sábado, 31 de agosto de 2013

[welcome to mozambique] inseticida...

A pedido de ainda mais famílias, aqui fica mais um pequeno excerto do meu livro:

Deixo-me ficar na cama ainda mais uns minutos depois do alarme do telemóvel tocar. Recordo-me desta noite... Ainda nem acredito que recebi um recém-nascido em Moçambique, à luz das velas, como nas mais antigas histórias que ouvia contar! (…)
Cumprimento a Amélia, a minha discreta companheira de quarto, uma osga simpática e madrugadora, que a esta hora já se encontra colada aos vidros da janela ao sol (desconfio que terá passado ali a noite...), com as patinhas esticadas numa enorme preguiça, à espera do pequeno-almoço esvoaçante (este sim, literalmente um “mata-bicho”). Instalou-se no meu quarto há três dias, trazida pelo cozinheiro ante o meu olhar de ponto de interrogação. Eu tinha-lhe pedido inseticida pois não tinha rede mosquiteira no quarto, ao que ele respondera:

– Não sei o que é set'cida, doutora...
– Remédio para os mosquitos – reformulei.

– Ah, não tem problema!
E horas depois regressou com a Amélia... A verdade é que esta minha inquilina é uma exímia caçadora de mosquitas, mosquitos e moscas e ainda não precisei de usar inseticida.

in A Missão - Diário de uma Médica em Moçambique

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

[vozes brancas] el hospital del pajarito


 
Delicioso! Absolutamente delicioso e encantador! Fez-me lembrar o deslumbramento dos primeiros meninos que me trouxeram os seus bonecos para eu os tratar, a cara de espanto quando o Rx revelava um diagnóstico certeiro e o divertimento deles a ajudar-me a pôr um penso ou uma ligadura no Hospital da Bonecada. Mas isto, senhores, isto é em bom!

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

[veja como fala!] parole sono importanti!


 
Magnífica cena do filme Palombella Rossa de Nanni Moretti.
 
Não chegaria ao ponto de Nanni Moretti, de agredir alguém por usar uma palavra fora de contexto, mas sempre fui muito sensível às palavras. Quando o tema é delicado, encontrar palavras que não magoem é difícil, e pode ser um desafio quando estamos perante pessoas hipersensíveis ou, de alguma forma fragilizadas. Aprendi cedo que não se deve usar palavras conotadas negativamente, mesmo que sejam "termos técnicos". É certo que se pode dizer parir quando falamos de maternidade, por exemplo, mas para quê se existem alternativas mais positivas, mais gentis, mais delicadas para falarmos com uma jovem mãe na sala de partos?
 
Mas este ano fui apanhada de surpresa por um Pedopsiquiatra que prezo e admiro imenso. Eu pedia-lhe ajuda para esclarecer o comportamento de uma criança que, por uma série de razões, me parecia autista. Ele perguntou-me então que mais lhe poderia eu dizer sobre a criança, ao que eu respondi que era uma criança meiga, sossegada, que gostava de brincar sozinha, com uma relação privilegiada com a irmã mais velha, que tinha uma atitude maravilhosamente protetora e maternal para com ele. Foi então que este meu colega me surpreendeu com a pergunta: "Acha que esses comportamentos chegam para o descrever?" Acho que nem percebi onde ele queria chegar. Respondi que não, que certamente que não, longe disso, que também era muito importante dizer que o menino tinha muitos aspetos a seu favor, que haveriam de jogar como fatores de bom prognóstico e de resiliência, que o tinha achado encantador e a mãe muito atenta e adequada aos seus problemas e dificuldades, e que ambos formavam uma díada fortíssima. "Então porque foi que disse que ele era autista?", foi a resposta. 
 
Senti-me a jornalista desta cena da piscina no Palombella Rossa! Nesse momento senti vergonha. "Logo eu, que lutei tanto contra o estigma da lepra e do VIH em Moçambique, que nunca deixei que ninguém chamasse leprosos aos meus doentes com lepra!", pensava enquanto ele continuava: "Nós aqui não gostamos de dizer que uma criança é autista, mas que tem um autismo. Parece a mesma coisa mas o impacto é completamente diferente. É como se estivéssemos a dizer que o autismo não é tudo o que a criança é, que não a define como pessoa, que essa criança é muito mais para além do autismo e do seu comportamento." Claro. Claro que sim! Fazia todo o sentido. Acatei este conselho e fi-lo meu.
 
