O Rio Monapo
(Iapala, Nampula)
(continuando...)
Calei-me durante um bocado
e tentei desviar a conversa, enquanto me sentia culpada por ter recordado assim
de chofre àquela menina, ainda para mais em frente da sua amiga, que ela ainda
não era mulher. E enquanto prosseguia a conversa sobre o dia a dia na escola,
fui fazendo, angustiada, um filme sobre a desgraça que se abateria sobre aquela
jovem.
Para qualquer adolescente
de uma sociedade dita desenvolvida, não chegar à puberdade e não menstruar pode
ser muito perturbador, mas em África, isso implica um total aniquilamento
social! Não sendo menstruada não poderia participar nos ritos de iniciação e,
portanto, nunca poderia ser tratada e reconhecida como adulta. Ficaria para
sempre interditada de ter um lugar na sociedade, de tomar parte em cerimónias
tradicionais, em festas de adultos, não poderia assistir a ritos fúnebres – os
mais importantes ritos das sociedades africanas. Seria sempre tratada por todos
como uma criança. E escusado será dizer que não se poderia casar porque nenhum
homem aceitaria como esposa uma mulher que não tivesse cumprido a iniciação e,
pior, que claramente não pudesse ter filhos. A única condição que confere
estatuto social a uma mulher africana é a maternidade e as mulheres que não conseguem
conceber são ostracizadas. Esta menina estava condenada a ser infeliz, sem
apelo nem agravo...
– Desculpa, Artemisa, acho
que te magoei quando te perguntei se já eras menstruada – disse-lhe por fim –,
mas se quiseres falar sobre isso um dia, fica à vontade.
– Sim, tia P.
Estávamos a aproximar-nos
de um rio, onde mulheres e crianças tomavam banho, lavavam roupa e chapinhavam,
tentando refrescar-se do calor do fim de tarde. A vegetação perto do rio era
cada vez mais densa. Comecei a ficar nervosa por não conseguir ver bem onde
punha os pés.
– Costuma haver cobras por
aqui, Artemisa?
– Não muito, tia P.,
só mesmo crocodilos…
Arrepiei-me, subitamente
gelada. Crocodilos, valesse-me São Francisco de Assis?
– Estás a brincar?
– Não, tia P.
– Mas estão pessoas a
lavar a roupa, crianças a tomar banho, não há perigo?
– Sim, há perigo, mas é d’fícil eles saírem a esta hora da
tarde. Aqui há sombra e eles gostam di
sol...
– Mas já tem havido
acidentes?
– Sim, às vezes há
acidentes com crocodilos.
– E mesmo assim as pessoas
permanecem tanto tempo expostas ao pé do rio?
– Ah, tia P. – um
sorriso condescendente –, os acidentes só dependem do destino das pessoas...
Voltámos para casa quase
ao anoitecer, depois de termos falado sobre muitas coisas, e visitado o bairro,
a escola, o lar público onde os estudantes viviam acantonados, numa pobreza e
desolação arrepiantes, o fontanário, o mercado… Eu vinha menos alegre,
pensativa, perturbada com a miséria e a dureza do dia a dia com que me tinha deparado,
perturbada com o diagnóstico de Síndrome de Turner que tinha acabado de fazer,
com todas as suas implicações para a vida da menina, estava triste com a minha
própria precipitação, por ter iniciado a conversa de forma tão desastrada e não
ter sabido depois conduzi-la de forma construtiva.
Foram comigo até à porta
do hospital e, num gesto de cortesia, encarregaram-se de enxotar por mim o
casal de perus, que continuava no mesmo sítio.
– Vocês conhecem estes
bicharocos?
– Sim, tia P., são
perus!
– Não! Pergunto se conhecem
estes mesmos perus. Costumam estar aqui?
– Sim, são do Senhor
Ramos, comerciante do bairro. São muito mal-educados. Perseguem pessoas!
– Pois, já percebi… Mas
pensei que poderia ser uma “praxe” para mim…
– Irmã?
– Ah, deixem estar…
Obrigada pela companhia! Até logo.
Deixaram-me e voltaram
para casa, que eram horas de fazer o jantar. Eu queria ir visitar o menino que
tinha internado com diarreia. Já estaria melhor?
(continua...)
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