(Continuando o
post abaixo... Não, não tem
link, não sejam preguiçosos, é o
post imediatamente abaixo deste, até mal parece andar aqui com hiperligações, valha-me São Vito!)
Olhei melhor para o menino enquanto a mãe o despia... Olheirento, frágil, com uma barriga inchada e o olhar infeliz que nenhuma criança deveria ter. A mãe também com um ar que quem não estava cá, perdida no meio de pensamentos e preocupações. Alguma coisa se passava, de facto, se bem que não necessariamente algo de orgânico... Palpei-lhe a barriga, inchada, cheia de ar. Nada. Palpação inocente. Nem tumores palpáveis, nem fezes, nem alterações da motilidade intestinal. Absolutamente nada! O menino apesar de triste estava bem nutrido, sem anemia, sem outros sinais que me chamassem a atenção. Olho a mãe nos olhos:
- Mas mãe... passa-se alguma coisa?
- Não, doutora...
- Mas está tudo bem lá em casa?
- Sim, está tudo bem.
[Sempre aprendi por experiência própria que é nas famílias do "lá em casa tudo bem" que as crianças mais sofrem por não poderem verbalizar as suas preocupações e geralmente quando pedem ajuda ou atenção é desta forma desajustada...]
- Mas tem havido preocupações, problemas entre o casal, alguém ficou desempregado, alguma coisa deste tipo? As crianças sentem muito isto, apesar de às vezes acharmos que não se apercebem...
- Não doutora, está tudo bem... Só tenho andado muito preocupada com isto...
- A barriga tem-te doído, meu querido?
- Às vezes dói quando está maior...
- E tem doído muitas vezes?
- Sim. Se calhar tenho um bebé na barriga...
- Ó filho, a mãe já te explicou que só as senhoras crescidas é que podem ter bebés na barriga. Os meninos não - a mãe carinhosa, mas visivelmente agastada por esta deixa do menino.
[Ó diabo... um rapaz de cinco anos e meio a verbalizar fantasias
crossgender deste calibre? E ainda por cima parece uma coisa recorrente, já que a mãe reagiu logo... Será esse o problema? Uma perturbação de identidade de género que a mãe não quer aceitar? Será que ele se identifica com uma menina e a mãe anda a tentar reprimir esse tipo de comportamentos? Será que na escola o gozam por isso? Parece tão frágil, tão franzino, de certeza que nem se consegue defender se os outros miúdos o gozarem e começarem a atacar por causa disso... E já sabemos como são as crianças... O filme todo a desenhar-se na minha cabeça... Claro que numa família destas, em que tem de estar sempre tudo bem, tem de demonstrar o seu sofrimento falando de dores de barriga - ou de dores de cabeça, ou de dores de outra coisa qualquer - nunca falando de sentimentos... Lá terei de fazer de médica incomodativa, mas enfim, o meu papel é ajudar o menino, não é dar palmadinhas nas costas a ninguém... Mas não me apetecia mesmo nada... Com fome, cansada, com falta de paciência... Depois desta tenho mesmo de fazer uma pausa!]
- Parece-lhe que ele tem andado infeliz?
- Ultimamente às vezes parece-me abatido...
- Mas tem brincado?
- Sim, brinca, mas lá na escola têm-me dito que tem brincado mais sozinho...
[Humm... aqui há gato...]
- E com que é que ele gosta de brincar?
- Brinca com os carrinhos dele...
- Só com carrinhos?
- Sim, também gosta de brincar aos polícias e ladrões e às naves espaciais.
- E faz o papel de quem, quando brinca?
[A mãe devia estar a achar aquilo tudo um disparate] - Geralmente faz o papel de polícia ou de comandante das naves espaciais... Mas o que é que isso tem a ver?
- Estava a ver se ele não estaria demasiado triste para conseguir brincar... [Pelos vistos até é muito rapaz...] E tem tido dificuldade em dar-lhe banho ou em vesti-lo de manhã?
- Não. Ele até se veste sozinho.
- E o que é que ele mais gosta de vestir?
- Coisas práticas, fatos de treino e assim. [É rapaz, de facto...]
- Quis mascarar-se no Carnaval?
- Sim, escolheu um fato de Homem-aranha. Tem uma adoração enorme pelo Homem-aranha - mãe e filho sorriam, cumplices, com esta frase.
[Bem, perturbação de identidade de género não tem de certeza... Nem está fora da realidade... Ou seja, ele sente de facto alguma coisa na barriga. Lá vou ter de lhe pedir uma ecografia abdominal. E logo a um miúdo cujo primeiro diagnóstico foi uma perturbação de identidade de género! Isto só a mim... Canário, por que é que os doentes nunca lêem os mesmos livros que os médicos?!]
E pronto, foi assim que fiz o raciocínio improvável e levemente
nonsense de que se o menino não estava deprimido nem tinha uma perturbação de identidade de género então só podia mesmo ter um tumor intra-abdominal... e não é que tinha mesmo? Um tumor benigno com 600 gramas. Bem que o pobrezinho dizia que tinha um bebé na barriga!