É verdade que as palavras não descrevem apenas factos, elas evocam sentimentos e emoções, têm cargas positivas ou negativas. Ou neutras. Podemos fazer a diferença quando falamos de forma positiva ou neutra, porque assim aligeiramos a carga emocional e podemos desfazer alguns mitos. Têm de concordar comigo que ao dizer que uma criança "é doente" nos estamos a resignar a um facto consumado, enquanto que se dissermos que o menino "tem uma doença", inevitavelmente alguém se chegará à frente a perguntar: "Então e agora, como é o tratamento?" É uma linguagem que permite avançar!

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

[improbabilidades] nomes que dizem tudo

 
Mais um impagável táxi/ chapa em Maputo!
Foto da querida Daniela. Obrigada!

[outras palavras] acentuação

é tão difícil dizer amo-te
murmurava ontem um amigo
a propósito de coisa nenhuma e
muito menos de amor

estávamos entre papéis e tintas
com a casa onde nasceu Pessoa mesmo em frente e
talvez por isso
a questão das palavras o
atormentasse daquela maneira

passou os dedos pelos desenhos de um livro e
ficou a olhar para o largo que
se avistava da janela
quem sabe se
procurando os desajeitados beijos de ofélia
nas lajes ressequidas pelo verão

é tão difícil dizer amo-te
repetiu e ficou outra vez em silêncio
atordoado de sol e de heterónimos

então eu disse que isso era apenas
pelo simples facto de a palavra ser
acentuada na primeira sílaba o que
não dava jeito nenhum a pronunciar

ele riu e ficámos então a discutir se
a palavra seria grave ou esdrúxula até que
fechado o livro e arrumados os papéis
ele declarou
adoro-te é bem melhor

e saímos para a rua felizes
por termos encontrado
tão facilmente a
solução do problema
Alice Vieira (lido no seu mural do facebook)

Nota-se muito que estou apaixonada?

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

[lixo no carro] devemos contrariar o cliché?


 
Ontem a Rádio Comercial recordou este episódio da Mixórdia de Temáticas. Perante a última parte (04:50) e, o ponto de vista de Pipoco de que vos falei há dias, ocorreu-me então o seguinte dilema: será que devo continuar a contrariar o cliché e manter o meu automóvel impecavelmente limpo e arrumado, com a ajuda do saco de lixo da minha amiga Mimi e, tornar-me, portanto, mais atraente como mulher? Ou recusar-me a ser submissa, recusar-me a fazer algo só para me tornar mais desejável, negando assim toda a minha feminilidade e toda a minha essência (isto é, negando a tendência inata que tenho de desarrumar o carro)? Será que os homens que se sentem atraídos por mulheres que têm o carro limpo não estarão a sentir-se atraídos pelo seu lado masculino? Será esse o tipo de homem que as mulheres querem? Que me dizem?

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

[música para bebés] aprender desde o berço!


 
É consensual entre a comunidade pediátrica, que as crianças que aprendem música são mais concentradas, têm melhor memória e, atrevo-me a dizê-lo, são mais felizes. Em parte porque têm um modo extremamente eficaz, socialmente aceitável e belo de canalizar energias.
 
O que não é tão evidente para nós, mas ainda assim claro para investigadores e professores é que, tal como a linguagem, se as bases da música forem aprendidas desde os primeiros meses (antes dos 2 anos), a aprendizagem é muito mais sólida e perfeita. Por isso, pais e mães, cantem! Digam lengalengas, rimem, batam em tambores, agitem maracas, dancem com o corpo todo! A música é importante! Desde o berço.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

[welcome to mozambique] o milagre da harmonia

Um exemplo do que vos disse ontem para que vejam como é verdade, verdadinha tudo o que vos contei (vêm muitas pessoas a este mato que não me deixam mentir, mas nem toda a gente sabe disso):

Uma madrugada eu, a minha amiga R. e as meninas que viviam  connosco e com as irmãs fomos com um enorme grupo da comunidade a uma caminhada até ao cimo do monte Gilé. Esta atividade em grupo, intensa e animada, terminou numa missa campal em que as senhoras cantaram uma música que não conhecíamos.

Semanas depois, as meninas cantaram esta mesma música na missa. Precisamente no mesmo tom (haverá certamente algumas com ouvido absoluto, ou com uma capacidade de gravação notável, embora não o saibam). Com uma harmonia e segundas vozes irrepreensíveis! Nessa noite, quando as aplaudi e elogiei, olharam para mim, incrédulas do meu entusiasmo. Primeiro até pensaram que estava a brincar. Depois fizeram aquele olhar de adolescente: "Duh! Está aí alguém?" E eu continuei embasbacada e embevecida...


