Não fui eu que tirei as fotos do post abaixo. Fui à peregrinação, mas ainda não ia a meio do caminho quando me foram chamar para ir levar uma mamã com uma ruptura uterina ao Hospital de Mocuba, a cinco horas de distância. Eu e um dos padres transportámo-la na caixa aberta do jeep da Missão, deitada num colchão, com a cabeça amparada no colo da irmã e da mãe, e os balões de soro e sangue que a mantiveram viva no caminho pendurados por uma corda no tejadilho. Pois é, meus amigos... é nesses momentos que também ninguém se atreve a dizer que a vida é simples. Foi uma viagem atroz. Para todos, mas sobretudo para a jovem mamã, em trabalho de parto há vários dias, com dores inimagináveis, uma criança já morta no ventre e uma hemorragia interna que ameaçava levar-lhe a vida a qualquer momento.
Recusei-me a levá-la sem uma transfusão de sangue. Alegaram que não tinham sangue no Centro de Saúde de Mulevala, mas fui irredutível: "Esta mamã está em choque e eu não transporto cadáveres!"
O Padre Américo, pároco da Missão e dono do jeep olhava-me, incrédulo. Uma médica loira, que não conhecia de lado nenhum, que estava apenas de visita à sua missão ousava dar-lhe ordens? Não seria melhor partirmos quanto antes? Não! Assim como estava não ia aguentar uma viagem de cinco horas! Acreditou em mim. Bastou uma frase sua em Lomué de que só compreendi a palavra "sangue". Em cinco minutos apareceram vários dadores voluntários. Colhemos sangue compatível e seguimos. Tivemos de parar várias vezes no meio do mato porque, com os solavancos da picada, o soro saía da veia e tínhamos de colocar novo soro a correr. Nos momentos em que parávamos, o silêncio mais profundo da savana invadia-nos por todas as nossas fragilidades adentro e fazia-nos falar num sussurro de igreja, lembrando-nos como somos pequenos e vulneráveis. Apenas o ruído inconsciente dos pássaros e os gemidos da jovem mamã "Ah, mwanaka!*", certa de que a vida se lhe secara no ventre.
E lá voltávamos à estrada. Foi o caminho mais longo da minha vida, mas chegou viva e ainda estável para aguentar uma cirurgia...
Sei que em Mulevala a multidão rezou por ela e pelo padre ausente da peregrinação... Pessoalmente, eu tenho alguma dificuldade em acreditar a este ponto no poder da oração. Até porque se Deus existir ["faz conta um ovo"...], saberá certamente a quem acudir sem que seja necessário pedir-lhe. Mas todos ficaram mais próximos por terem uma causa comum, por pedirem por alguém que naquele momento estava pior do que eles e não tinha a sorte de estar feliz naquela caminhada. E no regresso, esta mamã, viva mas órfã de filho, foi consolada e mimada por todos os que tinham rezado pela sua vida... Mais importante do que a questão se Deus existe é a beleza desta história de fé, oração e proximidade. Poderia ser esta a beleza que, nas palavras de Dostoievski, um dia salvaria o mundo?
* O meu filho!
quinta-feira, 30 de junho de 2011
[welcome to mozambique] o que faz mover um povo...
Peregrinação ao Santuário de Mulevala, que em Lomué, o dialecto local, quer dizer "terra dos antigos". Montanha de uma beleza arrebatadora onde Nossa Senhora terá, em 1987, aparecido a um grupo de camponeses, com o menino ao colo e coberta por um manto verde. Não é dogma de fé, claro, Fátima também não, mas é lindo ver o que move um povo e o faz percorrer quilómetros em família, cantando e partilhando a vida. Quem se atreve a dizer, nestes momentos, que a vida não é simples?
(Mulevala, Zambézia)
Mas não fui em quem tirou estas fotos. A história do meu dia foi outra...
quarta-feira, 29 de junho de 2011
[outras palavras] faz conta um ovo...
"Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertamos com força parte-se, se não seguramos bem cai."(Dito do avô Celestiano, reinventando um velho provérbio macua)
Mia Couto in Mar-me-Quer
[E se nos inflamarmos a falar de Deus?]
terça-feira, 28 de junho de 2011
[welcome to mozambique] ribáuè
Imagens de Ribáuè, a 30 km de Iapala. Quando trabalhei no hospital da Missão de Iapala para mim era uma bênção ter um hospital com bloco operatório tão perto... Milhares de mamãs foram aqui salvas in extremis por uma cesariana de emergência.
