Ontem à noite lembrei-me deste maravilhoso post da Paracuca*, a propósito de uma mãe que me disse que a filha tinha estado internada no ano passado com um "princípio de apendicite".
Não há nada que mais irrite um médico do que alguém dizer que teve "um princípio de qualquer coisa". E não há nada que mais me deixe comprometida do que eu própria dizer "o seu filho está com um princípio de pneumonia". Eu não o deveria dizer, eu sei. Mas às vezes as pessoas com quem falo não sabem ler sequer e até têm dificuldade em identificar correctamente onde raio é que ficam os pulmões, quanto mais pronunciar a palavra "pleumonia" ou compreender o que lhes estou a dizer.** Tenho a certeza de que se lhes dissesse, ainda que trocando por miúdos, que "o menino tem uma infecção respiratória viral com uma provável sobreinfecção bacteriana", não me compreenderiam. Por isso os clássicos "tem uma manchinha no pulmão" e "é um princípio de pneumonia" de vez em quando também me saem... Mea culpa, mea tão grande culpa...
Mas há pais que eu sei que conseguem compreender e portanto, a esses exijo-lhes princípios e não lhes admito "princípios" de doença nenhuma. E ontem, quando estava a explicar que "princípio de apendicite" era coisa que não existia, a mãe teve uma saída impagável. E na mouche:
- Pois, estou a ver. É mais ou menos como a minha sobrinha de 3 anos que ontem caiu para trás e disse que tinha dado "um bocadinho de bate-cu".
- Precisamente! É esse o espírito!
* Esta princesa há meses que não escreve, mas prometeu que voltava. E, Dra. Muxy-Muxy, não se esqueça, "ajoelhou, tem que rezar!"
** Para saber mais sobre este tema, há ali na coluna da direita todo um conjunto de posts com o tag "a minha vida dava um filme cigano".
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
domingo, 30 de outubro de 2011
[as melhores do serviço de urgência] the dark side of the cough
Hoje é sábado, em pleno fim de semana prolongado e joga o Benfica. "Humpf, um Benfica-Olhanense faz este efeito na afluência ao Serviço de Urgência?", duvidava o meu chefe de equipa. Mas sim, lá veio depois a admitir, contra factos não há argumentos. E quando joga o Benfica toda a gente sabe que os hospitais ficam desertos. Até a natalidade diminui temporariamente (ainda mais), que os pais fazem tudo por tudo para acabar de ver o jogo: "Ó querida, aguenta aí as contracções só mais um bocadinho que estamos a ganhar!"
Já no final do jogo veio um bebé de nove meses com uma dificuldade respiratória intensa. O pai vinha com ele ao colo, muito preocupado:
- Doutora, eu estava a ver o jogo, mas nem aguentei mais. O menino está-me com esta respiração e eu estou preocupadíssimo.
- Pois, está com pieira e tem falta de ar.
- Pieira? Ah, é assim que se diz?
- Sim, estes gatinhos que se ouvem, esta espécie de chiar.
- Exacto, é isso! Eu telefonei à minha mulher e só lhe conseguia explicar que ele estava com uma tosse horrível e uma respiração assim "à Darth Vader".
- Bem, com essa descrição... qualquer um o mandava para o hospital!
[Os pais de hoje são tão filhos dos anos 80...]
Já no final do jogo veio um bebé de nove meses com uma dificuldade respiratória intensa. O pai vinha com ele ao colo, muito preocupado:
- Doutora, eu estava a ver o jogo, mas nem aguentei mais. O menino está-me com esta respiração e eu estou preocupadíssimo.
- Pois, está com pieira e tem falta de ar.
- Pieira? Ah, é assim que se diz?
- Sim, estes gatinhos que se ouvem, esta espécie de chiar.
- Exacto, é isso! Eu telefonei à minha mulher e só lhe conseguia explicar que ele estava com uma tosse horrível e uma respiração assim "à Darth Vader".
- Bem, com essa descrição... qualquer um o mandava para o hospital!
[Os pais de hoje são tão filhos dos anos 80...]
sábado, 29 de outubro de 2011
[welcome to mozambique] até os leões parecem gatinhos...
Mau! Querem ver que ainda temos de chamar os bombeiros? "Por favor, venham salvar um casalinho de leões que está aqui em cima de uma árvore!"
(Parque Natural da Gorongosa, Moçambique)
Do absolutamente fantástico Blog da Gorongosa.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
[outras palavras] porque assim como assim ainda há muita gente que come
Afinal o que importa não é a literaturaM. Cesariny de Vasconcelos (a propósito da notícia abaixo, que me deixou louca...)
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.
[das coisas que me deixam louca] o importante não é haver gente com fome...
Ontem fiquei louca, absolutamente fora de mim com esta notícia, citada pelo Professor. Então não é que o Director Nacional da Agricultura de Moçambique, um tal de Momed Valá* de quem nunca tinha ouvido falar, veio a público dizer que não acha que o problema da fome em Moçambique seja alarmante, como refere o relatório da FAO deste ano?
E vai mais longe: diz que não há ninguém que possa provar que nos últimos anos se tenha morrido de fome em Moçambique! "Agora, que haja problemas de subnutrição no mundo rural, concordo, aí podemos falar juntos. Mas não há nenhuma pessoa na Zambézia e em Nampula, por exemplo, que não tenha acesso à mandioca para comer. Mas a mandioca só resolve o carbohidrato e continuamos a ver crianças subnutridas porque estão pouco vitaminadas.”, acrescentou.
E continua: que não se pode confundir fome com desnutrição. Que se pode percorrer o país do Rovuma ao Maputo e não encontrar nenhum caso de fome. Que ele próprio teve um trabalho titânico mas que conseguiu que se passasse a comer tomate na província da Zambézia. E que em Nampula a população está muito melhor porque já come xima com molho e não apenas com peixe seco, como antes (!).
Mas o que é isto, valha-me Deus? Não sei o que me assusta mais, se a mentira descarada, se a confusão absolutamente imperdoável de conceitos, se a ignorância que demonstra ao canalizar esforços para objectivos tão desadequados. E é o homem que está à frente da agricultura do país...
* É que nem sequer me apetece fazer trocadilhos com o nome de tão estupefacta que estou.
E vai mais longe: diz que não há ninguém que possa provar que nos últimos anos se tenha morrido de fome em Moçambique! "Agora, que haja problemas de subnutrição no mundo rural, concordo, aí podemos falar juntos. Mas não há nenhuma pessoa na Zambézia e em Nampula, por exemplo, que não tenha acesso à mandioca para comer. Mas a mandioca só resolve o carbohidrato e continuamos a ver crianças subnutridas porque estão pouco vitaminadas.”, acrescentou.
E continua: que não se pode confundir fome com desnutrição. Que se pode percorrer o país do Rovuma ao Maputo e não encontrar nenhum caso de fome. Que ele próprio teve um trabalho titânico mas que conseguiu que se passasse a comer tomate na província da Zambézia. E que em Nampula a população está muito melhor porque já come xima com molho e não apenas com peixe seco, como antes (!).
Mas o que é isto, valha-me Deus? Não sei o que me assusta mais, se a mentira descarada, se a confusão absolutamente imperdoável de conceitos, se a ignorância que demonstra ao canalizar esforços para objectivos tão desadequados. E é o homem que está à frente da agricultura do país...
* É que nem sequer me apetece fazer trocadilhos com o nome de tão estupefacta que estou.
[disclaimer do disclaimer] a vida emocional dos pinguins...
Interrompemos novamente a emissão para colocar uma vez mais os pontos nos ii. Desta feita, haja o que houver, será a última vez. Meus queridos amigos, este blogue não tem um único destinatário. Se tivesse um único destinatário o blogue não seria público, não teria caixas de comentários abertas e não teria um mail. É certo que os leitores não têm direito a reclamar, mas isso é porque o Sr. Pompisk (para ele um grande abraço) também não tem um livro de reclamações na sua barraca do Gilé*. E eu gosto muito das pessoas que vêm aqui partilhar comigo um pouco deste mato africano. Muito mesmo.
Mas há duas ou três pessoas para quem escrevo em especial. Não sei se vêm aqui ou não, mas tenho esperança que sim, que venham também de vez em quando ter comigo. E o post dos pinguins mesmo aqui abaixo, aparentemente tão nonsense, era dedicado a uma delas. Apenas isso. Podem parar de matar a cabeça com a vida emocional dos pinguins. E sobretudo não percam o vosso tempo, por favor, a pensar na minha opinião sobre a vida interior dos bicharocos ou sobre a vida privada daqueles casalinhos monogâmicos encantadores... Era só uma private joke. E queria apenas dizer "gosto muito de ti, não penses que eu queria dizer outra coisa".
Quanto à história da viagem para Nampula, eu só prometi que escrevia até chegar ao destino. O que se passou a seguir foi tão complexo que duvido que o consiga contar... Não me estou a fazer de difícil (no fundo isso transpira por todas as letras: eu sou uma mulher fácil!), a história é que é quase impossível...
* Para os que só chegaram agora, basta seguir o tag Sr. Pompisk ali na coluna da direita e ficam a perceber por que é que esta afirmação não faz qualquer sentido.
Mas há duas ou três pessoas para quem escrevo em especial. Não sei se vêm aqui ou não, mas tenho esperança que sim, que venham também de vez em quando ter comigo. E o post dos pinguins mesmo aqui abaixo, aparentemente tão nonsense, era dedicado a uma delas. Apenas isso. Podem parar de matar a cabeça com a vida emocional dos pinguins. E sobretudo não percam o vosso tempo, por favor, a pensar na minha opinião sobre a vida interior dos bicharocos ou sobre a vida privada daqueles casalinhos monogâmicos encantadores... Era só uma private joke. E queria apenas dizer "gosto muito de ti, não penses que eu queria dizer outra coisa".
Quanto à história da viagem para Nampula, eu só prometi que escrevia até chegar ao destino. O que se passou a seguir foi tão complexo que duvido que o consiga contar... Não me estou a fazer de difícil (no fundo isso transpira por todas as letras: eu sou uma mulher fácil!), a história é que é quase impossível...
* Para os que só chegaram agora, basta seguir o tag Sr. Pompisk ali na coluna da direita e ficam a perceber por que é que esta afirmação não faz qualquer sentido.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
[disclaimer] eu gosto de pinguins, tsá?
A propósito do post de há pouco, em que está escrito qualquer coisa como: "És mesmo uma mulher básica! Um homem pode fazer-te juras de amor eterno e dizer que te vai respeitar e tratar como uma rainha que não lhe ligas nenhuma, mas não o podes ver com uma criança ao colo que te derretes logo! Tens a mania de que és uma mulher culta e esclarecida e depois vai-se a ver e tens a inteligência emocional de um pinguim.", queria dizer que o escrevi - e assumo o que escrevi - mas que não era minha intenção destratar os pinguins.
Eu, aliás, não tenho nada contra pinguins. Nem contra a inteligência emocional dos pinguins. E tenho muito respeito pela forma como vivem a família e pela forma como tratam as crias. Mas vocês entendem o que é que eu queria dizer, certo? É que obviamente me recuso a reduzir as relações de amor a uma função meramente reprodutiva. Daí a referência aos pinguins. Para que não venham reclamações.
Pronto, era só isto... Mas enfim, chega de psiquiatrices. Adiante.