 
P. S. - Claro que o baby-de-mulata sabe esta música. Continuamos no nosso trabalho de inculturação e exercícios africanos. Há tempos hesitei em cantar-lhe uma música em inglês porque se calhar "ainda era muito cedo". Depois lembrei-me que ele já canta em Macua...

terça-feira, 20 de agosto de 2013

[welcome to mozambique] a música é a alma de um povo!



Já vos falei disto dezenas de vezes. Assistir a uma cerimónia ou uma celebração em Moçambique é coisa para nos deixar sem ar de tal forma os nossos sentidos são intensamente invadidos. Pelas cores vivas das capulanas das mulheres e das flores que dão vida ao espaço (onde nunca faltam os ubíquos beijos-de-mulata, que, como sabemos, nascem em qualquer degredo e se criam em qualquer chão!) e que parecem flutuar, suspensos nos fios que cruzam o espaço bem acima das nossas cabeças. Somos quase impercetivelmente inebriados pelo suave perfume das flores do frangipani que nos evoca o cheiro exótico da noite africana e pelo cheiro da terra, da erva, dos rios que correm próximo e das flores silvestres, a que se mistura o odor a corpos, que longe de ser desagradável, subitamente faz sentido naquela mescla de sensações que nos prende com toda a força à realidade!

E a música é arrebatadora! O ritmo quente dos batuques e a harmonia espontânea das várias vozes preenche-nos a mente e instiga-nos a dançar, nem que seja em fantasias, numa energia que nos sacode a alma. Tudo parece um milagre, de tão fácil e intuitivo que aparenta. Quase diríamos que não era possível haver quem cantasse ou tocasse assim sem nunca ter tido aulas de música. Mas várias vezes assisti ao prodígio de ensinar uma música às meninas que viviam com as irmãs e, à quarta ou quinta vez que a cantavam, já havia duas ou três que entoavam uma segunda voz, criada no momento, acrescentando à melodia cores e profundidades anteriormente insuspeitadas. São dons de quem, "desde a capulana de sua mãe"*, foi ensinado a que saber cantar e dançar é tão importante como saber falar ou ter boas maneiras em sociedade.

* Expressão equivalente a "desde o berço".

sábado, 17 de agosto de 2013

[nomes que dizem tudo] toponímica improvável

 
Deliciosa Rua de Santiago de Compostela. Parece que também há - embora seja um facto ainda não fotograficamente comprovado - uma Rua da Algalia de Arriba, o que, convenhamos, é um procedimento médico tecnicamente muito mais fácil.
 
(Foto roubada indecentemente à São João, senhora de uma rinite alérgica sazonal de ler e espirrar por mais!)

[nomes que afinal não dizem tudo] welcome to mozambique

 
Mamã com crianças...
(Iapala, Nampula)

A pedido de várias famílias, aqui fica um pequeno excerto do meu livro. É sobre um episódio no dia da chegada à missão de Iapala...
"Antes do jantar, recebemos a visita de uma jovem com um bebé de poucos meses adormecido às costas. O menino vinha no seu traje de gala, com um conjunto de gorro e meias de lã, amarelo com uma risquinha verde, amorosamente tricotado à mão por uma das irmãs.  
– A touquinha e as peuguinhas de lã são o melhor presente que se pode dar a uma mamã – explicou-me depois a irmã Lurdes.  
– Com este calor?
– Não me perguntes porquê, mas todas as mamãs adoram. 
Realmente, como diria Mark Twain, os costumes mais absurdos são sempre os que permanecem mais enraizados... A "touquinha", como a irmã lhe chamava, era um gorro de inverno, de aspeto bastante quente, com direito a pompom e tudo! A jovem era mulher de um dos empregados da missão. Sabia que a irmã Conceição tinha chegado e vinha dar notícias da sua ida a Nampula para registar o menino.
– Não me deixaram pôr o nome que a irmã disse – lamuriou-se.
– Porquê? – Espantou-se a irmã Conceição.
– Disseram que não era nome normal. 
 Mas que estranho...
A jovem mamã tinha ido, dias antes, ter com as irmãs a Nampula porque estava com dificuldades na escolha do nome do bebé. Era o primeiro filho, o que tornava o processo muito mais complexo, com uma grande responsabilidade. Queria dar-lhe o nome de um padre, porque os missionários eram as pessoas mais importantes da região, mas não sabia que nome escolher. A irmã lembrara-se então que o pai do menino, em tempos, trabalhara para um padre em Nampula e tinham ficado particularmente amigos.