(Ribáuè, Nampula)
[instantes] a força do sorriso de um doente!
Quem não se derrete com um doente bem disposto? Quem não se apaixona por um sorriso e um olhar a direito que vinga apesar da doença? Já eu sou uma doente péssima. Nunca consegui aprender com os meus meninos como se sorri e se brinca numa enfermaria quanto mais numa cama... Hoje dói-me tudo e estou insuportável...
(A V. no hospital de Iapala, Nampula)
domingo, 26 de junho de 2011
[alhos e blogalhos] serviço público beijo-de-mulata
Ele há coisas que me inquietam... Ora diz o meu StatsCounter-ou-coisa-que-o-valha, nunca sei como raio se chama, que há um senhor residente no Kuwait que persistentemente vem aqui ao mato há meses à procura do nome científico do beijo-de-mulata. Às vezes acrescenta da flor beijo-de-mulata, a ver se assim vai ter a locais mais próprios, com gente mais vestida e público mais selecto mas, invariavelmente, ó azar dos azares, vem parar aqui. Claro que este é um blog decente (tem dias...), com um público mais do que selecto e educado (também tem dias, como de resto se pode ver nos posts da rubrica alhos e blogalhos, mas enfim, genericamente é verdade), só que não tem tido respostas para este senhor...
Mas do Kuwait, valha-me Deus, ainda se vivesse mesmo aqui ao lado, agora vir do Kuwait para o mato, ainda que venha à boleia do meu Santo António do google e não de chapa, dá trabalho, minha gente! Não sei o que vem aqui fazer, tanto mais que a resposta se encontra mais facilmente consultando o Dr. Google do que este canto atrás do sol posto, mas deixa-me sempre perturbada. Isto aqui é mato, meus amigos, não há nada de científico por aqui, estão ali na coluna da direita os meus mais assíduos leitores que não me deixam mentir... mas hoje resolvi que basta! Tinha de fazer alguma coisa por essa pobre alma que vagueia por aqui e sabe-se lá por onde mais. Senhor residente no Kuwait, não sofra mais! A resposta está aqui.
Pronto. Era só isto. Voltemos para o mato, que ainda temos muito que trabalhar hoje!
Mas do Kuwait, valha-me Deus, ainda se vivesse mesmo aqui ao lado, agora vir do Kuwait para o mato, ainda que venha à boleia do meu Santo António do google e não de chapa, dá trabalho, minha gente! Não sei o que vem aqui fazer, tanto mais que a resposta se encontra mais facilmente consultando o Dr. Google do que este canto atrás do sol posto, mas deixa-me sempre perturbada. Isto aqui é mato, meus amigos, não há nada de científico por aqui, estão ali na coluna da direita os meus mais assíduos leitores que não me deixam mentir... mas hoje resolvi que basta! Tinha de fazer alguma coisa por essa pobre alma que vagueia por aqui e sabe-se lá por onde mais. Senhor residente no Kuwait, não sofra mais! A resposta está aqui.
Pronto. Era só isto. Voltemos para o mato, que ainda temos muito que trabalhar hoje!
sábado, 25 de junho de 2011
[como dar com uma equipa inteira de enfermagem em doida] versão 8-10 anos
Quando os teus pais tiverem saído para ir almoçar/ lanchar/ tomar café junta-te com os teus companheiros de quarto na sala das brincadeiras e tentem perceber qual dos vossos telemóveis tem o som mais alto e fidedigno. Tenta gravar a voz de uma enfermeira chamando outro doente, ou muito melhor, chamando uma colega para a ajudar. Faz correr a gravação no corredor quando essa enfermeira já tiver saído e o resto da equipa estiver na sala de tratamentos ou a preparar a medicação.
Quando esta brincadeira deixar de ter graça, grava o som dos alarmes. Com o tempo perceberás quais os alarmes mais eficazes para fazer os enfermeiros correr para o teu quarto. Geralmente são os alarmes que indicam uma paragem cardio-respiratória ou que o soro terminou e tem de ser mudado. Quando eles descobrirem a brincadeira passa a gravação aos companheiros do quarto em frente.
