Há tempos, uma amiga minha estava no Serviço de Urgência, quando chega uma adolescente cigana de seus 15 anos, pequenita, enfezadita, a arder em febre mas com um ar de esperteza vivaça, acompanhada por sua mãe, uma matriarca obesa vestida de preto, com a cabeça coberta por um lenço e com um ar que anunciava "Eu tive dez filhos e só por milagre é que sobreviveram todos..." E a adolescente, de seu nome Sueli (mais um dos tais nomes que não auguram nada de bom), pequenita, enfezadita, quase não conseguia engolir a própria saliva tal era o calibre da amigdalite, que literalmente lhe transbordava até às orelhas...
Mal a menina abriu a boca, o diagnóstico ficou feito e a minha colega começou a tentar convencer a matriarca de que uma injecção de penicilina é que era o melhor tratamento. E que os sintomas passariam mais rápido e que a menina não estava em condições de conseguir tomar comprimidos e que depois os pais iam para venda e a menina ficava em casa e não-ia-tomar-a-medicação-que-a-gente-sabe-muito-bem-como-é que-são-as-coisas-já-tivemos-a-idade-dela-não-é... E que depois ela tinha de tomar conta dos irmãos e não podia. (Sim, que não vale a pena tentar fingir que não sabemos que a menina não anda na escola desde os 10 anos e que vai ficar aferrolhada em casa a tomar conta dos irmãos até se casar). E que rebeubeubéu-pardais-ao-ninho...
A menina é que não estava pelos ajustes. Que não queria injecção nenhuma, que não queria, não queria, não queria... e rapidamente entrámos na fase da baba e do ranho e do lamento cigano
que bem conhecemos, meio carpido, meio gemido, meio cantado (e não me venham dizer outra vez que bem feitas as contas isso dá lamento e meio, que eu para contar tenho jeito para histórias e mesmo assim só às vezes...). A mãe, já por seu lado, por um lado estava de acordo com a injecção, por outro lado não tinha mão na filha. E, como também não tinha poder de persuasão, chegou-se a um impasse.
- Bem - disse a minha colega, tentando manter a calma - talvez seja melhor então chamar o pai para decidir... ele está lá fora?
- Sim, sim,
Sotôra. É melhor chamá-lo.
- Como é que ele se chama?
- É Nando.
- Fernando quê?
-
Nã é Fernando, é Armando.
- Armando quê? [Continuando a tentar manter a calma.]
- Armando Silva.
Dez segundos depois entra o Sr. Armando Silva com um ar de poucos amigos:
-
Entã o que é que se passa?
- Olhe, a sua filha está com uma infecção na garganta e precisa de tomar uma injecção de penicilina para isto passar mais rápido e de vez.
[O lamento da menina continuava em ruído de fundo.]
- Está bem. E depois?
- Mas ela está muito receosa da injecção e não quer tomar. Se calhar é melhor irem lá fora conversar um pouco com ela e tentar mentalizá-la de que tem mesmo de tomar a injecção para a doença passar mais rápido.
[O ruído de fundo cada vez mais alto.]
- Está bem,
Sotôra.
- Sim, então vão lá [suspirando de alívio e preparando-se para chamar o próximo doente] e depois voltem aqui.
Saem os três da sala de consulta para o corredor e ouve-se uma voz masculina num grande chorrilho de palavrões, acompanhado de um "Ai Nando,
nã batas na tua filha!".
Nem tempo tinha tido de chamar o doente seguinte, quando entram novamente na sala, com a adolescente com as faces muito coradas e caladinha que nem um rato num autoclismo.
- Pronto,
Sotôra, já está mentalizada! Vamos lá rápido que temos de voltar para a venda!