– Porque não lhe põe o nome dele?
A sugestão tinha sido bem aceite...
– Mas, afinal, qual era o nome que lhe queria dar? – Perguntei, curiosa.
– Padre Arlindo...  
A jovem estava desolada, mas eu tive de deixar cair um brinco no chão para poder esconder a cara, porque só me apetecia sorrir às gargalhadas com aquela cena digna de uma comédia dos anos ’30. Depois de uma longa explicação das irmãs, a jovem saiu um pouco mais conformada.
– Acho que não vai muito convencida... Só Arlindo parece que não diz tudo – notei.
– Também me parece... Mas ainda bem que o funcionário do Registo Civil foi sensato, senão o menino tinha ficado com um Arlindo nome! E se fôssemos jantar?"

in A Missão - Diário de uma Médica em Moçambique

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

[vozes brancas*] e raciocínios irrepreensíveis

Esta tarde, depois de almoço comigo e com os avós, o baby-de-mulata (agora já com dois anos e pouco), perguntava se podia cheirar o meu café (pequeno ritual de iniciação aos prazeres deste vício tão saudável e delicioso). Depois, como sempre, perguntou se podia provar. Respondi-lhe que não, que só quando fosse crescido, como a mãe e como os avós.

- O baby não, só a mamã e os avós - repetia, como um menino bonito que estuda a lição, sabendo de antemão que isso é coisa que me derrete.
- Pois, muito bem, querido!
- A mãe bebe?
- Sim, meu amor!
- A vovó também bebe?
- Sim, a vovó também bebe.
- O avô bebe?
- Não, meu amor, o avô não gosta.

O baby sorriu, absolutamente deliciado com a resposta. Finalmente um aliado de peso!
- O avô também é pequenino?

(Estou tão orgulhosa deste primeiro "vozes brancas*" da autoria do meu baby!)

* Timbre da voz das crianças antes da puberdade.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

[ser criança em moçambique] brincando ao faz de conta...


 
Na escolinha das Irmãs de São João Batista, em Nampula, onde estão os meus "afilhados à distância", que só conheço por fotografia... As Irmãs lutam todo o ano para lhes dar roupa, bibes, comida, assistência médica e educação. Para que a vida destas crianças seja simples e o desenvolvimento se faça dentro da família, mas longe do trabalho, da exploração e dos maus tratos, num ambiente acolhedor e intelectualmente estimulante! Tudo a que todas as crianças deveriam ter direito!
(Bairro de Muahivire, Nampula)

terça-feira, 13 de agosto de 2013

[a força que um sorriso pode ter!] nariz vermelho



 
Os doutores-palhaços da Operação Nariz Vermelho
 

Não sei se já vos falei deles. Andam pelos hospitais pediátricos portugueses, metem-se com os meninos, arrancam sorrisos mesmo a quem embirra com eles. Sobretudo a esses, aliás. Eu, confesso, não lhes ligava muito quando comecei as minhas andanças na pediatria. Não esperava que me ligassem de todo. Não me via como um alvo a ser atingido por eles. Achava a iniciativa genial, mas era para os meninos, eu tinha outro papel, não padecia de nenhum mal tratável por eles...