[enfim, nampula] sempre chegamos ao sítio onde nos esperam...
Os Montes Nairuku num dia de sol...
(Nampula, foto recente amavelmente cedida por uma amiga minha)
(continuando...)
É incrível como às vezes há situações que parece que têm o condão de ir buscar o melhor que há em cada um e ressincronizar o bater dos corações.
Quanto a mim, tinha recuperado o entusiasmo, a vontade de avançar, a tranquilidade. A sensação daquele momento de enleio, em que o Sr. Cachimbo tinha pegado nas meninas assaltava-me de vez em quando, mas repetia para mim: “Não foi nada, não foi nada, está tudo bem, não se passou nada.” E ironizava: “És mesmo uma mulher básica, valha-me Deus, um homem pode fazer-te juras de amor eterno e dizer que te vai respeitar e tratar como uma rainha que não lhe ligas nenhuma, mas não o podes ver com uma criança ao colo que te derretes logo! Como é possível? Tens a mania de que és uma mulher culta e esclarecida, de mente aberta e livre e depois vai-se a ver e tens a inteligência emocional de um pinguim!” E tentava afastar aquela imagem impossível da minha mente.
Já não me preocupava em ir rápido, em chegar antes do pôr-do-sol. Tinha aquelas duas princesas para levar e havia que as transportar em segurança, isso era agora o principal. Ia mais devagar ainda mas não me importava, tinha mais tempo para me desviar dos buracos e dos outros carros. Até os chapas me pareciam menos agressivos… Era preciso parar de vez em quando, reavaliar as meninas, preparar mais soro, ver-lhes a temperatura, colocar-lhes repelente porque estava a anoitecer... Elas iam lentamente recuperando do estado de letargia em que se encontravam e, de cada vez que parávamos, o Sr. Cachimbo tinha melhores notícias. “Desde que parámos da última vez já beberam mais 200 mL cada uma!” “Ainda não voltaram a ter diarreia desde a outra vez lá atrás.” “A mais velha já se tentou pôr de pé e agora está aqui a brincar com o meu rádio!”
O dia terminava, o sol punha-se à minha esquerda e eu finalmente tinha tempo e espírito para apreciar a paisagem. Conduzir à noite era, de facto um desafio perigosíssimo, mas com a ajuda do Sr. Rafael, agora acordado e atento, lá íamos ultrapassando as dificuldades. Afinal aquela companhia improvável tinha sido providencial! Já passava da meia-noite quando os deixámos no Hospital Central, com as meninas muito mais hidratadas e ativas, passámos pelo bairro de Namutequeliwa (sim, o da barbearia Alvalade XXI) para deixar o Sr. Cachimbo e chegámos a casa das Irmãs, em Muahivire, exaustos mas com a sensação boa de quem tinha sobrevivido a uma prova de fogo… As Irmãs abriram-me a porta em camisa de dormir e estremunhadas. Só me esperavam no dia seguinte e ficaram assustadas de me ver chegar sem a Irmã Lurdes.
– Então, mas o que foi que lhe aconteceu?
– A Irmã Lurdes teve de ficar em Iapala a tomar conta de uma menina que adoeceu com malária cerebral. Mas tive um furo num pneu e tive de esperar que alguém nos ajudasse – disse simplesmente, preferi resumir a história.
– Mas… veio sozinha?!
– Não, vim com o Sr. Rafael.
– Onde é que ele está?
– Foi dormir para casa do guarda.
– Está bem, já tínhamos preparado o vosso quarto. Já jantou?
– Não, mas não quero nada, obrigada! Só preciso de uma cama, que estou a cair de sono…
(não sei se continue...)
[as melhores do serviço de urgência] perturbações do sono...
- A sua menina alguma vez foi operada a alguma coisa?
- Sim, foi operada às "agnóides" quando tinha três aninhos...
- Foi operada aos adenóides e também pôs tubos nos ouvidos?
- Não, Doutora, foi só às "agnóides" porque o que ela tinha era "as peneiras" do sono...
- Tinha o quê?
- Tinha "as peneiras" do sono.
- Ah... parava de respirar?
- Sim, isso.
[As peneiras do sono... Isto é genial! Era uma menina simples durante o dia, o problema é que dormia com a arrogância de quem sonha...]
- Sim, foi operada às "agnóides" quando tinha três aninhos...
- Foi operada aos adenóides e também pôs tubos nos ouvidos?
- Não, Doutora, foi só às "agnóides" porque o que ela tinha era "as peneiras" do sono...
- Tinha o quê?
- Tinha "as peneiras" do sono.
- Ah... parava de respirar?
- Sim, isso.
[As peneiras do sono... Isto é genial! Era uma menina simples durante o dia, o problema é que dormia com a arrogância de quem sonha...]
sábado, 22 de outubro de 2011
[outras palavras] amanhã não existe!
(...) O prazer do momento anteponhamosOdes de Ricardo Reis
À absurda cura do futuro, cuja
Certeza única é o mal presente
Com que o seu bem compramos.
Amanhã não existe. Meu somente
É o momento, eu só quem existe
Neste instante, que pode o derradeiro
Ser de quem finjo ser?
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
[beijo de mulata não cresce aqui] mas devia...
(Paris)
Era aqui que eu queria estar esta noite e, infelizmente, não posso... Resta-me rezar para que a despedida seja o menos dolorosa possível e que os que ficam encontrem forças para se apoiarem. A mãe deles disse-lhes, pouco antes de morrer (eram eles ainda crianças): "Levo-vos atravessados no meu coração. Amo-vos tanto..." Ele há uns dias disse-lhe o mesmo. E ela, irmã dele e Irmã do mundo inteiro, vai ficando, mas cada vez com mais partes de si longe deste mundo. Há tantos caminhos para a santidade...
[sabes que estás obcecado com os cortes orçamentais quando...]
Serviço de Urgência, bebé de 8 meses com uma gastroenterite. Depois dos conselhos habituais, das receitas, do relatório para o médico assistente, das recomendações sobre a vigilância e o contágio, da tranquilização da mãe, esta faz menção de se ir embora, mas de repente volta para trás:
- Doutora, é verdade, já agora que estou aqui... não consigo dar o biberão da noite ao meu filho há semanas. Já antes de esta doença começar ele não queria beber o leite.
- Não faz mal, o biberão da noite não é obrigatório, só se ele quiser.
- Ah, pronto, ainda bem! Razão tinha o meu marido...
- Sim, não se preocupe...
- O meu marido dizia que era o menino a preparar-se a crise e para os cortes orçamentais.
- Pois, era o que eu estava a pensar, o biberão da noite é mais ou menos equivalente aos 10% da Troika!
[Mas o que é isto, valha-me Deus? Também eu, Brutus? Querem ver que também já fui contaminada pela depressão colectiva?]
- Doutora, é verdade, já agora que estou aqui... não consigo dar o biberão da noite ao meu filho há semanas. Já antes de esta doença começar ele não queria beber o leite.
- Não faz mal, o biberão da noite não é obrigatório, só se ele quiser.
- Ah, pronto, ainda bem! Razão tinha o meu marido...
- Sim, não se preocupe...
- O meu marido dizia que era o menino a preparar-se a crise e para os cortes orçamentais.
- Pois, era o que eu estava a pensar, o biberão da noite é mais ou menos equivalente aos 10% da Troika!
[Mas o que é isto, valha-me Deus? Também eu, Brutus? Querem ver que também já fui contaminada pela depressão colectiva?]
quinta-feira, 20 de outubro de 2011
[instantes] pode uma mulher apaixonar-se na savana?
Hidratando uma criança no hospital. Num outro dia...
(Iapala, Nampula)
(continuando... vá, não desanimem...)
Ah, aqueles homens no seu melhor! Moçambique no seu melhor! Sorri, agradecida por aquele momento de tranquilidade e, de repente, voltei a ouvir o silêncio da savana e a sentir o cheiro do mato. A sensação de perigo e o pânico tinham-se desvanecido. Voltei para dentro do carro à procura do estetoscópio e da bolsa dos medicamentos. Preparei soro oral, consegui encontrar duas seringas dentro da minha mala-safari e voltei para o pé das meninas. Entretanto as mulheres, à boa maneira moçambicana, já se tinham instalado numa esteira no chão e aguardavam sentadas, calmamente, o resultado dos testes.
– Então, Sr. Cachimbo?
– Positivos, Doutora!
– Os dois?
– Sim, os dois. Doutora tem medicamento de malária?
– Tenho aqui quinino em comprimido para a mais nova.
– Para a mais velha eu tenho Coartem. Ando sempre com uma dose porque posso precisar…
– Óptimo! Pode ir buscar, então. Deixe-me só observá-las para ver se precisam de mais alguma coisa.
Observei-as, auscultei-as, vi-lhes os ouvidos, a boca, a garganta, a barriga... Era tudo só malária e desidratação grave. Ofereci-lhes soro na seringa e ambas tiveram a mesma reacção: precipitaram-se, ávidas e sôfregas para o líquido que lhes entrava enfim no corpo. Finalmente alguém as compreendia! Olhavam-me nos olhos e seguravam a seringa com ambas as mãos enquanto bebiam o soro, como uma criança olha a mãe e lhe toca no seio enquanto está a mamar com fome e prazer. Tomaram o paracetamol, o quinino e o Coartem sem qualquer dificuldade.
[Fico sempre admirada pela forma como estes meninos conseguem tomar comprimidos mais amargos que veneno sem um esgar de repulsa, sem o esboçar de um vómito, sem tentar cuspir…]
Quase ao mesmo tempo, o carro estava novamente pronto para partir.
– Vamos embora, então, que temos ainda muito que andar.
– Eu vou lá atrás na caixa do carro – ofereceu-se o Sr. Cachimbo.
– Atrás? Claro que não, Sr. Cachimbo, cabemos quase todos dentro do carro.
– Não, Doutora. As crianças não têm fralda. Têm de ir lá fora porque se não vão sujar o carro todo e as mamãs não vão aceitar.
– Acha?
– Sim, Doutora. Eu vou com elas para controlar se tomam soro.
– Está bem, então. Obrigada por fazer isso.
– Sim, Doutora.
Ajudou as mamãs a subir para a caixa aberta do jipe e entreguei-lhe as meninas, uma a uma e ele aproximou-se e envolveu-as nos meus braços, num abraço conjunto a três que durou um momento, mas o tempo suficiente para me transmitir uma ternura tal que quase me deixou atordoada. Pegou nelas com a delicadeza genuína de um pai enorme e desajeitado que tem receio de magoar as suas meninas doentes e entregou-as à mãe e à tia. Olhei-o, desarmada e ele sorriu-me, olhos nos olhos, brevemente, compenetrado no seu papel de enfermeiro de ambulância.
Partimos novamente. Os quatro adultos a quem íamos dar boleia com um sorriso aliviado nos lábios: as mulheres com um novo brilho no olhar e os homens ainda maravilhados por terem visto de perto a roda de um jipe e descoberto segredos que nunca imaginariam ao seu alcance. O Sr. Cachimbo subiu também para a caixa aberta, certamente de coração mais leve por ter sido prestável, por me ter impressionado e por se ter livrado da discussão azeda com o Sr. Rafael. E este, no banco ao meu lado, seguia agora finalmente tranquilo e disposto a dormir. O carro novamente estável e previsível, e com a direção alinhada. Em menos de meia hora o carro dos loucos tinha ganho uma alma nova. É incrível como às vezes há situações que parece que têm o condão de ir buscar o melhor que há em cada um e ressincronizar o bater dos corações.