Eu já achava que se há profissão que tem maior probabilidade de ganhar o céu é a Enfermagem. Mas hoje vi uma enfermeira que já lá tem uma herdade garantida. Comentário sobre os gandulos que gravavam os alarmes e os reproduziam nas alturas mais inoportunas: "Eu ralho-lhes e finjo que me zango, mas até lhes acho graça... Ao menos sempre se divertem, mantêm-se entretidos e criam amizades cá dentro, o que é muito importante. Mesmo os castigos faço questão que sejam em conjunto para não se aborrecerem... Mas às vezes é de uma pessoa dar em doida!"
Quando esta brincadeira deixar de ter graça, grava o som dos alarmes. Com o tempo perceberás quais os alarmes mais eficazes para fazer os enfermeiros correr para o teu quarto. Geralmente são os alarmes que indicam uma paragem cardio-respiratória ou que o soro terminou e tem de ser mudado. Quando eles descobrirem a brincadeira passa a gravação aos companheiros do quarto em frente.
Eu já achava que se há profissão que tem maior probabilidade de ganhar o céu é a Enfermagem. Mas hoje vi uma enfermeira que já lá tem uma herdade garantida. Comentário sobre os gandulos que gravavam os alarmes e os reproduziam nas alturas mais inoportunas: "Eu ralho-lhes e finjo que me zango, mas até lhes acho graça... Ao menos sempre se divertem, mantêm-se entretidos e criam amizades cá dentro, o que é muito importante. Mesmo os castigos faço questão que sejam em conjunto para não se aborrecerem... Mas às vezes é de uma pessoa dar em doida!"
[inspiração para uma despedida] outras palavras
Como é que se Esquece Alguém que se Ama?
por Miguel Esteves Cardoso
Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.
Miguel Esteves Cardoso, in Último Volume
sexta-feira, 24 de junho de 2011
[luanda, anos '80] frases que nos marcam
Contou-me certa vez uma amiga, que na sua infância em Luanda, uma garrafa de litro e meio de água do Luso era suficiente para um banho completo com direito a champô e amaciador! Isto a propósito de eu ter conseguido no Gilé desenvolver e apurar uma técnica que me permitia tomar banho com apenas um balde de água. A vida é simples, felizmente...
quinta-feira, 23 de junho de 2011
[ntchuva] as regras do jogo
Homens jogando ntchuva...
(Moçambique, foto retirada na net há tanto tempo que não consigo descobrir o link...)
O ntchuva ou ntxuva, na definição do correspondente honoris causa deste mato, a minha referência no que se refere a moçambicanismos, é um "jogo de estratégia e cálculo aritmético, jogado num tabuleiro de madeira ou no chão". É predominantemente um jogo de equipa, para adultos do sexo masculino.
Eis as regras, para os muitos que em Moçambique viram jogar este jogo na rua e sempre tiveram curiosidade de saber como se joga. O texto que se segue foi adaptado daqui:
Formam-se 2 equipas com um ou mais jogadores. O jogo pode ser realizado no chão, cavando-se 4 filas de pequenas covas. Cada fila pode ter 4, 8, 16 ou 32 covas. Também se pode jogar num tabuleiro construído em madeira ou cimento. As equipas dispõem-se frente a frente, de cócoras. Em cada cova são colocadas duas pedrinhas e a cada equipa correspondem duas filas de covas. O objectivo do jogo é eliminar as pedras do adversário.
Para fazer uma jogada, o jogador escolhe uma cova de partida. Agarra nas pedras dessa cova e coloca-as uma a uma nas covas seguintes, andando no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Sempre que a última pedra que largou fica numa cova que ainda tem pedras, o jogador reinicia o processo, ou seja, retira as pedras dessa cova e coloca-as uma a uma nas covas seguintes até que a última pedra seja largada numa cova vazia. Se essa cova se situa na 1ª fila (a que fica mais próxima do jogador) a jogada termina e passa a vez ao adversário. Se a cova em questão se situa na 2ª fila (mais perto do adversário) o jogador verifica se a cova da frente (correspondente à 2ª fila do adversário) tem pedras, o que lhe dá o direito de retirar as pedras dessa cova, da cova imediatamente atrás e duma terceira cova (escolhida pelo jogador, segundo um critério de estratégia de jogo, ou seja, irá procurar reduzir as possibilidades do adversário, numa próxima jogada, lhe retirar também pedras).
Em seguida é a vez do adversário, que jogará nos moldes já descritos, prosseguindo o jogo com jogadas alternadas entre as duas equipas.