Talvez por isso, começaram a perseguir-me. Entravam no serviço, olhavam para mim e eu dizia, muito profissional: "Hoje no quarto 1 temos a Luísa, que está em jejum para ir ao bloco operatório, deve agradecer muito a vossa ajuda para se distrair e o João do quarto 3 passou a noite sem a mãe, está um pouco triste... Todos os outros vocês já conhecem. A Teresinha é que continua em isolamento." Mas eles depois nunca me deixavam sair da sala. Atravancavam-me a saída, caiam para cima uns dos outros, fugiam da minha caneta teimando que era uma pena de pavão, tentavam que o meu estetoscópio produzisse um esguicho de água (de vez em quando conseguiam!), isto até me arrancarem uma gargalhada que se ouvisse no corredor. Eu achava um desperdício perderem tempo comigo. Mas nos dias em que o circo subia à enfermaria, eu ia sempre com um sorriso diferente ver os meninos... Agora já não trabalho no internamento. A última vez que os vi, foi na secretaria da direção, estava eu a tratar da declaração de IRS e eles começaram a cantar-me: "Faça da sua declaração de IRS/ uma declaração de amooooor!!!" E eu dei a melhor gargalhada do dia! Hoje li uma história que só podia ser deles:
"O Francisco, um menino de cinco anos que esteve internado no Instituto Português de Oncologia. Quando o pai do Francisco soube que os doutores-palhaços vinham todas as terças-feiras ao hospital, ficou em pânico, porque o filho tinha muito medo de palhaços. 
Quando chegámos à porta do quarto do Francisco, o pai estava no corredor com a porta do quarto fechada para avisar que o seu filho tinha medo de palhaços. Ou seja: não havia hipóteses nenhumas de comunicarmos com o Francisco. Procurámos falar com o pai para nos deixar tentar uma aproximação ao Francisco mas ele olhou-nos determinado: “Não, não, não, por favor não entrem, ele não quer ver palhaços nem de longe.” 
Passaram umas duas semanas sem que o pai do Francisco nos desse uma oportunidade. Um dia eu voltei a tentar. Sugeri que ele pegasse num chinelo e dissesse ao filho: “olha, estão ali os chatos dos palhaços outra vez e eu vou dar-lhes com o chinelo no rabo”. O pai concordou e encenamos o combinado. Vimos abrir a porta e, pela primeira vez, conseguimos avistar o Francisco de longe. O pai pegou no chinelo e veio atrás de nós enquanto gritávamos no corredor: “está bem, não vamos ver o Francisco, vamos embora”. A nossa rotina no quarto do Francisco passou a ser esta. Todas as semanas o Francisco divertia-se a ver o pai expulsar-nos à chinelada. 
Fomo-nos aproximando cada vez mais da porta e passamos a abrir a porta para dizer: “só viemos buscar o nosso pontapé!” Levávamos o pontapé e seguíamos viagem.
O Francisco deixou o internamento e passou a frequentar o hospital de dia, local que também visitamos. A primeira vez que nos encontrámos com o Francisco na sala de espera, o pai implorou que não entrássemos, alegando que nem estavam muitas crianças no serviço. A aflição dele era tanta que lhe fizemos a vontade naquele dia. Obviamente não podíamos deixar de visitar as outras crianças só porque o Francisco estava presente.
Na semana seguinte, assim que o pai viu que tínhamos chegado à sala de espera, pegou no filho e escondeu-o atrás de um armário!!! Eu aproximei-me lentamente e comecei a dizer: “Eu quero um pontapé do Francisco!... Só saio daqui com um pontapé do Francisco!” O Francisco saiu cauteloso de trás do armário e, sorrindo, deu-me um pontapé. Depois deu outro, e mais outro, entrando no jogo e rindo. Nesse dia, perdeu o medo dos Palhaços.
Semanas mais tarde, o pai do Francisco veio receber-nos à porta do serviço com um sorriso de ansiedade no rosto. Expectante dirigiu-se a nós: “Vocês hoje vão visitar os quartos?”. Dissemos que sim. O pai fez-nos prometer que visitaríamos o Francisco.
Quando chegámos ao quarto, batemos com delicadeza. A porta abriu-se e vimos o Francisco, sentado na cama a olhar para nós, com um nariz de palhaço!"

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

[refrões de uma vida] a força que um sorriso pode ter!

 
A irmãzinha bebé de um dos meus afilhados de Nampula foi fazer a sua primeira visita à escolinha ao fim da tarde, para ir buscar o irmão.
(Escolinha da Santa Cruz, Nampula)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

[coisas que me confortam] como mulher, como mãe e como loira a toda a prova!

Há tempos, embora eu não fosse de todo fiel seguidora da mítica palavra de Pipoco, cumpriu-se a profecia bíblica que asseverava que se a mulata não fosse ao encontro do Pipoco mais salgado da blogosfera, seria o próprio Pipoco que haveria de ir acrescentar algum sal ao mato. E vai daí, o tio Pipoco linkou o beijo-de-mulata. E eu, que nunca tinha ido visitar o salgado Pipoco, mais o seu alter ego, Ruben Patrick, fui olhá-lo (com algum voyeurism), pela sua janela.

Foi nessa altura, mais ou menos, que o ilustre Pipoco escreveu qualquer coisa como (cito de memória, que não consigo encontrar o post exato): "Tendo a não me sentir atraído por mulheres que ostentem o interior do carro desarrumado ou com lixo." E a verdade é que a loira que há em mim ficou aterrada! Literalmente sem ar. A mulata que me habita, por seu lado, sentiu um desconforto inenarrável, como se tivesse sido avistada em público com uma capulana do avesso. Não conseguia conceber tamanha injustiça e falta de compreensão para com quem tem de viver diariamente com dois cromossomas X* e ainda assim faz um esforço hercúleo para funcionar como se nada fosse. Desde quando é que a feminilidade de uma mulher se mede por esses cânones? Já a mãe que estava a nascer dentro de mim acatou o recado como se de uma ordem se tratasse, e começou a dar a atenção devida ao assunto, que há que dar o exemplo desde sempre!