(continua...)
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
[aviso à navegação] ignore este aviso!
Meus caros amigos, vocês sabem o respeito com que vos trato e o carinho que tenho por todos os que me vêm visitar aqui ao mato. Agradeço-vos do fundo do coração quando passam por cá e não me deixam viver sozinha nesta savana, com as minhas recordações, as minhas ruminações e as minhas histórias...
Mas, por favor, eu até já vos expliquei longamente as razões pelas quais este fim de mundo não possui um livro de reclamações. E não me venham dizer que o facto de na barraca do Sr. Pompisk* também não existir um livro de reclamações não é um argumento válido, que eu vivo com a máxima de "em Roma sê romano". Portanto, no Gilé tenho de ser zambeziana! E na verdade, também não me apetece... Por isso podem parar de reclamar com a história da minha viagem de Iapala para Nampula, que está longa demais, que já perderam o fio à meada, que já não sabem em que zona do globo me encontro, que este blogue pelo menos devia ter um GPS (esta vou considerar, pronto, não um GPS mas um mapa... às vezes dá jeito, sobretudo para quem, ao contrário de mim, tem a graça de ter umas gotinhas de androgénios no cérebro). E de qualquer modo, para não se aborrecerem, eu até vou intercalando com outras historietas... Palavra que não sei do que se queixam!
Por isso, meus queridos, podem ter a certeza de que eu só vou terminar a história da minha viagem de Iapala para Nampula quando, de facto, chegar sã e salva a Nampula, com o Sr. Rafael, o Sr. Cachimbo, as duas meninas doentes, os pais das ditas meninas, o pineu furado e todos os que mais vierem a juntar-se a nós pelo caminho. E tenho dito. É que foram quase 200 km à velocidade suicida de 30-40 km/h. E houve muitas peripécias. Desculpem qualquer coisinha, tá? Vá, parem de se queixar! Venham daí, voltemos para o mato.
* Para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um abraço. Um abraço apertado e cheio de saudade... Não sei se aguento muito mais, palavra.
Mas, por favor, eu até já vos expliquei longamente as razões pelas quais este fim de mundo não possui um livro de reclamações. E não me venham dizer que o facto de na barraca do Sr. Pompisk* também não existir um livro de reclamações não é um argumento válido, que eu vivo com a máxima de "em Roma sê romano". Portanto, no Gilé tenho de ser zambeziana! E na verdade, também não me apetece... Por isso podem parar de reclamar com a história da minha viagem de Iapala para Nampula, que está longa demais, que já perderam o fio à meada, que já não sabem em que zona do globo me encontro, que este blogue pelo menos devia ter um GPS (esta vou considerar, pronto, não um GPS mas um mapa... às vezes dá jeito, sobretudo para quem, ao contrário de mim, tem a graça de ter umas gotinhas de androgénios no cérebro). E de qualquer modo, para não se aborrecerem, eu até vou intercalando com outras historietas... Palavra que não sei do que se queixam!
Por isso, meus queridos, podem ter a certeza de que eu só vou terminar a história da minha viagem de Iapala para Nampula quando, de facto, chegar sã e salva a Nampula, com o Sr. Rafael, o Sr. Cachimbo, as duas meninas doentes, os pais das ditas meninas, o pineu furado e todos os que mais vierem a juntar-se a nós pelo caminho. E tenho dito. É que foram quase 200 km à velocidade suicida de 30-40 km/h. E houve muitas peripécias. Desculpem qualquer coisinha, tá? Vá, parem de se queixar! Venham daí, voltemos para o mato.
* Para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um abraço. Um abraço apertado e cheio de saudade... Não sei se aguento muito mais, palavra.
[a caminho de nampula...] e, de repente, tudo melhora
Uma criança muito desidratada... (Foto tirada noutra circunstância)
(Gurué, Zambézia)
(continuando...)
Era preciso fazer alguma coisa por elas rapidamente, ou possivelmente não chegariam vivas.
– Mas, papá, a mais pequena não mama?
– Está a negar, Irmã.
Que desespero! Mas eu já nem insistia muito… Quando os pais viam as crianças a recusar alimentação ou líquidos, pura e simplesmente não insistiam mais. Por isso me doía tanto na alma ver morrer crianças de desidratação, mesmo que as mães estivessem de peito a transbordar de leite e nos hospitais tivessem quanto soro oral fosse preciso à disposição. Eu bem tentava explicar-lhes que não era o soro que lhes provocava a diarreia, mas era quase impossível convencê-los… Mais valia ser eu a arregaçar as mangas e dar eu própria o soro às crianças. Pelo menos aquelas que eu tomava em braços não haveriam de morrer.
Em poucos segundos, já o Sr. Rafael saía do carro. Vi-o abrir a porta pelo canto do olho e precipitei-me para o ajudar para ele não cair estatelado no chão e consegui que saísse mais ou menos direito. Dirigiu-se directamente para o pneu traseiro do lado oposto, que de facto, bingo!, estava completamente em baixo.
– Papá, nós podemos levá-los mas temos um problema com o carro. Tem um pneu furado e precisa de ser trocado. Será que nos podia ajudar?
– Sim, Irmã.
Virou-se para o outro homem que o acompanhava e disse-lhe qualquer coisa em macua e lançaram-se de imediato ao trabalho, sob supervisão do Sr. Rafael que, de súbito, se tinha tornado num homem diferente. Composto, responsável, absolutamente em controlo da situação, comandando a “operação pneu” como se nunca tivesse feito outra coisa na vida. Ainda fiquei uns minutos a observar tudo, com medo que o Sr. Rafael fizesse alguma asneira e os homens se magoassem, mas ele estava totalmente transfigurado. Era notório que os homens nunca tinham trocado um pneu antes, já que o Sr. Rafael tinha de lhes mostrar, exemplificando, como é que se faziam os gestos mais básicos. Mas mesmo com os movimentos desajeitados de quem está alcoolizado, as instruções eram certeiras e o processo ia decorrendo na perfeição. Quando me voltei para ir ver as meninas, o Sr. Cachimbo já estava de roda delas, tinha conseguido convencer a mãe a dar de mamar à mais nova e preparava-se para lhes fazer o teste rápido da malária.
– Sr. Cachimbo, que ideia maravilhosa ter trazido testes rápidos!
– Eu ando sempre com alguns, Doutora. Nunca se sabe se vamos encontrar alguém que precise…
Ah, aqueles homens no seu melhor! Moçambique no seu melhor! Sorri, agradecida por aquele momento de tranquilidade e, de repente, voltei a ouvir o silêncio da savana e a sentir o cheiro do mato.
(continua...)
terça-feira, 18 de outubro de 2011
[de iapala para nampula] companheiros de fim de mundo...
Instantes do caminho...
Eu estava quase arrependida de ter aceitado meter-me à estrada sozinha… Ou pior ainda, sozinha com um bêbado e com um chato…
Felizmente nesse momento começámos a ver ao fundo, à beira da estrada um grupo de pessoas que caminhavam carregadas com cestos, nitidamente com os seus haveres, comida e utensílios de cozinha. As mulheres de cabeça coberta, os homens também carregados e com duas crianças no colo. No meio das cantorias e palmas, comecei a ouvir o Sr. Rafael dizer:
– Levam criança doente.
– Pois, deve ser, Sr. Rafael, devem ir para o hospital – finalmente alguém mudava de assunto, graças a Deus…
– Doutora dar boleia.
– Eu, Sr. Rafael? Mas e se temos um acidente? E se eles me caem da caixa aberta do jipe?
– Doutora… dar boleia.
– Mas, Sr. Rafael, não acha perigoso para eles? O que acha, Sr. Cachimbo?
– Eu concordo com o Sr. Rafael. Vamos dar boleia, Doutora, eles estão a passar mal…
– Sim, eles estão em dificuldades – balbuciou o Sr. Rafael com a voz entaramelada. – E vão ajudar a trocar pineu. Assim vamos mais rápido…
– Eles vão o quê?
– Trocar pineu… Eu não consigo, eu tem problema di perna…
– Trocar o quê?
– O pineu, Doutora, trocar pineu furado!
– Oh, valha-me São Cristóvão…
Mas seria possível?! Pelos vistos a impressão de que se passava qualquer coisa com o carro não tinha sido só impressão minha… Mas porque é que eu tinha de ser tão loira, caramba? É o que dá a falta de experiência na condução. Tinha furado um pneu naquela malfadada curva e o Sr. Rafael tinha-se apercebido de tudo! Por momentos fiquei furiosa, mas provavelmente ele não me tinha dito nada porque nem sequer lhe tinha ocorrido, no estado em que estava. Só se devia ter lembrado de esperar que encontrássemos alguém para nos ajudar. Mas, sinceramente, bem que me podia ter poupado um pouco mais as coronárias…
Parámos perto da família que caminhava à beira da estrada e já nos fizera sinal para pedir boleia. Saí do carro.
– Salama, papá.
– Salama, Irmã.
– Ihali? Novidades?
– Estou bem, não sei do seu lado.
– Estou bem, obrigada. O senhor tem criança doente?
– Sim, Irmã. Está com diarreia. Estou a pidir boleia para Nampula. Hospital Central...
– Deixe-me vê-la.
A criança não podia ter mais de 6 meses e saltava à vista que estava prostrada, a arder em febre e desidratada. Mais do que desidratada. Estava seca! E com aquela respiração superficial de quem está a entrar em choque. A irmã dela teria dois anos e parecia um pouco menos grave, mas também tinha febre e estava prostrada. Era preciso fazer alguma coisa por elas, ou possivelmente não chegariam vivas.
(continua...)
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
[vozes brancas* #54] traduzir a missa com os cinco sentidos...
Missa numa paróquia da Beira, filmada por dois amigos meus. Não me canso de ouvir estas vozes brancas, por cima de algumas vozes amadurecidas... Ainda não vos contei, mas aconteceu-me um milagre e agora tenho uma razão de peso para ir à Beira! Talvez um dia passe por aqui...
(Cidade da Beira, Moçambique)
[nomes que dizem tudo #24] gémeos
Tenho uma amiga - de quem já vos falei uma vez - que trabalha no Marrere, a 15 km de Nampula, num projecto iniciado por ela no combate à SIDA e à desnutrição naquela zona.
Há tempos enviou-me os dados do projecto para a ajudar a apresentar os resultados. Uma tarefa hercúlea, mas que me tem dado um prazer enorme, acreditem. Ainda no início do trabalho, estava eu a fazer contas e mais contas, quando me apercebi que teria de separar os gémeos num grupo à parte. E foi então que soltei uma gargalhada que se deve ter ouvido no prédio em frente. Mais uma vez confirmei que em Moçambique os gémeos são espiritualmente tratados como se de um só se tratasse. Por isso são vestidos de igual, devem ser tratados de forma o mais equitativa possível e os nomes também devem ser parecidos. Assim, na lista que a minha amiga me enviou, encontrei a bela soma de 72 pares de gémeos! Depois olhei melhor e percebi que talvez não fosse coincidência que os que tinham o nome mais parecido tinham nascido com pesos muito próximos e quando os pesos eram díspares, o que tinha nascido com maior peso tinha o nome mais comprido.
