sábado, 12 de fevereiro de 2011

[improbabilidades] o curandeiro de nahavara




O curandeiro de Nahavara...
(Gilé, Zambézia)

Uma tarde, quando eu e a R. íamos visitar um doente a Nahavara, um bairro dos arrabaldes do Gilé, passámos por acaso próximo da casa de um curandeiro, imediatamente reconhecível pelas bandeiras brancas dispostas em círculo em torno da grande taça onde se preparavam os medicamentos, pela proximidade de um embondeiro com vestígios de farinha lançada nas cerimónias tradicionais de cura e pela distância respeitosa das casas dos vizinhos... 

Em frente à casa do curandeiro ficava uma outra palhota desabitada, que me explicaram depois que era onde os doentes e respectivas famílias ficavam alojados quando vinham de longe, porque os tratamentos podem ter duração de vários dias e, nos casos mais graves e renitentes, até de várias semanas... A palhota-de-internamento ostentava a inscrição "Bem-Vindo" na fachada, numa óbvia e sábia estratégia de marketing do curandeiro e quase só faltava anunciar os horários dos tratamentos e se as refeições estariam incluídas no alojamento... Ao lado da palhota do curandeiro um pequeno aterro, onde se enterravam depois de queimados os utensílios e medicamentos que restavam de cada tratamento, porque os medicamentos são sempre preparados à medida de cada doente e os utensílios, uma vez terminada a sua função, devem ser destruídos e não aplicados em outras pessoas, pelo risco de "contaminação" e transmissão de doenças, sejam elas problemas mentais, sociais, físicos ou feitiços e maus-olhados...

Fiquei excitadíssima! É que não era tarde nem era cedo. Tinha ali a minha oportunidade de ir conhecer mais de perto um curandeiro, um verdadeiro Mukhulukana macua e travar conhecimento com as cerimónias rituais de um representante vivo da cultura e das suas crenças e tabus... Já tinha imaginado como faria a abordagem e tinha o discurso preparado:

- Mosèliwa, Papá? [O dia amanheceu bem para si?]
- Ah, kosèliwa! [Sim, o dia amanheceu bem para mim.]
- Papá, eu sou médica em Portugal mas tenho uma preocupação muito grande...
- ... [Silêncio, olhar interrogativo de quem se pergunta, "Mas onde é que esta estacionou a nave?"]
- Txonnté! [Por favor, peço-vos.] Estou há muitos dias com uma grande dor no peito e não há medicamento nenhum dos que eu trouxe de Portugal que me consiga fazer passar a dor...
- ... [Semblante carregado... olhar ainda mais interrogativo...]
- Pensei que, como foi uma doença que apanhei aqui em Moçambique, talvez o Papá que conhece melhor as doenças daqui me possa ajudar a curar...
- ... [Silêncio... Olhar agora absolutamente neutro e impenetrável...]
- Mohiwè, Papá? [Compreendeu o que eu disse?]
- Ah, kohiwè. [Sim, compreendi. Um sorriso de quem nunca viu uma branca vestida de capulana e ainda por cima a falar macua.]
- E será que me pode ajudar? [A minha expectativa a crescer... Será que isto está a correr bem? Será que ele percebeu mesmo o que eu disse? Como é que ele vai reagir? Será que vai ficar ofendido? Ai, valha-me Nossa Senhora da Zambézia...]
- ... [Olhar agora enigmático... Será que se está a concentrar para iniciar o ritual de cura? Estará só a fazer-se difícil para eu começar a negociar um preço? Será que é suposto eu oferecer algo neste momento ou só no final? Ai que me devia ter preparado para isto com a ajuda de alguém daqui... Bem, o melhor é fazer o mesmo que ele: olhar para baixo e esperar que ele responda...]
- ... [Concentra-te, mulher, olha para baixo e mostra respeito...]

- Ainda bem que veio... [Encaro-o de frente. A resposta apanhou-me de surpresa...] Eu também estou doente... [Ó diacho, acho que não vinha preparada para isto... Então venho ao curandeiro e sai-me uma destas?]
- Então o que se passa, Papá?
- Quando mijo... sai sangue...
- Ah, deve ser bilharziose, Papá. Mas hoje não trouxe medicamentos para isso. Mas venha ter comigo ao hospital amanhã.
- Não, não posso ir ao hospital.
- ... [Ó valha-me São Vito, não só venho a um curandeiro que não me quer curar, como ainda tenho de o tratar e lhe preservar a reputação? Medicina científica 1 vs Medicina Tradicional 0! Isto só a mim! Mas bem feita, virou-se o feitiço contra o feiticeiro, que é para aprender a não ser cusca e não ir meter o nariz numa cultura alheia...]
- Mas não pode lá ir como se fosse visitar alguém? Depois fala comigo e eu dou-lhe os medicamentos.
- Está bem.
- Então apareça lá amanhã às 16:00. Eu vou estar no Banco de Socorro.
- Obrigado.

E foi assim o meu primeiro contacto directo com um curandeiro... Pode ser que da próxima vez tenha mais sorte...

2 comentários:

  1. Ahahahah!!! Só tu! Hmmm... isto deu-me uma ideia... e q tal aplicar este princípio a alguns pais no SU? :)
    Bjs

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  2. Ehehe! Era genial!

    Beijinhos para ti e para o G.!

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