E foi por este desconforto, admito, que nunca mais segui a palavra de Pipoco. E também foi por isto que passei a arrumar o carro como se fosse o meu escritório.

Até ao dia em que a minha querida Mimi Burnay me fez um genial saco para o carro! Lindo, com um estampado floral exterior e plastificado por dentro, à prova de todo o tipo de lixo. Eu ganhei uma alma automobilística nova, uma confiança e autoestima que nem 50 horas de ginásio e esteticista conseguem conferir. E o meu carro ganhou um acessório novo. E lindo. À prova de Pipoco!

(É tudo por hoje, a silly season continua dentro de momentos...)


 
O épico saco de lixo para o carro, por Mimi Burnay!


* Isto não é uma aneuploidia?!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

[baby-de-mulata] ainda não foi desta...



Pois é, meus amigos, ainda não foi desta... (Erguer de olhos para o céu, um suspiro.) Hoje levantei-me decidida! Haveria de ser desta, caramba, que um dia tem de chegar a minha vez, valha-me Deus e São Jerónimo, padroeiro das escriturárias (ou apenas das sagradas escrituras, mas os santos também podem ser padroeiros de outros departamentos que se prestem a confusão fonética, ou não? Pois... se calhar não, mas enfim, eu tinha fé!). E a minha vez haveria de ser hoje, eu sabia, sentia-o nos meus ossos (fica melhor em inglês, mas nós aqui no mato não falamos estrangeiro, que não nos fazemos de importantes). Macacos me mordessem se não seria a minha hora de interpretar o papel vencedor contra a burocracia dos papéis! Já vos falei da minha saga. Queremos ir viajar mas não podemos porque ainda nos falta o cartão de cidadão. Já está quase, eu sei. Já faltou muito, mas muito mais. Mas ainda não está, canário!

Então hoje lá fui novamente ao Instituto dos Registos e Notariado. Certidão de curadoria do baby: check! Assento de nascimento: check! Sentença de adoção plena e respetiva referência do processo do Tribunal de Família e Menores: check! Tempo suficiente decorrido após a sentença de adoção para o trânsito em julgado*: check! A minha identificação pessoal: check! Dinheiro trocado para o parquímetro: check! Livro para estudar na sala de espera: check!

E lá fui. "Olhe, se faz favor, passa-se isto assim e assim, a modos que eu venho aqui solicitar a emissão de um novo assento de nacimento para o baby-de-mulata". Após o que a senhora consultou uns documentos e me respondeu que isso era totalmente impossível. Ainda faltava o averbamento e sem isso nada feito. "Mas qual averbamento, minha senhora?" "O averbamento da sentença de adoção." "Mas disseram-me que o processo já transitou em julgado." "Sim, mas falta o averbamento, sem isso nada feito." "Então o que é que eu posso fazer?" "Bem, sem quiser mesmo saber o que se passa pode ir ali ao terceiro andar falar com a minha colega dos averbamentos." "Está bem!"

Fui ao terceiro andar. Entrei numa porta onde não dizia "Averbamentos", mas dizia "Entrada exclusiva para funcionários." e pensei: "Bem, deve ser aqui..."

E então a tal colega que sabia de averbamentos comunicou-me que nada tinha para averbar naquele momento e que, portanto, se a sentença ainda não estava averbada é porque ou o processo ainda não tinha transitado ou então o averbamento ainda não tinha chegado. Nada a fazer! "Então?", perguntei já conformada, "O que posso eu fazer?" "Nada, dê-lhe mais um mês, que o averbamento já deve estar pronto nessa altura!"

E pronto, nada a fazer! Sem averbamento não há documento. Ainda não foi desta! Mas para o mês que vem é que é, garanto-vos! Vou dar-lhe mais um mês, como a senhora dos averbamentos me prescreveu. Para que se ainda houver alguma coisa para transitar, que transite definitivamente e para que tudo o que houver para averbar, se averbe de uma vez por todas, que a verve já me falha e o sangue me ferve e, a bem dizer, eu não queria nada estar aqui a escrever isto, nem a fazer trocadilhos, queria estar aqui vitoriosa... Mas a nossa hora há de chegar. Ou eu não me chame beijo-de-mulata!

* Neste mato empregamos termos jurídicos para mostrarmos como somos cidadãos informados e assim passarmos a completa noção de que se os documentos ainda não foram emitidos, isso é da exclusiva responsabilidade da burocracia do sistema.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

[mães de grande rodagem] that awkward moment...