Não resisto a partilhá-los convosco... São uma delícia, vejam só:
- Elisete e Elisabete [Uma pequenita de 1700g e outra maior de 2500g.]
- Zita e Zito [Ambos com o belo peso de 2500g]
- Sandra e Santos [Pois, pelos vistos Santos pode ser nome próprio...]
- Aquiba e Equibal
- Sónia, Sunito e Sozinho [Pobrezito do bebé Sozinho...]
- Selma e Selmão [Adivinhem quem era o maior...]
- Amisse e Amizade
- Gito, Gildo e Judite
- Isa e Arde [Sem comentários...]
- Mércia, Comércio e Merecido [Oh, valha-me Deus!]
- Délfia e Delfina
- Deonilda e Deolinda
- Ortência e Ortêncio
- Ordina e Ordino [Um clássico... um conjunto de nomes com que me deparo em quase todo o lado.]
- Ánita, Anita e Anito [Os três equilibrados, entre 1800g e 2000g.]
- Vivi e Vilma
- Sónia e Sénia [Outro clássico...]
- Sony e Nokia [Oh, valha-me São João Baptista!]
- O casalinho Ilda Lino e Idalino Lino [Eu, se fosse a eles, zangava-me... mas isto são nomes para se dar a um filho? Ou a dois?!]
- Célio e Ofélio
- Estefânia e Vânia
- Belita e Benedita
- Miguel e Micael
- Rosário e Rosarinho
- Carla, Carlos e Cardoso
- Mildo e Imarildo...
- ...
Pronto, era isto... Voltamos para a estrada, na minha aventura Iapala-Nampula assim que conseguir parar de rir...
Há tempos enviou-me os dados do projecto para a ajudar a apresentar os resultados. Uma tarefa hercúlea, mas que me tem dado um prazer enorme, acreditem. Ainda no início do trabalho, estava eu a fazer contas e mais contas, quando me apercebi que teria de separar os gémeos num grupo à parte. E foi então que soltei uma gargalhada que se deve ter ouvido no prédio em frente. Mais uma vez confirmei que em Moçambique os gémeos são espiritualmente tratados como se de um só se tratasse. Por isso são vestidos de igual, devem ser tratados de forma o mais equitativa possível e os nomes também devem ser parecidos. Assim, na lista que a minha amiga me enviou, encontrei a bela soma de 72 pares de gémeos! Depois olhei melhor e percebi que talvez não fosse coincidência que os que tinham o nome mais parecido tinham nascido com pesos muito próximos e quando os pesos eram díspares, o que tinha nascido com maior peso tinha o nome mais comprido.
Não resisto a partilhá-los convosco... São uma delícia, vejam só:
- Elisete e Elisabete [Uma pequenita de 1700g e outra maior de 2500g.]
- Zita e Zito [Ambos com o belo peso de 2500g]
- Sandra e Santos [Pois, pelos vistos Santos pode ser nome próprio...]
- Aquiba e Equibal
- Sónia, Sunito e Sozinho [Pobrezito do bebé Sozinho...]
- Selma e Selmão [Adivinhem quem era o maior...]
- Amisse e Amizade
- Gito, Gildo e Judite
- Isa e Arde [Sem comentários...]
- Mércia, Comércio e Merecido [Oh, valha-me Deus!]
- Délfia e Delfina
- Deonilda e Deolinda
- Ortência e Ortêncio
- Ordina e Ordino [Um clássico... um conjunto de nomes com que me deparo em quase todo o lado.]
- Ánita, Anita e Anito [Os três equilibrados, entre 1800g e 2000g.]
- Vivi e Vilma
- Sónia e Sénia [Outro clássico...]
- Sony e Nokia [Oh, valha-me São João Baptista!]
- O casalinho Ilda Lino e Idalino Lino [Eu, se fosse a eles, zangava-me... mas isto são nomes para se dar a um filho? Ou a dois?!]
- Célio e Ofélio
- Estefânia e Vânia
- Belita e Benedita
- Miguel e Micael
- Rosário e Rosarinho
- Carla, Carlos e Cardoso
- Mildo e Imarildo...
- ...
Pronto, era isto... Voltamos para a estrada, na minha aventura Iapala-Nampula assim que conseguir parar de rir...
domingo, 16 de outubro de 2011
[de iapala para nampula] o carro dos loucos...
(continuando...)
Ainda íamos a um quarto do caminho e já o Sr. Cachimbo, frustrado de ver todas as suas investidas chutadas para canto pela bebedeira monumental do Sr. Rafael, começava a responder-lhe cada vez com maior azedume. Eu ia ver-me aflita se começassem a agredir-se verbalmente.
Aquilo parecia uma comédia de loucos com cenas de filme de terror, sobretudo a partir do momento em que, depois de uma curva, caímos num buraco que não consegui ver a tempo. O Sr. Rafael estava de pé naquele momento e caiu para a frente, entre os dois bancos dianteiros e agarrou-se com toda a força das suas unhas ao meu braço esquerdo, para não bater no pára-brisas e depois começou a rir-se sem conseguir parar, a gozar com a minha falta de jeito. O Sr. Cachimbo resolveu que a melhor maneira de mostrar o seu cavalheirismo era pregar-lhe um valente murro no braço! Ai, valesse-me Santa Rita de Cássia, que agora é que estava tudo perdido! A minha sorte foi que o Sr. Rafael, alcoolizado como estava, não sentiu qualquer dor e continuou naquele riso grotesco, sem devolver a agressão.
Estávamos em perigo. Parados no meio da estrada imediatamente a seguir a uma curva, caídos num buraco, sem maneira de sair dali rapidamente se viesse um chapa disparado. Mas eu estava prestes a explodir:
– Senhores, comportem-se que estão com uma senhora! Mais uma dessas e ficam já aqui, voltam a pé para Iapala, que eu não transporto homens violentos!
Eles calaram-se de repente e eu consegui voltar a focar-me no carro. Mesmo sem a tracção saímos sem dificuldade do buraco [afinal a instrução no Casal Ventoso não tinha sido só um exercício de estilo, o meu instrutor afinal era capaz de ter merecido cada uma das aulas suplementares que lhe tinha pago], mas com o susto, a irritação e o nervosismo, parecia-me que o carro tinha deixado de responder da mesma maneira. Fugia nas curvas, parecia que tinha a direcção desalinhada, que não me obedecia tão prontamente. Até a direcção me parecia mais pesada… E eu sem ter em quem confiar para partilhar esta impressão de que se passava qualquer coisa com o carro. Ou comigo, não sabia dizer bem… Via-me obrigada a ir a quase metade da velocidade e comecei a ficar em pânico de encontrar outro chapa e não conseguir fugir a tempo para a berma da estrada. Mas àquela velocidade nem à meia-noite chegaríamos à cidade… Sentia que estava a perder o controlo do carro e da situação dentro dele.
Era inenarrável a minha sensação de isolamento e abandono naquele momento, longe de tudo, incontactável, cansada e quase desnorteada, a pensar no pior que nos podia acontecer e quase arrependida de ter aceitado meter-me à estrada sozinha… Ou pior ainda, sozinha com um bêbado e com um chato…
(continua...)
Ainda íamos a um quarto do caminho e já o Sr. Cachimbo, frustrado de ver todas as suas investidas chutadas para canto pela bebedeira monumental do Sr. Rafael, começava a responder-lhe cada vez com maior azedume. Eu ia ver-me aflita se começassem a agredir-se verbalmente.
Aquilo parecia uma comédia de loucos com cenas de filme de terror, sobretudo a partir do momento em que, depois de uma curva, caímos num buraco que não consegui ver a tempo. O Sr. Rafael estava de pé naquele momento e caiu para a frente, entre os dois bancos dianteiros e agarrou-se com toda a força das suas unhas ao meu braço esquerdo, para não bater no pára-brisas e depois começou a rir-se sem conseguir parar, a gozar com a minha falta de jeito. O Sr. Cachimbo resolveu que a melhor maneira de mostrar o seu cavalheirismo era pregar-lhe um valente murro no braço! Ai, valesse-me Santa Rita de Cássia, que agora é que estava tudo perdido! A minha sorte foi que o Sr. Rafael, alcoolizado como estava, não sentiu qualquer dor e continuou naquele riso grotesco, sem devolver a agressão.
Estávamos em perigo. Parados no meio da estrada imediatamente a seguir a uma curva, caídos num buraco, sem maneira de sair dali rapidamente se viesse um chapa disparado. Mas eu estava prestes a explodir:
– Senhores, comportem-se que estão com uma senhora! Mais uma dessas e ficam já aqui, voltam a pé para Iapala, que eu não transporto homens violentos!
Eles calaram-se de repente e eu consegui voltar a focar-me no carro. Mesmo sem a tracção saímos sem dificuldade do buraco [afinal a instrução no Casal Ventoso não tinha sido só um exercício de estilo, o meu instrutor afinal era capaz de ter merecido cada uma das aulas suplementares que lhe tinha pago], mas com o susto, a irritação e o nervosismo, parecia-me que o carro tinha deixado de responder da mesma maneira. Fugia nas curvas, parecia que tinha a direcção desalinhada, que não me obedecia tão prontamente. Até a direcção me parecia mais pesada… E eu sem ter em quem confiar para partilhar esta impressão de que se passava qualquer coisa com o carro. Ou comigo, não sabia dizer bem… Via-me obrigada a ir a quase metade da velocidade e comecei a ficar em pânico de encontrar outro chapa e não conseguir fugir a tempo para a berma da estrada. Mas àquela velocidade nem à meia-noite chegaríamos à cidade… Sentia que estava a perder o controlo do carro e da situação dentro dele.
Era inenarrável a minha sensação de isolamento e abandono naquele momento, longe de tudo, incontactável, cansada e quase desnorteada, a pensar no pior que nos podia acontecer e quase arrependida de ter aceitado meter-me à estrada sozinha… Ou pior ainda, sozinha com um bêbado e com um chato…
(continua...)
[instantes] dei-lhe um beijo-de-mulata e ela sorriu-me!
Depois da primeira comunhão...
(Não sei onde foi... não tenho sequer a certeza de que tenha sido eu a tirar estas fotos... mas acho-as deliciosas!)
[outras palavras] morrer de desejo...
É isso que essas negras têm que nunca poderemos ter: elas são sempre o corpo inteiro. Todo o seu corpo é mulher, todo o seu tempo é feminino. E nós, brancas, vivemos numa estranha transumância: ora somos alma, ora somos corpo. Acedemos ao pecado para fugir do inferno. Aspiramos à asa do desejo para, depois, tombarmos sob o peso da culpa...Mia Couto in Jesusalém
sábado, 15 de outubro de 2011
[outras palavras] deixar os sapatos à porta...
Mia Couto, na abertura do ano lectivo na Universidade em 2005, escreveu e leu uma “oração de sapiência” sobre um dos seus temas mais caros, o combate à pobreza e aos preconceitos enraizados. Ele começou por referir que não podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos. "À porta da modernidade precisamos de nos descalçar.” E contou ”sete sapatos sujos” que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos... Um conjunto de ideias, atitudes e superstições, alguns apanágio da sociedade moçambicana, outros de quase todos os povos...
