Para melhor ouvir esta história, nem que seja na reverberação que as palavras fazem no pensamento, é preciso ler com sotaque. Não é preciso mais nada. Mas os puristas de Mia Couto sabem que as histórias dele são como a galinha à zambeziana: pode comer-se apenas com mandioca, mas com mucapata sabe incomparavelmente melhor.
(Para os que só agora chegaram a este mato, aqui fica a receita do acompanhamento: Faça como as crianças, vá até ao jardim, à praia, ao sofá da sala, deite a sua cabeça no colo de alguém de quem goste e ponha-se a jeito para umas festinhas no cabelo. Ou para lhe coçarem a moleirinha. Ao de leve. Feche os olhos. Deixe-se embalar. Não se importe de adormecer. O ritmo de Mia Couto dá mesmo para dormir antes que a história termine. Não lute contra o sono. O segredo é saborear as palavras que o outro vai interpretando. Uma a uma. Se não ouvir o final da história não se preocupe, é a desculpa perfeita para pedir para repetir! E quando a história terminar não abra os olhos. No fundo, a história não termina, vai terminando. Faça como as crianças, fique mais um pouco. E no final pergunte com um sorriso: e depois?)
- “Eu não sou um qualquer, tradicional. Mesmo já vou dormir em colchão”.
E explicou: ainda ele se esteirava na húmida humildade do chão. Mas era por um enquanto. Pois o seu colchão estava no caminho de vir, quase chegando.
- “Contra factos só há argumentos”.
E, de facto. Aconteceu nessa semana quando o comboio transfumou-se na estação, despulmonado. Saíram os magaíças, saiu a mercadoria. E entre as descarregações desceu o mencionado colchão. O povo estava ali para testemunhar. Xavier, inchado, dava ordens de cuidados. Que atentassem também no armário.
- “Me tratem bem esse arrumário”.
Ele não punha mão no carrego. Suores manuais não eram da sua estatura. Acontece que entre a multidão figurava Maria Amendoinha que logo, em imediato coração, desembarcou nos olhos do Xavier. A moça escutava, embevencida, o ex-mineiro a papagaiar pela estação dos caminhos-de-ferro. Que eu e eu, que isto multiplicado por aquilo, noves fora eu.
A mercadoria subiu num tchova e o povo seguiu o carrego em procissão. Maria Amendoinha seguia na cauda, absorta, coração em pensamento. O cortejo chegou a casa de Zandamela, a carga foi nivelada no rés-da-terra e transpostada para os interiores. Do lado de lá, os curiosos se fatigaram e dispersaram. Ficou apenas a jovem, sonhatriz, em suspiros mais leves que osso de morcego.
Nem ela notou a chegada da noite. Xavier saía e entrava a sacudir o cachimbo no pátio. Numa dessas saídas deu pela presença dela. Primeiro não decifrou sombras, desfolhou cautelas. Depois, ele aproximou intimidade, abelhoso. Duas cadeiras se arrastaram para assentar o tempo. O mineiro alargou as falas, endomingando conversa.
- “Você nem sabe imaginar as terras onde trabalhei! Lá não há pobre diabo. Sim, lá até o diabo é rico!”
Conversa puxa silêncio e a menina se fantasiava, natalícia. Nunca ninguém lhe lustrara tantos tentos e atentos. Amendoinha, despossuída, parecia a Eva sem maçã.
Xavier adiantou convicto convite: ela que entrasse a experimentar o colchão. Passos ébrios, ela foi entrando. E sucedeu-se: o colchão cumpriu seu destino. Estreou-se o objecto e a menina. Ficou um sanguezinho, vermelho minúsculo a manchar a esponja do colchão.
No dia seguinte, começou vozearia na aldeia: a nuvem é maior que o sol? A Xavier Zandamela lhe pesava o céu de tanto ser mencionado. Eram as falas:
- “O sapo incha por não dividir. Agora ele quer dormir sozinho em tanto colchão?
- “Esse é que o calcanhar: o gajo não deitou sozinho!
- “Acolchoou-se com alguém?”