Na consulta, uma mãe de cinco filhos, amorosa, dedicada, bem disposta e muito prática*, colocava-me uma questão sobre o seu filho mais novo de quase 2 anos.

- O Miguel há mais de dois meses que não me bebe o biberão do pequeno-almoço. Vejo-me obrigada a acabar por lhe fazer papa porque não o posso mandar para casa da avó sem comer nada.
- Mas bebe leite em qualquer outra altura do dia?
- Também não.
- E iogurtes?
- Sim, come dois ao lanche.
- Mas e se outra pessoa estiver a beber leite?
- Ah, se for eu a beber ele pede-me e até é capaz de o beber todo!
- Então deve ser do biberão. Já experimentou dar-lhe por copo? É que ele é o n.º 5, não deve gostar nada de ser "o bebé lá de casa".
- Ah, isso é verdade! Ele também detesta o babete e largou a chucha há pouco tempo... Mas não, nunca experimentei dar-lhe por copo. Já experimentei foi dar-lhe à colher, como eu dava ao João na mesma idade, mas também não aceitou muito bem, é preciso distraí-lo muito.
- À colher? Bem, gabo-lhe a paciência...
- Sim, o João durante imenso tempo bebeu o leite todo à colher, mas eu na altura só ainda tinha três, era tudo muito mais fácil...
(Glup**)
- Pois, mas talvez não haja necessidade. Experimente por copo. Se ele aceitar e não tiver depois problemas intestinais é porque não é nada de especial.


* Para mim, qualquer mãe de cinco filhos que leve os filhos às consultas de Pediatria mais ou menos na altura certa é uma super-mãe que merece toda a minha consideração, admiração e prioridade de atendimento. Caramba, eu não sei se me vou lembrar das vacinas do segundo... Exagero, vá, mas a sério que é de louvar!

** E foi esse o momento em que percebi que ainda tenho de fazer muita sopa até chegar aos calcanhares de muitas mães que andam por aí, tão frescas e bem-dispostas, e que tão cedo não me vou poder queixar do trabalho que o baby-de-mulata me dá (que, por acaso, benza-o Deus, não é nenhum!).

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

[moçambique no seu melhor] do rovuma ao maputo!

Para todos os que têm saudades do tempo em que este blogue era mato... para os que têm saudades da sombra dos cajueiros, para os que já fizeram o luto de um blogue que era quase exclusivamente monopolizado pela saudade de Moçambique que me assolava o coração de alto a baixo (embora com algumas incursões pelas improváveis histórias da Estefânia) e, sobretudo, para Mr. Umbhalane, o primeiríssimo comentador deste mato, que já se manifestou contra o facto se ter infamemente transformado num baby-blog (prometo que é temporário, Mr. 1B, as circunstâncias são incontornáveis!): dedico-vos este post do André, o genial autor do Tertúlia Africana, sobre uma experiência rodoviária Moçambique afora (ou Moçambique abaixo, se preferirem uma expressão mais indicativa dos pontos cardeais que estiveram envolvidos no trajeto)... Quase do Rovuma ao Maputo dentro de um machimbombo sobrelotado, conduzido por um motorista meio louco, meio ébrio de sono.
 
 
 
 
 
 
Imagens daqui.
"Talvez só agora tenha tido coragem de escrever esta história, ou talvez ela precisasse de amadurecer para ser contada. Era um objetivo meu: fazer Pemba – Maputo por estrada, de autocarro. Porque não? É preciso tempo, já sei, espírito de aventura, tudo, mas, como seria?