1º sapato - A ideia que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas;
2º sapato - A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho;
3º sapato - O preconceito de quem critica, é um inimigo;
4º sapato - A ideia que mudar as palavras muda a realidade;
5º sapato - A vergonha de ser pobre e o culto das aparências;
6º sapato - A passividade perante a injustiça;
7º sapato - A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros.
Daqui.
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
[welcome to mozambique] a caminho pelo mato fora...
No Caminho...
(Algures perto de Ribáuè, Nampula)
(continuando...)
“Isto não me está a acontecer! Não é possível…” pensava de mim para mim.
Ao meu lado, o Sr. Cachimbo ia tentando “marcar pontos”, querendo convencer-me de que ele próprio era um homem muito respeitador, que nunca tocava numa gota de álcool que fosse, que nunca na vida faria uma figura destas que envergonhasse quem estava com ele, que todas as suas mulheres teriam sempre direito a ser tratadas como rainhas… Eu, por meu lado, a única coisa que ouvia é que ele se referia às suas hipotéticas mulheres no plural.
E apesar de a poligamia fazer sentido na cultura macua e na religião muçulmana, naquele momento a conversa só me desgostava ao pensar no sofrimento e discriminação das mulheres e portanto tentava desviar a conversa e falava do tempo. E de cada vez que ele tentava derivar novamente para a forma como me trataria se eu quisesse ser mulher dele, eu recomeçava a dizer ao Sr. Rafael para tentar dormir, pedindo a todos os santinhos que ele não adormecesse de facto… isto porque está bem de ver que se ele adormecesse, eu deixaria de conseguir desviar a conversa tão facilmente.
No meio daquela confusão e conversa de surdos que era o nosso carro, íamos encontrando buracos enormes, de que às vezes quase não tinha tempo para fugir, e chapas a uma velocidade louca, vindos de qualquer curva sem aviso e que quase nos faziam sair da estrada para nos desviarmos, porque eles não se arredavam um milímetro que fosse e continuavam caminho exactamente pelo centro da estrada, onde o piso era mais direito e menos acidentado… Que diferença entre esta viagem e o encanto da primeira ida para Iapala. Que desconsolo… Nem tempo, nem oportunidade, nem disposição para olhar a paisagem que me tinha deixado literalmente sem ar e com vontade de repetir para mim “Verde, que te quiero verde”, como Garcia Lorca!
Mas as coisas não pareciam melhorar dentro do carro... Ainda íamos a um quarto do caminho e já o Sr. Cachimbo, frustrado de ver todas as suas investidas chutadas para canto pela bebedeira monumental do Sr. Rafael, começava a responder-lhe cada vez com maior azedume. Eu ia ver-me aflita se começassem a agredir-se verbalmente...
(continua...)
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
[de iapala para nampula] finalmente a caminho
(continuando...)
...e de repente estava tudo pronto para partirmos para Nampula. Em poucos minutos tinham chegado os dois homens que iam comigo, o Sr. Cachimbo com um saco na mão e um sorriso de orelha a orelha e o Sr. Rafael trôpego e alcoolicamente eufórico, amparado pela mulher, de quem volta e meia se tentava soltar, mas caía de imediato, desamparado, sem reflexos para se segurar, e era a mulher quem o mantinha de pé mais uma vez. “Isto promete!”, pensei…
- Bem, vamos entrando que se faz tarde e ainda temos muito que andar. Queria chegar a Nampula antes do pôr-do-sol...
Antes de subir para o jipe, a Irmã Lurdes chamou-me de parte para me dar as últimas indicações, rever comigo o caminho pela enésima vez e os últimos conselhos.
- Vá, boa viagem! E coragem, que com calma tudo se faz…
- Obrigada! Fique cá bem.
Dentro do carro, os dois homens começavam a dar sinais de impaciência. O Sr. Rafael continuava eufórico, mas por vezes abria a janela, colocava a cabeça e parte do corpo de fora, e o Sr. Cachimbo, que inicialmente estava tranquilo e a fingir-se de cego e surdo, agora começava a responder a uma ou outra frase proferida em tom mais elevado. Aquilo prometia, de facto… Subi para o carro.
- Bem, vamos embora! E, senhores, não se esqueçam de que eu sou uma senhora. Comportem-se, por favor.
Arranquei com o carro, surpreendida de afinal ter conseguido colocá-lo a andar e lá segui para Nampula, na mais improvável das companhias. O Sr. Rafael a bater palmas e a cantar músicas ininteligíveis em macua, de que só ia compreendendo algumas palavras aqui e ali. Percebia que se referia a partes do corpo das mulheres e, pelo tom da música e, pela cara do Sr. Cachimbo, imaginava que não seria uma música muito abonatória, mas fingia-me de surda. Ia-lhe dizendo de quando em vez, embora sem grande convicção:
- Durma, Sr. Rafael, durma que deve estar cansado e a viagem ainda é longa. Aproveite que tem o banco todo só para si. Deite-se e durma…
Mas nada. Continuava alegremente a cantar, a bater palmas, a colocar-se de pé para cair no solavanco seguinte. “Isto não me está a acontecer! Não é possível…” pensava de mim para mim.
(continua...)
...e de repente estava tudo pronto para partirmos para Nampula. Em poucos minutos tinham chegado os dois homens que iam comigo, o Sr. Cachimbo com um saco na mão e um sorriso de orelha a orelha e o Sr. Rafael trôpego e alcoolicamente eufórico, amparado pela mulher, de quem volta e meia se tentava soltar, mas caía de imediato, desamparado, sem reflexos para se segurar, e era a mulher quem o mantinha de pé mais uma vez. “Isto promete!”, pensei…
- Bem, vamos entrando que se faz tarde e ainda temos muito que andar. Queria chegar a Nampula antes do pôr-do-sol...
Antes de subir para o jipe, a Irmã Lurdes chamou-me de parte para me dar as últimas indicações, rever comigo o caminho pela enésima vez e os últimos conselhos.
- Vá, boa viagem! E coragem, que com calma tudo se faz…
- Obrigada! Fique cá bem.
Dentro do carro, os dois homens começavam a dar sinais de impaciência. O Sr. Rafael continuava eufórico, mas por vezes abria a janela, colocava a cabeça e parte do corpo de fora, e o Sr. Cachimbo, que inicialmente estava tranquilo e a fingir-se de cego e surdo, agora começava a responder a uma ou outra frase proferida em tom mais elevado. Aquilo prometia, de facto… Subi para o carro.
- Bem, vamos embora! E, senhores, não se esqueçam de que eu sou uma senhora. Comportem-se, por favor.
Arranquei com o carro, surpreendida de afinal ter conseguido colocá-lo a andar e lá segui para Nampula, na mais improvável das companhias. O Sr. Rafael a bater palmas e a cantar músicas ininteligíveis em macua, de que só ia compreendendo algumas palavras aqui e ali. Percebia que se referia a partes do corpo das mulheres e, pelo tom da música e, pela cara do Sr. Cachimbo, imaginava que não seria uma música muito abonatória, mas fingia-me de surda. Ia-lhe dizendo de quando em vez, embora sem grande convicção:
- Durma, Sr. Rafael, durma que deve estar cansado e a viagem ainda é longa. Aproveite que tem o banco todo só para si. Deite-se e durma…
Mas nada. Continuava alegremente a cantar, a bater palmas, a colocar-se de pé para cair no solavanco seguinte. “Isto não me está a acontecer! Não é possível…” pensava de mim para mim.
(continua...)
[a sul da zambézia] o amor é um palco de guerra...
Um tanque de guerra feito cama sob as estrelas em Marromeu...
(Marromeu, Sofala)
Marromeu, uma terra encostada à Zambézia, na margem sul do rio que marca o fim da terra dos meus encantos. Há quem diga que foi um indigente que aqui dormiu...
Mas eu pergunto, não pode este carro armado ter sido antes a cama onde duas pessoas se amaram, sob o tecto negro e tórrido do cruzeiro do sul? Não pode a rede mosquiteira ter sido o garante da nudez tranquila de dois corpos que se queriam conhecer sem urgência e saborear o abraço conjunto e a proximidade dos corações? Não pode a chapa fria ter sido coberta pela capulana que ela recebera de presente nesse mesmo dia? Não pode o cantar rítmico das aves nocturnas e dos insectos ter sido a banda sonora mais bonita daquela dança quente a dois? Não pode o mesmo ruído da noite se ter transformado depois na canção de embalar que a savana lhes cantou até de manhã, celebrando aquele amor? Um amor provavelmente impossível, possivelmente proibido... proibitivamente caro, como são todos os amores proibidos?
E por ali ficou, palco de guerra abandonado, testemunha muda dos momentos em que dois corações bateram de repente ao mesmo tempo e depois ficaram por ali, abrandando lentamente, tentando perceber o tamanho do vazio que ficaria quando a manhã rompesse. Terá sido um até sempre? Isso talvez até seja fácil de saber... Se por lá estiver pelo menos um coração destroçado é porque o amor perdeu a guerra...
Divagações sobre este post...
terça-feira, 11 de outubro de 2011
[a viagem para nampula] o sr. cachimbo...
Um dos pavilhões do hospital...
(Iapala, Nampula)
(continuando...)
À porta do hospital, o técnico de laboratório, o Sr. Cachimbo, esperava-me para me pedir para ir comigo até Nampula. As notícias em Iapala corriam como um rastilho e já todos sabiam que eu partiria nesse mesmo dia.
Eu simpatizava com aquele jovem técnico, recém-formado. Era natural de Angoche, mais para o litoral, mas tinha um aspecto de homem nascido mais a Sul, alto, com um tronco bem delineado e músculos definidos, bem diferente dos macuas baixos e atarracados de Iapala. Tinha sido colocado em Iapala por sorteio nacional, um desterro atrás do sol-posto para qualquer jovem com vontade de se divertir. Era o seu primeiro emprego e parecia ainda muito verde, mas era competente e incansável, algo de tão raro que me surpreendia.
Saía pouco do hospital, não bebia álcool por imposição da sua religião muçulmana e, a cada doente que chegava, nem esperava que eu viesse. Fazia a admissão, perguntava o motivo de vinda ao hospital e, se tivesse algum sintoma de malária fazia o teste por sua própria iniciativa. Quando eu chegava ao hospital para o ver, o doente já vinha com um papel com o nome, a idade, o motivo de consulta… e o resultado do teste de malária! Um luxo nunca antes visto!
A Irmã Lurdes franziu o sobrolho. Não lhe tinham escapado os olhares insinuantes que o Sr. Cachimbo, bem-parecido, simpático e da minha idade, me mandava sempre que podia. Eu fingia-me desentendida e tudo sempre tinha corrido bem. Não acreditava que ele passasse dali e dava-me jeito relacionar-me bem com um técnico tão prestável. Já era praticamente o meu braço direito no hospital e era muitas vezes uma companhia agradável de conversa nos tempos mortos.
A perspectiva de passar tantas horas com ele ao meu lado no carro já não me agradava tanto, sobretudo porque ia estar nervosa e possivelmente em dificuldades. Mas talvez me fosse útil, já que o Sr. Rafael iria alcoolizado. A Irmã Lurdes pelos vistos pensou o mesmo, mas advertiu-o de que se não me respeitasse na viagem se haveria de ver em apuros com ela! Ele fez um ar meio ofendido meio sorridente, de quem no fundo achava graça que alguém colocasse a hipótese de ele ter um relacionamento comigo…
- O senhor é casado? – Perguntou-lhe a Irmã.