Os jogadores são obrigados (enquanto for possível) a iniciar a jogada por uma cova com mais de uma pedra, terminando sempre quando deixarem apenas uma pedra numa cova. Apenas quando deixarem de haver covas com mais de uma pedra, poderá o jogador iniciar a partida a partir de uma cova com uma só pedra, andando neste caso apenas uma cova, a não ser que logo a seguir tenha uma pedra e assim ele já poderá continuar.
O jogo termina quando uma equipa eliminar as pedras do adversário.
[jogos e passatempos] os interlúdios da vida em moçambique
Jogando ntchuva...
(Moçambique, fotos benevolamente colocadas na net por vários autores, porque eu não tinha nenhuma...)
A primeira pessoa em Moçambique que me mostrou como se pode amar um país e um povo que não é o nosso, a minha querida amiga Cloé, tinha na sala um tabuleiro de ntchuva. Mostrou-mo um dia, embevecida... Ela era uma apaixonada por jogos de estratégia e cálculo e por isso encomendara um dia esta obra de arte autêntica a um artesão da Matola.
O artesão fizera-o em pau preto com embutidos em sândalo e marfim num padrão intrincado, lindíssimo. As pedrinhas não me lembro de que material seriam feitas, mas recordo-me que eram de um cinzento claro que constrastava com o pau preto, e de uma perfeição que conferia ao tabuleiro uma mistura improvável e elegante de tradição e modernidade. Esta peça suscitava sempre a admiração das visitas, pela imagem desconcertante de um jogo tosco de rua jogado ociosamente por homens do povo transformado numa obra de arte feita em materiais preciosos.
quarta-feira, 22 de junho de 2011
[as melhores do serviço de urgência] em jeito de explicação...
A propósito deste post aqui em baixo tenho a dizer apenas isto: a educação de uma criança começa 20 anos antes de cada um dos seus pais nascer. Isto não quer dizer que não se possa fazer nada para ajudar os pais e as crianças. Só quer dizer que é muito difícil...
terça-feira, 21 de junho de 2011
[viver na savana] ocupação indevida?
Outra casa na árvore... um embondeiro escavado por dentro e habitado por uma família de leprosos, segregados da restante comunidade...
(Ocua, Cabo Delgado)
Não me recordo de quem tirou esta foto, o autor que se acuse... Foste tu, S.?
segunda-feira, 20 de junho de 2011
[sns we can!] tenho medo...
Eu gostava que sim, que fosse possível... O Serviço Nacional de Saúde, tal como o ensino público, sempre foi um dado adquirido. Mas nos últimos dias só me passa pela cabeça que este paradigma pode estar em perigo... Bem, coisas da silly season, deve ser da chegada do verão...
domingo, 19 de junho de 2011
sexta-feira, 17 de junho de 2011
[as melhores do serviço de urgência] ou como enfurecer uma pediatra às 10 da manhã...
Serviço de Urgência. Fim de semana de manhã. Menino de dois anos com um ar absolutamente miserável e quase desidratado, trazido pela sua mãe, uma senhora produzidíssima, com uma fala afectada e um ar de valha-me-deus-que-não-sei-que-mal-fiz-para-vir-parar-a-esta-espelunca-eu-só-cá-vim-porque-o-motorista-não-sabia-o-caminho-para-o-hospital-da-luz...
Apesar de o menino mal se equilibrar nas pernas, vinha com ele pela mão. Eu nem queria acreditar, mas enfim, ainda lhe dei o benefício da dúvida. Podia ser que a mãe estivesse com uma dor de costas de caixão à cova...
- Bom dia! Então o que se passa com o seu menino?
- Não pára de vomitar desde ontem à noite...
- Vomitou quantas vezes?
- Não sei, Doutora, a ama ficou lá fora. Mas acho que foram muitas.
- Está bem, vamos despi-lo ali na marquesa.
A senhora coloca-o na marquesa e deixa-o ali sentado.
- Vamos despi-lo, mãe.
- ... [Um ar absolutamente em branco, de quem não percebeu o que eu disse.]
- Passa-se alguma coisa? Vamos despir o menino!
- [Um ar abismado!] Mas quer que seja eu a despi-lo?!
- Claro, quem mais?
- Ah...
Enquanto a mãe o despe, claramente mal disposta com um ar de mas-será-que-tenho-de-fazer-tudo-nesta-casa, continuo o meu interrogatório.
