dois perus enormes debicavam o chão, numa ciranda incessante e perseguiam os transeuntes menos cuidadosos que se atravessavam no seu território demarcado. Inchados e de cauda aberta, num glu-glu-glu trôpego e ameaçador. Desviei-me deles como pude, ante o olhar divertido dos presentes. “Será que isto é uma praxe dirigida aqui à caloira?”, ocorreu-me, e entrei no hospital.

 Os trabalhadores do hospital já me esperavam, todos de pé, perfilados na sala de urgência dos adultos. Pareciam um pouco nervosos. Ou desconfiados, não sabia bem… Era a primeira vez que iam ter uma médica a trabalhar com eles. [Sim, pode parecer inacreditável, mas o hospital ainda hoje não tem qualquer médico; funciona só com técnicos, enfermeiros e serventes…] Os enfermeiros do turno da noite empunhavam os livros de ocorrências, prontos para comunicar o que se passara com os doentes durante o turno e os serventes tinham já os livros de inventário abertos. Olhavam para mim de forma mais ou menos disfarçada e com curiosidade. Apresentei-me, disse que me sentia muito grata por estar ali a trabalhar com um povo tão amistoso num local tão lindo como Iapala, que só pelas montanhas e pela beleza da noite já tinha valido a pena uma viagem de tão longe, e que esperava poder ajudar em tudo o que estivesse ao meu alcance… Deram-se por satisfeitos e começaram a passar as ocorrências: a principal fora que as famílias de duas crianças internadas tinham fugido com elas nessa noite.

 – Fugiram? Mas porquê? – perguntei.
– Ainda estavam a piorar e a família já estava aqui há mais de um mês… – o director respondia-me, impassível.
– O que tinham os meninos?
– Estavam desnutridos. A recuperação estava a demorar muito tempo e a família deve ter resolvido ir procurar um curandeiro… 

Não perguntei mais nada. Engoli em seco. Algo me dizia que ia ser muito mais difícil trabalhar em Iapala do que em Maputo. Era uma cultura tão diferente... Pelos vistos era uma ocorrência normal, porque ninguém parecia ter ficado surpreendido por duas famílias terem fugido na mesma noite, levando consigo crianças doentes que provavelmente já não voltariam a ter oportunidade de ser tratadas.

(continua...)

2 comentários:

  1. Ansiosa pela continuação...
    Estou no 6º ano de Medicina e o seu percurso é uma inspiração!

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  2. Obrigada, M.! Escrevo por isso mesmo... para se perceber que nada diisto é extraordinário. Mas é fantástico e divertido! Se bem que às vezes angustiante até à última!

    (um) beijo de mulata

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