- Não, Irmã, sou solteiro.
- E quantos filhos tem?
- Só ainda tenho dois, Irmã.
- E onde vivem eles?
- Com as mães deles, um em Angoche e outro em Nampula. Gostava de ir visitar o mais novo amanhã…
A Irmã Lurdes olhou para mim, como quem diz: “Estás a ver o estilo?”, mas bastou ver o meu olhar para perceber que estava a pregar aos convertidos e que aquela conversa era escusada. Se havia coisa para a qual eu não estava virada era para aventuras improváveis ou amores impossíveis. O Sr. Cachimbo aproveitou a deixa para desaparecer, antes que mudássemos de ideias.
(continua)
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
[vozes brancas* #53] olhe, se faz favor, era uma cadeira para a dona alda!
Hoje tive na consulta mais uma bebé com uma malformação grave do aparelho urinário. Uma daquelas malformações que nunca são diagnosticadas antes de nascer, que deixam os pais inicialmente horrorizados, depois perplexos e por fim deprimidos e receosos de tudo... E quando por fim se mentalizam de que os filhos são meninos normais, lá vem mais uma das dezenas de cirurgias que têm de fazer ao longo da vida para os fazer vacilar e abanar-lhes de novo a confiança.
O meu trabalho não é tratar-lhes as malformações. Felizmente para os menino isso é trabalho para os cirurgiões, que eu nem uma orelha sei anestesiar, quanto mais fazer cirurgia reconstrutiva...
A menina de hoje chegou-me à consulta já com um mês e meio. Um mês e meio de internamentos, cirurgias, infecções, complicações de todos os tipos e de todos os tamanhos e feitios... e a mãe, uma mulher madura e mãe de terceira viagem, chegou-me chorosa, com mil dúvidas e angústias. Vinha a zeros no conhecimento sobre a doença. Nem o nome da malformação sabia dizer apesar de ter uma licenciatura e ser claramente uma mulher inteligente.
No internamento já lhe tinham explicado tudo várias vezes, mas obviamente na altura não estava em condições de perceber o que quer que fosse enquanto a menina não estivesse livre de perigo e ao seu cuidado... Antes disso a sensação é de irrealidade. As mães estão ali mas na maior parte das vezes só estão a tentar sobreviver. São reacções normais. Por isso não achei estranho que tivesse de lhe repetir pela enésima vez que doença era, do que se tratava, que implicações tinha... Só comecei a ver o caso mal parado quando me começou a perguntar se a menina podia fazer vacinas ou se mais tarde haveria de comer normalmente.
- Comer normalmente? Sim, claro!
- Mas comer tudo, assim... mastigar... e engolir?
- Claro! Nesse aspecto é uma menina normal!
- E acha, Doutora... que ela algum dia vai...
- Se vai ter filhos?
- Não, já nem pergunto isso... Se vai...
- Sim?
- Se vai... andar?
- Claro! Ela é uma menina normal, só o aparelho urinário é que não funciona bem, mas tudo o resto é normal. E vai melhorar com o tempo e com as cirurgias.
Vi-a abanar a cabeça e baixar o olhar...
- Só está a dizer isso para me animar, não é?
Ó valesse-me Santa Rita de Cássia... Como é que eu lhe podia explicar? Foi então que me saiu a sorte grande: os pais da Sofia, uma menina de 8 anos com a mesma doença, bateram-me à porta para me dar um beijinho. Tinham ido a outra consulta e passaram por ali para me visitar e mostrar-me o resultado da última cirurgia. A Sofia vinha eufórica! Há dois meses que andava sem fralda e sem algália e tinha passado parte das férias em casa de amigas, calmamente na galhofa até às tantas sem ter de se preocupar com fraldas, cremes, pomadas, cheiros, tubos e sacos.
- Ah, ainda bem que vieram! Anda cá, Sofia, queres vir ver uma menina que tem a mesma doença que tu? Os pais dela vão gostar de ver uma menina já crescida e tão despachada.
Convidei a família para entrar no gabinete.
- Estás tão bonita, Sofia! E esse vestido fica-te tão bem!
- Está a ver, Doutora! Agora anda mais menina, finalmente - dizia a mãe com um sorriso. - Isto já devem ser as hormonas da puberdade!
- Não diga isso, mãe... Ela sempre foi tão menina, sempre foi ao ballet, à ginástica, sempre foi a festas e gostou de vestidinhos... - Fiz questão de frisar tudo isto para a mãe da bebé ouvir.
- Sim, Doutora, é verdade, mas era diferente, antes não era tão mimosa, não era tão menininha...
- Mas antes com a algália ela devia sentir-se inibida, coitadinha... - Dizia a mãe da bebé, já com um meio sorriso de quem finalmente pressentia que afinal havia esperança, mas a imaginar o sofrimento e os complexos que na sua cabeça a Sofia teria tido necessariamente.
- Nada disso! - Respondia a mãe da Sofia. - Nem imagina! Ela sempre foi uma bem disposta.
- Sim - ajudava eu -, uma força da natureza!
- Pois... na altura da algália até lhe comprámos uma bolsinha cor de rosa para ela a levar à cintura sem se notar, mas a maior parte das vezes fartava-se e andava com ela na mão. Fazia tudo, corria, jogava à apanhada e às escondidas com ela. E quando a chateavam ameaçava os colegas com o saco da algália!
- Então, dava-me mais jeito andar com ela na mão... Mas só os ameaçava na brincadeira, mãe. - A Sofia, com um sorriso reguila.
- Pois, pois, Sofia... E a algália até tinha um nome. Era a Dona Alda! - A mãe quase ria às gargalhadas de se lembrar.
- Isso era só às vezes, mãe...
- Ai, mas às vezes parecia que até fazia de propósito. Então quando íamos a restaurantes finos ela chamava os empregados e pedia toda empertigada: "Desculpe, precisava de uma cadeira para a minha algália, por favor!" E depois apresentava-a: "Boa noite, esta é a Dona Alda. Sente-se, Dona Alda, faça favor!"
Foi um excelente início! Mandei-os conversar uns minutos para o gabinete ao lado e a mãe da bebé voltou com uma alma nova... E acabámos a consulta a rir à gargalhada. Nem todos os doentes são impagáveis como a Sofia, eu sei. Mas os bons exemplos são para se mostrar e o bom-humor muda muitas vidas!
A vida, meus amigos, é simples. Tenham uma boa noite.
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
O meu trabalho não é tratar-lhes as malformações. Felizmente para os menino isso é trabalho para os cirurgiões, que eu nem uma orelha sei anestesiar, quanto mais fazer cirurgia reconstrutiva...
A menina de hoje chegou-me à consulta já com um mês e meio. Um mês e meio de internamentos, cirurgias, infecções, complicações de todos os tipos e de todos os tamanhos e feitios... e a mãe, uma mulher madura e mãe de terceira viagem, chegou-me chorosa, com mil dúvidas e angústias. Vinha a zeros no conhecimento sobre a doença. Nem o nome da malformação sabia dizer apesar de ter uma licenciatura e ser claramente uma mulher inteligente.
No internamento já lhe tinham explicado tudo várias vezes, mas obviamente na altura não estava em condições de perceber o que quer que fosse enquanto a menina não estivesse livre de perigo e ao seu cuidado... Antes disso a sensação é de irrealidade. As mães estão ali mas na maior parte das vezes só estão a tentar sobreviver. São reacções normais. Por isso não achei estranho que tivesse de lhe repetir pela enésima vez que doença era, do que se tratava, que implicações tinha... Só comecei a ver o caso mal parado quando me começou a perguntar se a menina podia fazer vacinas ou se mais tarde haveria de comer normalmente.
- Comer normalmente? Sim, claro!
- Mas comer tudo, assim... mastigar... e engolir?
- Claro! Nesse aspecto é uma menina normal!
- E acha, Doutora... que ela algum dia vai...
- Se vai ter filhos?
- Não, já nem pergunto isso... Se vai...
- Sim?
- Se vai... andar?
- Claro! Ela é uma menina normal, só o aparelho urinário é que não funciona bem, mas tudo o resto é normal. E vai melhorar com o tempo e com as cirurgias.
Vi-a abanar a cabeça e baixar o olhar...
- Só está a dizer isso para me animar, não é?
Ó valesse-me Santa Rita de Cássia... Como é que eu lhe podia explicar? Foi então que me saiu a sorte grande: os pais da Sofia, uma menina de 8 anos com a mesma doença, bateram-me à porta para me dar um beijinho. Tinham ido a outra consulta e passaram por ali para me visitar e mostrar-me o resultado da última cirurgia. A Sofia vinha eufórica! Há dois meses que andava sem fralda e sem algália e tinha passado parte das férias em casa de amigas, calmamente na galhofa até às tantas sem ter de se preocupar com fraldas, cremes, pomadas, cheiros, tubos e sacos.
- Ah, ainda bem que vieram! Anda cá, Sofia, queres vir ver uma menina que tem a mesma doença que tu? Os pais dela vão gostar de ver uma menina já crescida e tão despachada.
Convidei a família para entrar no gabinete.
- Estás tão bonita, Sofia! E esse vestido fica-te tão bem!
- Está a ver, Doutora! Agora anda mais menina, finalmente - dizia a mãe com um sorriso. - Isto já devem ser as hormonas da puberdade!
- Não diga isso, mãe... Ela sempre foi tão menina, sempre foi ao ballet, à ginástica, sempre foi a festas e gostou de vestidinhos... - Fiz questão de frisar tudo isto para a mãe da bebé ouvir.
- Sim, Doutora, é verdade, mas era diferente, antes não era tão mimosa, não era tão menininha...
- Mas antes com a algália ela devia sentir-se inibida, coitadinha... - Dizia a mãe da bebé, já com um meio sorriso de quem finalmente pressentia que afinal havia esperança, mas a imaginar o sofrimento e os complexos que na sua cabeça a Sofia teria tido necessariamente.
- Nada disso! - Respondia a mãe da Sofia. - Nem imagina! Ela sempre foi uma bem disposta.
- Sim - ajudava eu -, uma força da natureza!
- Pois... na altura da algália até lhe comprámos uma bolsinha cor de rosa para ela a levar à cintura sem se notar, mas a maior parte das vezes fartava-se e andava com ela na mão. Fazia tudo, corria, jogava à apanhada e às escondidas com ela. E quando a chateavam ameaçava os colegas com o saco da algália!
- Então, dava-me mais jeito andar com ela na mão... Mas só os ameaçava na brincadeira, mãe. - A Sofia, com um sorriso reguila.
- Pois, pois, Sofia... E a algália até tinha um nome. Era a Dona Alda! - A mãe quase ria às gargalhadas de se lembrar.
- Isso era só às vezes, mãe...
- Ai, mas às vezes parecia que até fazia de propósito. Então quando íamos a restaurantes finos ela chamava os empregados e pedia toda empertigada: "Desculpe, precisava de uma cadeira para a minha algália, por favor!" E depois apresentava-a: "Boa noite, esta é a Dona Alda. Sente-se, Dona Alda, faça favor!"
Foi um excelente início! Mandei-os conversar uns minutos para o gabinete ao lado e a mãe da bebé voltou com uma alma nova... E acabámos a consulta a rir à gargalhada. Nem todos os doentes são impagáveis como a Sofia, eu sei. Mas os bons exemplos são para se mostrar e o bom-humor muda muitas vidas!