- Ele tem estado doente?
- Acho que teve uma amigdalite há tempos.
- Há quanto tempo?
- Mas como é que quer que eu saiba? Já deve ter sido aí há um mês ou três semanas...
- E ele ontem à noite já estava enjoado?
- Não, acho que não...
- O que é que ele comeu ontem ao jantar?
- [Irritadíssima!] Ó Doutora, sei lá! Ele ainda não tem idade p'a comer connosco!
Controlei-me.
- Então pode ir chamar a ama.
Diz-me um colega que estava na sala ao lado:
- Ah, estás a ver aquele menino? Gabo-te a paciência. Ele em tempos foi meu doente e aquela família é indescritível... Calcula que para fazer a primeira sopa de batata e cenoura teve de vir a governanta à consulta!
Apesar de o menino mal se equilibrar nas pernas, vinha com ele pela mão. Eu nem queria acreditar, mas enfim, ainda lhe dei o benefício da dúvida. Podia ser que a mãe estivesse com uma dor de costas de caixão à cova...
- Bom dia! Então o que se passa com o seu menino?
- Não pára de vomitar desde ontem à noite...
- Vomitou quantas vezes?
- Não sei, Doutora, a ama ficou lá fora. Mas acho que foram muitas.
- Está bem, vamos despi-lo ali na marquesa.
A senhora coloca-o na marquesa e deixa-o ali sentado.
- Vamos despi-lo, mãe.
- ... [Um ar absolutamente em branco, de quem não percebeu o que eu disse.]
- Passa-se alguma coisa? Vamos despir o menino!
- [Um ar abismado!] Mas quer que seja eu a despi-lo?!
- Claro, quem mais?
- Ah...
Enquanto a mãe o despe, claramente mal disposta com um ar de mas-será-que-tenho-de-fazer-tudo-nesta-casa, continuo o meu interrogatório.
- Ele tem estado doente?
- Acho que teve uma amigdalite há tempos.
- Há quanto tempo?
- Mas como é que quer que eu saiba? Já deve ter sido aí há um mês ou três semanas...
- E ele ontem à noite já estava enjoado?
- Não, acho que não...
- O que é que ele comeu ontem ao jantar?
- [Irritadíssima!] Ó Doutora, sei lá! Ele ainda não tem idade p'a comer connosco!
Controlei-me.
- Então pode ir chamar a ama.
Diz-me um colega que estava na sala ao lado:
- Ah, estás a ver aquele menino? Gabo-te a paciência. Ele em tempos foi meu doente e aquela família é indescritível... Calcula que para fazer a primeira sopa de batata e cenoura teve de vir a governanta à consulta!
quinta-feira, 16 de junho de 2011
quarta-feira, 15 de junho de 2011
[as melhores do serviço de urgência] neologismos
Serviço de Urgência, noite de Santo António. Uma adolescente de 15 anos, natural de Cabo Verde, residente em Lisboa há poucos meses, com um ar estremunhado de quem acabou de acordar de um sono desconfortável nas cadeiras de plástico da sala de espera e com cara de deixem-me-em-paz-que-não-sei-o-que-estou-aqui-a-fazer-eu-nem-sou-de-cá-só-cá-vim-ver-a-bola, acompanhada por sua mãe, uma mulher enorme e irritável, claramente impaciente por estar parada e há tanto tempo à espera.
- Então o que a traz aqui? - pergunta uma colega minha. [Pergunta retórica, que obviamente já tinha lido o relatório da triagem e feito o diagnóstico.]
- Tem febiri e angina.
- Está bem, vamos vê-la...
[A adolescente dirige-se para a marquesa e começa a despir-se lentamente, como quem pensa distraídamente sobre a vida. A mãe, impaciente, rosna-lhe que se despache, que ainda há muito que fazer nesse dia.]
- Mas, mãe, a menina está muito pálida... Tem uma anemia grave de certeza. Ela não tem andado mais cansada ou mais parada nos últimos tempos?
- Ah, Doutora, ela é muito divagarosa...
- Então o que a traz aqui? - pergunta uma colega minha. [Pergunta retórica, que obviamente já tinha lido o relatório da triagem e feito o diagnóstico.]
- Tem febiri e angina.
- Está bem, vamos vê-la...