Era urgente fechar o pio, para abrir o corrupio: Xavier tratou-se de casar com Amendoinha. E os dois conjugaram-se, em dia-a-noite. Porém, aquela felicidade se contou pelos dias. O mineiro revelou seus fundos violentos. Volta e volta ele batia na recente esposa. Xavier quis lavar a boca e sujou o sabão. Porque aconteceu então o imediato seguinte: altas horas a mulher acordava, escutando barulhos vivos dentro do colchão. Depois já não eram apenas sons, mas coisa apalpável. Amendoinha começou a colocar hipótese de maldição.
- “Marido: há bicho andante aqui dentro!
- “Isso nem se menciona”, advertia Xavier. “Somos alguns irracionáveis, igual a essa povaria do subúrbio?”
Amendoinha não se resignava. Se não era igual ao povo seria idêntica a quem? O marido aumentava-se, mas aquilo era corpo de imbondeiro. Ela já vira o engano: molhado, o leopardo não é mais que um gato-bravo. Bem diz o provérbio: a lua morre e é grande enquanto as estrelas, ainda que pequenitas, ficam a brilhar.
- “Pois, a partir de agora, você troca colchão por esteira.
- “Mas esses barulhos, Xavier...
- “Mas quais barulhos, santo e deus! Se eu não escuto nada?
- “Se não vêm do colchão é porque, pior, estão a vir da minha cabeça”.
Isso, sim. Xavier admitia, rindo. Mas aquelas gargalhadas eram alegria sem carne: se via através delas o nervo do medo. Os barulhos prosseguiam, quotinocturnos. Mesmo deitada na esteira, Amendoinha passava noites em claridade.
Ao longo de tanta insónia, ficou zonza-sonsa, coxeando da razão. E já não prestava respeitos ao seu legítimo. Xavier, despeitado, lhe incrementou nos arraiais. Batia com mais e mais violência. “Nem é por maldade: arreio-lhe para ela ficar cansadinha e dormir melhor”, dizia o mineiro. Fechava o punho e, enquanto amassava o corpo da mulher, comentava:
- “Amendoinha, é você; eu sou o pilão”.
A família de Maria Amendoinha veio-lhe buscar-lhe ela já não acertava o pé no passo. O pai de Amendoinha passou o olhar fatalício pelo quarto dos separados de fresco, ditando:
- “Aqui cheira a coisa parindo”.
E tinha razão. Pois, no ventre do colchão, daquela manchazita de sangue, estava nascendo aparente criatura, o desabrochar de maldição.
Xavier Zandamela quando se deita, sozinho e triste como gato que perdeu a rua, nem nota o adventício ser. Apenas sente que as formas do colchão se lhe amoldam: há duas concavidades, uma ao lado da outra. Seria que o colchão sentiria saudade da ausente esposa?
Até que uma noite, sonhava ele através de amores muito sexuais, quando na carícia do lençol reconhece o volume de seios, polpudas proeminências debaixo do seu corpo. Quem estava ali, afinal? Nem ousou acender as luzes, fosse a aparecência se extinguir. Aceitava aquela conversão de bom agrado.
A partir de então, o colchão se convertia em mulher, na mulher em que sonhava. Cada noite Xavier procedia a mais avanços, com tacto e beijo. A mulher - será que lhe poderia chamar assim? - , a mulher vinha da sobrenatureza e lhe dava um pedacito mais de acesso. Mas sem chegar a vias do facto. Ao despertar, Xavier se satisfazia. E sorriam recíprocos, ele e a manhã. Afinal, por que real motivo se necessita mulher no lado de cá da verdade?
Até que uma noite ele se preparou, perfumes e pijama lavado. Aquela noite, sim. Aquela noite, ele visitaria o íntimo daquela promessa. E assim aconteceu. Beijo e escuro, suspiro e silêncio. No êxtase, Xavier se viu dizendo inesperadas palavras:
- “Amendoinha!”
De repente, o colchão se revolteou, envolvendo o mineiro. Carnes e esponjas, braços e panos se entrerodilharam. O corpo do homem foi perdendo formato, em dissolvição. Quando dele não restavam senão avulsos botões de pijama se escutaram passos entrando pelo quarto. E Xavier Zandamela ainda sentiu apressadas mãos enrolando o colchão e o carregando pela noite afora.
Mia Couto in Contos do Nascer da Terra
Não se esqueça da colcheia!
ResponderEliminarLindo! Não quer escrever um conto sobre um colchão e uma colcheia? Vá lá (olhinhos de coelhinha mal morta)...
ResponderEliminar(um) beijo de mulata