A vida, meus amigos, é simples. Tenham uma boa noite.
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
[et in arcadia ego] refrões de uma vida...
I caught him with an unseen hook and an invisible line, which is long enough to let him wander to the ends of the world and still to bring him back with a twitch upon the thread!E. Waugh in Brideshead Revisited
domingo, 9 de outubro de 2011
[de iapala para nampula] improvável companhia...
Mulher macua de cabeça coberta...
(Foto encontrada algures na net... desculpem, mas mais uma vez não encontrei o link...)
(continuando)
Mas apesar dos receios, já estava convencida. Aliás, a minha história de vida está cheia de situações destas. Evito até à última as situações que me causam angústia e só in extremis me decido que se o touro tem de ser agarrado pelos cornos, ah!, então que seja uma pega a valer e o senhor bovino que se prepare, que vai passar um mau bocado! E pronto, lá vou eu, de coração reconstruído com duas tripas, de corpo feito, ainda que possa estar com a alma em frangalhos, para defrontar os meus temores mais inveterados.
- Não te preocupes, vou mandar chamar o Sr. Rafael, o nosso mecânico, para te acompanhar na viagem, se precisares de alguma coisa, de falar com alguém em macua ou se houver alguma avaria ele ajuda-te. Só não quero que vá a conduzir porque não tem carta e também porque bebe demais.
- Óptimo, obrigada, Irmã.
- Assim vais já hoje depois de almoço, sempre ganhas um dia porque tens de te preparar para fazer o rastreio de saúde aos meninos da escolinha e tenho de te pedir para ires às compras para a missão.
- Hoje?! Bem, está bem… – o nervoso miudinho a crescer novamente. Mas já estava mentalizada de que tinha de pegar o toiro pelos cornos.
Depois de almoço, já na altura do café, duas horas depois de termos mandado chamar o Sr. Rafael, a mulher dele bateu-nos à porta. Fui abrir. A senhora vinha com a cabeça coberta, sinal inequívoco de preocupação… [Oh, diabo, só me faltava mais esta…] Apresentou-se e pediu delicadamente para falar com a Irmã Lurdes. Não a convidei para entrar. Na cultura macua, entrar na casa de alguém só faz sentido se se for da família e um convite até pode ser mal interpretado.
- Irmã, está aqui a mulher do Sr. Rafael…
- Ai, valha-me Deus! – Ouvi-a suspirar, e depois acrescentou qualquer coisa entre dentes que me pareceu ser um “mas já estava bêbado àquela hora?”
Ouvi-as bichanar qualquer coisa à porta e, por fim, a frase da Irmã Lurdes:
- Deixe-o vir e logo vemos se está em condições de aguentar a viagem. Mas em princípio vai. Para ele não lhe faz diferença e até ganha algum dinheiro. E mesmo nesse estado pode ser que seja útil…
Nem queria acreditar que acabaria por ir para Nampula acompanhada por um homem embriagado, mas enfim, já estava decidido que eu iria para Nampula, já estava mentalizada que ia conduzir sozinha no fim do mundo, agora não ia desistir da viagem. Já tinha a mala feita e, enquanto esperava pelo Sr. Rafael, fui com a Irmã Lurdes ao hospital ver como estava a nossa menina e os outros doentes internados. Seria preciso mais alguma coisa? (Tenho sempre tanta dificuldade em desligar-me das minhas preocupações e dos meus doentes…)
(continua...)
[canção de embalar] obrigada, meu amor!
Quero agradecer-te por teres nascido...Já temos canção de embalar para cantar no teu baptismo! Inspirada numa canção de embalar macua e musicada e orquestrada pelo primo... Obrigada por teres nascido, meu amor! Saudades...
Dorme, meu amor, fica tranquilo
Porque enquanto estiveres a dormir
Eu fico aqui a repetir o teu nome
E Deus vela por todos nós...
sexta-feira, 7 de outubro de 2011
[a vida é simples] mas conduzir em moçambique não...
Alguns troços mais difíceis...
(Algures no caminho para Nampula)
(continuando)
Mas os meus receios tinham fundamento... A viagem de ida para Iapala e as saídas para o mato na campanha de vacinação tinham sido tudo menos simples. Apesar de ir sempre ocupada com os doentes que transportávamos, tinha-me apercebido de como era necessário ter um domínio perfeito do carro para não o deixar fugir nas zonas dos bancos de areia e ter reflexos rápidos para nos desviarmos dos inúmeros buracos, que mais pareciam crateras de meteoritos no meio da estrada...
Mesmo com a experiência de tantos anos da Irmã Lurdes, ficávamos "atascadas" uma média de três vezes por dia e às vezes caíamos, sem saber como, dentro de buracos impossíveis. Geralmente a tracção resolvia o incidente, mas naquele momento só me assaltavam a memória as várias vezes em que só voltámos à estrada com a ajuda da força de muitos homens que passavam naquele momento. Felizmente Moçambique trata-nos bem! Tudo acontece, é verdade. Não podemos esperar que existam boas estradas, bons serviços de assistência em viagem, boas oficinas, uma boa cobertura de rede de telemóvel. Não podemos esperar que existam sequer estradas ou quaisquer serviços, melhor dizendo. Mas geralmente tudo se resolve sem esforço. Tudo nos vem ter à mão, como uma bênção. E sem ter de gastar dinheiro em roaming!
Mas outras vezes, mesmo a força de braços era insuficiente e só nos livrávamos de apuros com a ajuda de outro jipe que passasse por ali, que nos rebocava com a corda enorme que tínhamos sempre connosco e que no primeiro dia me pregou um susto de morte, quando, distraidamente, abri o porta-bagagens e dei de caras com o que me pareceu ser uma cobra enrolada, a dormitar pacatamente em cima da esteira... Mas, claro, depois de nos rebocar, com o esforço do seu carro, na despedida nenhum dos nossos “salvadores” resistia a mandar a inevitável boca:
- Onde é que tirou a carta, Irmãzinha? Foi no Xai-Xai*?
- Não, foi em Nampula – suspirava a Irmã Lurdes, impávida, fingindo que não percebia o escárnio e o machismo da pergunta.
(continua)
* Uma cidade mais a Sul, conhecida por ser possível comprar a carta de condução sem se ter tido uma única aula de código ou de instrução. Mais ou menos como Nampula... Ou melhor, exactamente como Nampula, vá (ver post ali abaixo). Mas Nampula tem o proveito sem a fama. Vamos ver se mantemos as coisas assim, tá? Onde se fazem essas falcatruas é no Xai-Xai, não é no meu quintal!
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
[vozes brancas* #52] cada menino tem sua mãe... ou não?
Menino de três anos e sua mãe à espera do segundo filho, já no final do tempo de gestação. Mãe e filho namoravam com a barriga, falavam para o bebé, faziam festinhas, preparavam amorosamennte as roupinhas e as surpresas para o infante que lá vinha e que já tardava. E o irmãozinho dizia: "Olá, Miguel, 'tá aqui o mano! Vem dep'essa!" E o Miguel por lá continuava, impávido, no seu banho de imersão a trinta e sete graus à sombra, com a pulseirinha de "Tudo Incluído" que partia do umbigo e se enrolava no corpo todo.
Nisto, o irmão mais velho, de repente, faz uma pausa, com olhar vago.
- O que se passa, filho?
- Mãe... uma coisa...
- Sim, querido.
- O mano vem, mas traz a mãe dele, não traz?
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
Nisto, o irmão mais velho, de repente, faz uma pausa, com olhar vago.
- O que se passa, filho?
- Mãe... uma coisa...
- Sim, querido.
- O mano vem, mas traz a mãe dele, não traz?
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
[welcome to mozambique] o mais improvável exame de condução...
(continuando)
- Mas a Irmã tirou a carta em Nampula, é diferente, estava mais preparada para conduzir no mato…
- Qual quê! Queres que te conte? O carro de instrução de Nampula na altura só tinha três mudanças. A primeira, a segunda e a marcha-atrás…
- Está a brincar comigo?
- Claro que não. Era um desespero… O carro só pegava de empurrão. E nos dias maus só pegava nas descidas. Tinha de levar o guarda lá de casa para empurrar o carro, porque se não houvesse mais ninguém era o instrutor quem tinha de o empurrar e eu não conseguia meter as mudanças sozinha.
- Como?!
- Bloqueavam. As mudanças bloqueavam. Mas ele tinha um truque para as pôr a funcionar novamente. E os travões? Bem, nem queiras saber! Eram um susto. Havia momentos em que o carro não travava de maneira nenhuma e ele tinha de me ajudar e puxar o travão de mão com as duas mãos. As pessoas quando viam o carro de instrução fugiam. Se estivessem a atravessar uma rua voltavam para trás assim que nos avistavam. Mesmo as crianças! As mamãs deviam ensinar-lhes que aquele sinal no tejadilho era um grande perigo. Nem sei como nunca houve nenhum acidente…
- Credo!
- Bem, depois de aprender a conduzir aquele carro, qualquer outro era uma maravilha.
- Pois, imagino… Mas ainda existe esse carro?
- Existia até há cinco ou seis anos atrás. A Irmã Sunita ainda fez exame de condução nele quando veio da Índia, há dez anos atrás. Ela não sabia conduzir, mas tínhamos muita pressa que ela viesse para aqui porque tinha de começar a dar aulas na semana seguinte, portanto apresentou-se a exame como se já soubesse conduzir.
- Mas isso é possível?!
- Sim, aqui existe essa modalidade para os estrangeiros…
- Mas como é que teve coragem de se apresentar assim? E passou?
- Oh… – encolhendo os ombros – O que é que ela ia fazer para a escola de condução? Não ia lá aprender nada, só lá ia perder tempo. E passou! Eu ensinei-lhe no mesmo dia a meter a primeira e arrancar com o carro e fui com ela assistir ao exame. Ela nem nervosa ia. Se passasse tanto melhor, se não, paciência, ficava para a próxima.
- Inacreditável… Mas ela só com uma explicação de uma manhã conseguiu aprender a conduzir o suficiente para passar?!
- Claro que não! O exame foi do mais caricato que pode haver. Entrámos no carro com o examinador à frente e o instrutor e eu no banco de trás. Ela ligou o carro, meteu a primeira e conseguiu arrancar. Foi sorte de principiante. Mas deixou logo o carro ir abaixo. Isto no meio da avenida 25 de Setembro. E ali ficámos.
- E então?
- Então, passado alguns momentos, o instrutor diz-lhe: “Irmã, o carro parou!”, assim como se só ele é que tivesse dado conta. E ela, muito calma: “Sim, isso eu estou a ver, senhor examinador...”
- Lindo! E ele?
- Ficou atrapalhado… Ele, de facto, não sabia o que fazer. E às tantas perguntou-lhe: “E então, como pode resolver a situação?” “O que é que quer que eu faça?”, ela muito indignada, “O carro já não anda!” E era verdade. Ela não ia ser capaz de pôr o carro a funcionar outra vez… Havias de ver o espectáculo. Nós o quatro dentro do carro e os outros carros todos a apitar atrás de nós, os dois homens cada vez mais nervosos com aquela situação e nós como se não fosse nada connosco. O examinador tentou meter ele próprio a primeira para ver se ao menos saíamos dali, mas também não foi capaz. Quem conhecia os truques do carro era o instrutor. E esse não estava autorizado a fazer o que quer que fosse nos exames de condução…
- Ai, valha-me Deus!