[A adolescente dirige-se para a marquesa e começa a despir-se lentamente, como quem pensa distraídamente sobre a vida. A mãe, impaciente, rosna-lhe que se despache, que ainda há muito que fazer nesse dia.]
- Mas, mãe, a menina está muito pálida... Tem uma anemia grave de certeza. Ela não tem andado mais cansada ou mais parada nos últimos tempos?
- Ah, Doutora, ela é muito divagarosa...
terça-feira, 14 de junho de 2011
[o melhor de moçambique] turismo...
Como um dia disse Mia Couto, o melhor do turismo em Moçambique é quase não existir turismo. É poder estar numa das praias mais bonitas do mundo e não haver mais ninguém ao nosso lado!
(Praia das Chocas, Nampula)
segunda-feira, 13 de junho de 2011
[instantes] um anoitecer na zambézia
A mamã do rio, no caminho para Mulevala. Uma quase aparição ao anoitecer...
(Algures na Zambézia, Moçambique)
domingo, 12 de junho de 2011
[a força que um sorriso pode ter!] dançar é viver
Dançando porque o dia já nasceu, dançando porque estamos todas vivas, dançando apenas porque sim... porque vida é todos os dias!
(Na casa das Irmãs em Ribáuè, Nampula)
Já agora, alguém sabe como se pode fazer para postar filmes sem que eles percam qualidade? Eu sei que este blog é mato, mas ainda assim escusa de ser desfocado e tremido...
sábado, 11 de junho de 2011
[wilde moments] momentos selvagens
"America is the only country that went from barbarism to decadence without civilization in between."Oscar Wilde
[nomes que dizem tudo #21] o meu blog dava um programa nacional de vacinação
(continuando...)
Mas estava eu para aqui a teorizar sobre os nomes e a saúde das crianças... Eu diria mesmo, embora não apoiada em qualquer estudo randomizado, já que nenhuma comissão de ética aprovaria esta experimentação humana de alto risco, que a lista dos nomes admitidos e não admitidos é um dos grandes responsáveis pela diminuição drástica da mortalidade infantil nas últimas décadas!
E ainda assim, mesmo orientados por uma lista quase exaustiva, é possível cometer muitas atrocidades, meus amigos! Não só pelas combinações que não lembrariam ao menino Jesus, mas também porque os nomes admitidos estão cada vez mais improváveis. Qualquer dia isto já é como no Brasil, onde se pode tranquilamente chamar "Um Dois Três de Oliveira Quatro" a um filho sem a conservadora do registo poder fazer o que quer que seja para impedir os eufóricos pais...
É que há nomes que à partida nos fazem sentir que algo vai correr mal com a criança... Sinceramente... Por exemplo, acham que uma Odete Soraia podia correr bem? Ou uma Catalina Cinderela? Ou uma Jessica Ariadne? Alguma destas crianças poderia ter uma saúde de ferro? Não, meus amigos, uma Odete Soraia nunca poderá ter uma saúde de ferro. Do mesmo modo, que dizer de um Dhruva ou de um Siddártha? É que uma coisa é termos na consulta um Dhruva de dois aninhos, filho de um Pranjhal e de uma Fati, ambos naturais do Bangladesh... Este menino só tem habitualmente uma ou outra doença típica da infância, uma otite aqui e ali, a varicela da praxe e, num rasgo de maior azar, pode um dia partir a cabeça enquanto sobe a uma cadeira para ir buscar a lata dos rebuçados na prateleira mais alta da cozinha. Mas sabemos que vai tudo correr bem.
Outra coisa muito diferente, meus amigos, é termos um Dhruva dos Santos, filho de um André Filipe e de uma Andreia Vanessa, ambos vegetarianos estritos e fervorosos adeptos da homeopatia. Aí a coisa fia mais fino. Aí podemos ter a certeza de que alguma coisa vai dar para o torto mais tarde ou mais cedo! Para além das doenças horríveis que costumam acometer os azarados de nascença, estes acabam habitualmente por ter anemias de caixão à cova porque nunca comeram carne na vida, otites supuradas com surdez precoce porque nunca tomaram um antibiótico, papeira aos 15 anos com risco de ficarem estéreis porque não fizeram qualquer vacina e são os primeiros a ficar obesos na adolescência porque depois de descobrirem o MacDonald's nunca mais querem outra coisa... Ah, e há uma epidemia de sarampo na Europa*. Também são sempre estes os primeiros na linha de ataque...