Na bilheteira, de notas meio dobradas, firmes na mão, parecendo coletores de dinheiro de apostas ilegais, respondem positivamente a todas as nossas questões de segurança. “Trocam de condutor?” – sim; “Dorme-se no caminho?” – sim; “Pára-se para comer?” – sim. Talvez devesse ter reformulado as perguntas para os fintar, mas se calhar fiz as perguntas da forma como queria ouvir as respostas...
O autocarro tem lugares sentados, para todos. Sim, porque coloquei a hipótese de fazer uma longa jornada de pé, ou sentado na coxia em cima de alguns sacos. Nada disso, bancos individuais e cinto de segurança. O espaço para as pernas não era muito, mas se vinha naquela viagem para me queixar do conforto tinha apanhado um avião!
Arrancam num grupo de 4 para fazer face às exigências natalícias e buzinam uns para os outros. Parece que vamos em caravana, mas na realidade é uma disputa entre motoristas que se vão ultrapassando pelo caminho. Em cada manobra o alcatrão fica ainda mais fino e apenas uma reduzida percentagem de passageiros fica entusiasmada com as manobras, gritando e batendo palmas. Os outros 80% ficam em silêncio, engolindo em seco.
Aquilo que por fora parece um robusto autocarro, por dentro parece uma minhoca, serpenteando as estradas e saltitando nos buracos. Como nos sentamos no piso de cima (o de baixo é para bagagens) dá a ideia que a cada curva vamos tombar. Talvez a fraca suspensão, talvez seja apenas psicológico...mas bolas, como assusta!
Assim que começámos a rolar a sério em plena estrada nacional, percebi que tinha escolhido um péssimo lugar: a coxia. Inevitavelmente ia com os olhos presos na estrada e assustado com a velocidade com que um monstro daqueles se fazia às curvas. Dava por mim a travar com o pé a bater no chão ou a tentar virar, agarrado às pontas dos meus calções. Tinha que me distrair, pois a viagem é longa, iria durar pelo menos 24 horas! A minha alternativa era olhar para o lado, para a Yumi [a noiva do André], que inexplicavelmente dormia...como se sobrevoássemos as nuvens, em vez de cavalgar buracos.

Pessoal com sérios lanches preparados. Frango, chamuças caseiras, cerveja. Nós levávamos bolachas que mal me passavam pela goela, tal era o nó que tinha. O tipo do meu lado era comerciante em Pemba. Ia visitar a família e voltava dentro de 4 dias. Na mesma estrada, com o mesmo autocarro. Gabo-lhe a coragem.
O autocarro vai à mesma velocidade, independentemente das condições do piso, de dia ou de noite. Quando chove a visibilidade reduz-se para níveis que não entendo. Suspeito que o motorista tem poderes adivinhatórios ou que já conhece tão bem a estrada que nem sempre precisa de olhar para ela. Não é que o limpa para brisas não funcione, ele simplesmente não existe, fazendo acumular uma camada de insetos mortos, que se transforma numa pasta opaca quando se lhe adiciona água!
Com o fim do dia começaram os planos de onde iríamos parar, pernoitar, pensei. A fazer cálculos às barreiras policiais, que proíbem a passagem de transportes públicos a partir de certa hora, a ideia era “pisar”...para conseguir passar mais cedo pelos “gajos” e conduzir mais umas horas. A sério? O condutor tinha os olhos vermelhos, bem cansados, mas era o primeiro a incentivar a estratégia de velocidade.
É bonito viajar por Moçambique relativamente devagar. Pelo menos por terra. À medida que descemos o desenvolvimento sobe. Palhotas tradicionais passam a casa sólidas, pontes precárias para robustas. A paisagem tem um pouco de tudo: os inselbergs em Nampula, coqueiros e arrozais na Zambézia, campos cultivados em Sofala, a imensidão de coqueiros em Inhambane, casas e agitação logo em Gaza.
Com o aproximar da meia-noite o autocarro abranda e estamos agora a entrar numa vila qualquer, com alguns candeeiros na rua. Inchope, o grande cruzamento das estradas em Moçambique. Quando nós saímos do autocarro já várias pessoas descansam os ossos numa vala, à beira da estrada. Sem perceber se é avaria ou paragem, o condutor diz: “saímos daqui a três horas”. Uau...avizinha-se uma noite de descanso...de 3 horas! Dá que pensar se queremos reentrar no autocarro ou não, mas não há muitas condições para pensar: a noite de sono é curta e o cansaço vence-nos facilmente.
A buzina do autocarro (inconfundível e difícil de esquecer) arranca-nos do sono e como múmias voltamos para dentro daquela máquina infernal, sem pensar, apenas com o destino na mente.
No segundo dia continua o mesmo motorista, que no dia anterior conduziu mais de 900 km. Obviamente que, com o sol rasante de frente e extensões das retas a aumentar, a sonolência aparece. Não há heróis. O motorista começa a coçar com maior frequência os olhos, a cabecear e sente-se que o volante dança mais do que devia para um troço que é sempre a direito! Alguns passageiros, a aperceberem-se disso, oferecem bebidas e conversa ao motorista, sentando-se ao seu lado e largando gargalhadas suficientes para entrar nos tímpanos e agitar o cérebro...
Quando saí do autocarro em Maxixe renasci. Não acredito em Deus, mas se acreditasse, neste caso diria que Ele estava a olhar por nós naquela viagem.
Era um objetivo e cumpri. Aventura feita, que escreverei no meu diário. A não repetir..."

André, bem-hajas por este pedaço de vida e de mundo!