- Pois… então, depois de esperarmos dentro do carro, com um calor infernal lá dentro, toda a gente a apitar atrás de nós, já um enorme engarrafamento na avenida, eu disse-lhes: “Os senhores têm de empurrar o carro para ver se ele pega.” E portanto o exame acabou assim, com o examinador e o instrutor a empurrar o carro e o carro sem pegar, isto em pleno Dezembro, na hora do calor. Os dois homens transpiravam por todos os lados, os outros carros continuavam a apitar e a fazer-nos rasantes… Uma situação totalmente inédita. A meio da avenida eu abri a janela, meti a cabeça de fora e disse: “Ela vai parar aqui mesmo! Estaciona e pronto, que os senhores já estão cansados.”
- Mas que grande lata! E eles?
- Eles agradeceram, claro! Ela virou o volante, encostou o carro e pronto. Terminou o exame.
- Nem posso acreditar! E passou?
- Claro! Nem coragem tiveram de a chumbar.
- Lindo!
E pronto, foi com esta história que a Irmã me convenceu a ir sozinha para Nampula...
(continua)
- Mas a Irmã tirou a carta em Nampula, é diferente, estava mais preparada para conduzir no mato…
- Qual quê! Queres que te conte? O carro de instrução de Nampula na altura só tinha três mudanças. A primeira, a segunda e a marcha-atrás…
- Está a brincar comigo?
- Claro que não. Era um desespero… O carro só pegava de empurrão. E nos dias maus só pegava nas descidas. Tinha de levar o guarda lá de casa para empurrar o carro, porque se não houvesse mais ninguém era o instrutor quem tinha de o empurrar e eu não conseguia meter as mudanças sozinha.
- Como?!
- Bloqueavam. As mudanças bloqueavam. Mas ele tinha um truque para as pôr a funcionar novamente. E os travões? Bem, nem queiras saber! Eram um susto. Havia momentos em que o carro não travava de maneira nenhuma e ele tinha de me ajudar e puxar o travão de mão com as duas mãos. As pessoas quando viam o carro de instrução fugiam. Se estivessem a atravessar uma rua voltavam para trás assim que nos avistavam. Mesmo as crianças! As mamãs deviam ensinar-lhes que aquele sinal no tejadilho era um grande perigo. Nem sei como nunca houve nenhum acidente…
- Credo!
- Bem, depois de aprender a conduzir aquele carro, qualquer outro era uma maravilha.
- Pois, imagino… Mas ainda existe esse carro?
- Existia até há cinco ou seis anos atrás. A Irmã Sunita ainda fez exame de condução nele quando veio da Índia, há dez anos atrás. Ela não sabia conduzir, mas tínhamos muita pressa que ela viesse para aqui porque tinha de começar a dar aulas na semana seguinte, portanto apresentou-se a exame como se já soubesse conduzir.
- Mas isso é possível?!
- Sim, aqui existe essa modalidade para os estrangeiros…
- Mas como é que teve coragem de se apresentar assim? E passou?
- Oh… – encolhendo os ombros – O que é que ela ia fazer para a escola de condução? Não ia lá aprender nada, só lá ia perder tempo. E passou! Eu ensinei-lhe no mesmo dia a meter a primeira e arrancar com o carro e fui com ela assistir ao exame. Ela nem nervosa ia. Se passasse tanto melhor, se não, paciência, ficava para a próxima.
- Inacreditável… Mas ela só com uma explicação de uma manhã conseguiu aprender a conduzir o suficiente para passar?!
- Claro que não! O exame foi do mais caricato que pode haver. Entrámos no carro com o examinador à frente e o instrutor e eu no banco de trás. Ela ligou o carro, meteu a primeira e conseguiu arrancar. Foi sorte de principiante. Mas deixou logo o carro ir abaixo. Isto no meio da avenida 25 de Setembro. E ali ficámos.
- E então?
- Então, passado alguns momentos, o instrutor diz-lhe: “Irmã, o carro parou!”, assim como se só ele é que tivesse dado conta. E ela, muito calma: “Sim, isso eu estou a ver, senhor examinador...”
- Lindo! E ele?
- Ficou atrapalhado… Ele, de facto, não sabia o que fazer. E às tantas perguntou-lhe: “E então, como pode resolver a situação?” “O que é que quer que eu faça?”, ela muito indignada, “O carro já não anda!” E era verdade. Ela não ia ser capaz de pôr o carro a funcionar outra vez… Havias de ver o espectáculo. Nós o quatro dentro do carro e os outros carros todos a apitar atrás de nós, os dois homens cada vez mais nervosos com aquela situação e nós como se não fosse nada connosco. O examinador tentou meter ele próprio a primeira para ver se ao menos saíamos dali, mas também não foi capaz. Quem conhecia os truques do carro era o instrutor. E esse não estava autorizado a fazer o que quer que fosse nos exames de condução…
- Ai, valha-me Deus!
- Pois… então, depois de esperarmos dentro do carro, com um calor infernal lá dentro, toda a gente a apitar atrás de nós, já um enorme engarrafamento na avenida, eu disse-lhes: “Os senhores têm de empurrar o carro para ver se ele pega.” E portanto o exame acabou assim, com o examinador e o instrutor a empurrar o carro e o carro sem pegar, isto em pleno Dezembro, na hora do calor. Os dois homens transpiravam por todos os lados, os outros carros continuavam a apitar e a fazer-nos rasantes… Uma situação totalmente inédita. A meio da avenida eu abri a janela, meti a cabeça de fora e disse: “Ela vai parar aqui mesmo! Estaciona e pronto, que os senhores já estão cansados.”
- Mas que grande lata! E eles?
- Eles agradeceram, claro! Ela virou o volante, encostou o carro e pronto. Terminou o exame.
- Nem posso acreditar! E passou?
- Claro! Nem coragem tiveram de a chumbar.
- Lindo!
E pronto, foi com esta história que a Irmã me convenceu a ir sozinha para Nampula...
(continua)
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
[improbabilidades] viajar no mato... sozinha
O ponto de partida...
(Iapala, Nampula)
(continuando)
A Irmã Lurdes lá me ia tentando animar com a perspectiva de ir sozinha para Nampula:
- Não te preocupes, que tudo se faz! Se fores devagar tudo se consegue. Eu tirei a carta já aos cinquenta anos em Nampula, em plena guerra civil e quase no mesmo dia vim para Iapala sozinha num carro velhíssimo. E nessa altura não havia estradas como estas, eram só buracos quase tapados pela vegetação. Era proibido circular, havia minas por todo o lado, não se podia sair do caminho nem que fosse para ir fazer chichi porque podíamos pisar uma mina.
- Credo! Mas não havia alternativas? O comboio não circulava?
- Circulava, mas só em determinados troços. Às vezes tínhamos mesmo de ir de comboio, sim, quando estávamos sem carro ou era preciso ir a um local onde não houvesse estradas. Mas era sempre uma odisseia. Qualquer viagem se podia prolongar por semanas a fio… Se houvesse uma emboscada, ali ficávamos até os guerrilheiros nos deixarem seguir novamente.
- Santo Deus! Mas assim não tinham maneira de continuar a viagem?
- Mas como, amiga? Estávamos incomunicáveis, não tínhamos meio de pedir que nos viessem buscar, não se podia sair do comboio e caminhar, mesmo que estivéssemos perto, porque no mato podia haver minas. Tínhamos era de ter muita paciência e ir prevenidas com sacas de arroz, peixe seco, feijão, óleo, carvão para cozinhar, e tachos e pratos e talheres e sei lá o quê mais… Ah, e medicamentos. Se caíssemos doentes com malária ali ficávamos. Podíamos morrer sem que ninguém pudesse fazer alguma coisa por nós. Eu levava sempre a minha mala cheia de medicamentos e acabava quase sempre por salvar vidas…
- Dias difíceis…
- Nós tínhamos de aguentar! Fazer o quê? Os dias que fossem necessários. Os que estavam à nossa espera é que passavam mal, com o sobressalto de ver passar os dias e nós a não chegarmos… Morria muita gente nessa altura.
- Mas e de carro? Era mesmo proibido circular?
- Para nós não. Os missionários circulavam com uma autorização especial e tínhamos uma fita azul no carro que nos identificava. Os guerrilheiros, graças a Deus, tinham muito respeito pelos missionários, porque nós não abandonámos o povo nunca e passávamos as mesmas dificuldades que eles... Portanto, voltando à tua viagem, bem vês que também tive de puxar pelas unhas e que tudo se faz!
- Mas tirou a carta em Nampula, é diferente, estava mais preparada para conduzir no mato…
(continua)
terça-feira, 4 de outubro de 2011
[improbabilidades] treinar a condução em picada... em lisboa
Iapala há alguns anos atrás...
(Nampula, Moçambique)
(Nampula, Moçambique)
Quando lá estive em missão, há uns anos, Iapala era África profunda. Ainda é. Mas quiçá um pouco menos... Na altura não tinha rede de telemóvel, não tinha estradas. A única casa com água canalizada e electricidade era a das Irmãs. Nem o hospital, que ficava mesmo em frente à nossa casa, tinha água canalizada.
Na véspera de uma ida à cidade, uma das meninas de quem as Irmãs tomavam conta caiu doente com malária cerebral e precisava de alguém para cuidar dela 24 horas por dia. Só com mais outra Irmã na Missão era impossível dispensar mais alguém nos dias seguintes. E foi assim que na manhã da partida ficou decidido que eu iria a Nampula… sozinha.
Fiquei em pânico. Eu tinha tirado a carta de condução poucos meses antes, no último ano do curso, e mal tinha tido tempo ainda para praticar no meu pequeno Ford em cidade, quanto mais num jipe 4x4 no mato. Se bem que me tinha tentado preparar...
Em Lisboa, na minha escola de condução tinha tido um instrutor bem-disposto e com um sentido de humor muito peculiar, natural da Guiné-Bissau, a quem tinha pedido especificamente que me preparasse para condução em picada. Claro que era ingenuidade minha. (Loiras…) Ficaria tão habilitada para conduzir em picada treinando-me no centro de Lisboa como uma adolescente ficaria preparada para os jogos olímpicos de natação aprendendo a nadar… digamos, num lagar de azeite! Mas enfim, como ele próprio dizia, quem não tem cão caça com gato, e lá me levou para o local próximo de Campo de Ourique mais parecido com uma picada africana de que se lembrou: o bom velho Casal Ventoso. Um dos piores ghettos de droga, habitação precária e miséria humana de Lisboa… Um ghetto já muito reconvertido, é certo, e com a maioria das pessoas realojadas, mas ainda assim tenebroso e assustador...
E no meio de esgotos a céu aberto, toxicodependentes e traficantes de droga, tinha ficado apta a fazer inversões de marcha em tempo muito razoável para quem tem um toxicodependente com mau aspecto a rondar a porta do carro, a arrancar numa subida em menos de um ai, a fazer pontos de embraiagem bastante bem, sobretudo se visse alguém por perto, e a sair dos buracos onde seria mais improvável cair. Mas não me achava minimamente capaz de conduzir o enorme e pesadão jipe das Irmãs, ainda para mais com o volante e as mudanças no lado oposto…
(continua)
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