Mais palavras para quê?
* Nunca é demais frisá-lo: este blog é um fervoroso adepto da vírgula de Oxford. Entre outras inutilidades...
Mas estava eu para aqui a teorizar sobre os nomes e a saúde das crianças... Eu diria mesmo, embora não apoiada em qualquer estudo randomizado, já que nenhuma comissão de ética aprovaria esta experimentação humana de alto risco, que a lista dos nomes admitidos e não admitidos é um dos grandes responsáveis pela diminuição drástica da mortalidade infantil nas últimas décadas!
E ainda assim, mesmo orientados por uma lista quase exaustiva, é possível cometer muitas atrocidades, meus amigos! Não só pelas combinações que não lembrariam ao menino Jesus, mas também porque os nomes admitidos estão cada vez mais improváveis. Qualquer dia isto já é como no Brasil, onde se pode tranquilamente chamar "Um Dois Três de Oliveira Quatro" a um filho sem a conservadora do registo poder fazer o que quer que seja para impedir os eufóricos pais...
É que há nomes que à partida nos fazem sentir que algo vai correr mal com a criança... Sinceramente... Por exemplo, acham que uma Odete Soraia podia correr bem? Ou uma Catalina Cinderela? Ou uma Jessica Ariadne? Alguma destas crianças poderia ter uma saúde de ferro? Não, meus amigos, uma Odete Soraia nunca poderá ter uma saúde de ferro. Do mesmo modo, que dizer de um Dhruva ou de um Siddártha? É que uma coisa é termos na consulta um Dhruva de dois aninhos, filho de um Pranjhal e de uma Fati, ambos naturais do Bangladesh... Este menino só tem habitualmente uma ou outra doença típica da infância, uma otite aqui e ali, a varicela da praxe e, num rasgo de maior azar, pode um dia partir a cabeça enquanto sobe a uma cadeira para ir buscar a lata dos rebuçados na prateleira mais alta da cozinha. Mas sabemos que vai tudo correr bem.
Outra coisa muito diferente, meus amigos, é termos um Dhruva dos Santos, filho de um André Filipe e de uma Andreia Vanessa, ambos vegetarianos estritos e fervorosos adeptos da homeopatia. Aí a coisa fia mais fino. Aí podemos ter a certeza de que alguma coisa vai dar para o torto mais tarde ou mais cedo! Para além das doenças horríveis que costumam acometer os azarados de nascença, estes acabam habitualmente por ter anemias de caixão à cova porque nunca comeram carne na vida, otites supuradas com surdez precoce porque nunca tomaram um antibiótico, papeira aos 15 anos com risco de ficarem estéreis porque não fizeram qualquer vacina e são os primeiros a ficar obesos na adolescência porque depois de descobrirem o MacDonald's nunca mais querem outra coisa... Ah, e há uma epidemia de sarampo na Europa*. Também são sempre estes os primeiros na linha de ataque...
Mais palavras para quê?
* Nunca é demais frisá-lo: este blog é um fervoroso adepto da vírgula de Oxford. Entre outras inutilidades...
sexta-feira, 10 de junho de 2011
[nomes que dizem tudo #20] o meu blog dava um programa nacional de saúde pública
Se há medida de saúde pública que melhorou a qualidade de vida das crianças portuguesas nas últimas décadas foi a saída em Diário da República da lista de nomes admitidos e não admitidos. E o fundamento é extremamente simples, meus queridos amigos, é que não podemos confiar nos pais para dar nome a uma criança, porque é precisamente no momento do nascimento que a auto-crítica se dissolve. Para sempre! E se não podemos confiar nos pais, muito menos nas mães, a quem a "influência perturbadora do parto" pode até atenuar a pena dos crimes mais hediondos.*
Nesse momento a vida é um enorme ponto de interrogação, um misto de medo e euforia, um tsunami de sentimentos, de sangue, leite e lágrimas (vá, podem dizer, sim, "escusavas de ser tão pictórica"... mas eu respondo que dado o aparato fluídico de um parto, podia perfeitamente ser ainda mais gráfica!). Nessa altura tão conturbada, em que cada pessoa está genuinamente convencida de que acabou de viver um momento singular, extraordinário e irrepetível, não podemos esperar que todos tenham senso suficiente para não dar à criança um nome que considerem igualmente extraordinário e singular. É precisamente por isso que precisamos de um guardião da moral e dos bons costumes sob a forma de decreto-lei onde conste, por exemplo, que Teddy não é um nome admissível para se chamar a uma criança, nem Tâmara Madura, nem Jimmy Hendrix, nem Frankenstein. Nem outras improbabilidades deste calibre...
É preciso alguém para comandar o barco. Alguém como, por exemplo, o Bispo de Utrecht no século XIII, que foi chamado para resolver o difícil e estranho caso do parto da Condessa Margaret de Henneberg, que dera à luz uma mola hidatiforme. E aqui a história assevera-nos que um bispo nunca se atrapalha, que um bispo enrascado é pior que um anestesista bêbado. E reza, pois, a história que o digníssimo clérigo dividiu aquela massa vesiculosa em 365 partes iguais e baptizou metade com o nome de João e a outra metade com o nome de Isabel e mandou depois fazer-lhes um funeral condigno, para que nenhuma das pequenas vesículas tivesse de ir para o limbo, que era assim uma espécie de piso intermédio entre o céu e o inferno para onde iam todas as crianças cujos pais cometiam a infâmia de não os baptizar. Depois de abolido pelo Papa João Paulo II, já no século XXI, pensa-se que as crianças do limbo foram realojadas em massa...
*Artigo 137 do Código Penal Português.
(continua)
Nesse momento a vida é um enorme ponto de interrogação, um misto de medo e euforia, um tsunami de sentimentos, de sangue, leite e lágrimas (vá, podem dizer, sim, "escusavas de ser tão pictórica"... mas eu respondo que dado o aparato fluídico de um parto, podia perfeitamente ser ainda mais gráfica!). Nessa altura tão conturbada, em que cada pessoa está genuinamente convencida de que acabou de viver um momento singular, extraordinário e irrepetível, não podemos esperar que todos tenham senso suficiente para não dar à criança um nome que considerem igualmente extraordinário e singular. É precisamente por isso que precisamos de um guardião da moral e dos bons costumes sob a forma de decreto-lei onde conste, por exemplo, que Teddy não é um nome admissível para se chamar a uma criança, nem Tâmara Madura, nem Jimmy Hendrix, nem Frankenstein. Nem outras improbabilidades deste calibre...
É preciso alguém para comandar o barco. Alguém como, por exemplo, o Bispo de Utrecht no século XIII, que foi chamado para resolver o difícil e estranho caso do parto da Condessa Margaret de Henneberg, que dera à luz uma mola hidatiforme. E aqui a história assevera-nos que um bispo nunca se atrapalha, que um bispo enrascado é pior que um anestesista bêbado. E reza, pois, a história que o digníssimo clérigo dividiu aquela massa vesiculosa em 365 partes iguais e baptizou metade com o nome de João e a outra metade com o nome de Isabel e mandou depois fazer-lhes um funeral condigno, para que nenhuma das pequenas vesículas tivesse de ir para o limbo, que era assim uma espécie de piso intermédio entre o céu e o inferno para onde iam todas as crianças cujos pais cometiam a infâmia de não os baptizar. Depois de abolido pelo Papa João Paulo II, já no século XXI, pensa-se que as crianças do limbo foram realojadas em massa...
*Artigo 137 do Código Penal Português.
(continua)
quinta-feira, 9 de junho de 2011
terça-feira, 7 de junho de 2011
[outras palavras] teorias geniais
"Não sei que armas se utilizariam numa terceira guerra mundial. Mas a quarta seria de certeza à pedrada e à paulada!"A. Einstein
Pronto. Era só isto. Tenham um bom dia. Eu vou ali ver se me passa esta neura de sexta-feira santa.
segunda-feira, 6 de junho de 2011
[últimas tendências] moda paris-nova-iorque-zambézia
Mozambique is easier!
Longe de haver a oferta estonteante dos centros da moda mundiais - uma trabalheira das antigas para a mulher mediana que aspira a manter-se mais ou menos à tona das novas tendências - em Moçambique a moda resume-se a dois ou três novos padrões de capulana lançados todos os anos de forma transversal em todo o país. Cómodo e simples para quem quer ter sempre o último grito. Uma ideia fantástica para garantir a felicidade das mulheres e a salvaguarda da carteira dos homens, mesmo que não existam cartões de crédito (nem de microcrédito, quanto mais). A vida é simples, meus amigos. E quem não concorda é porque não percebe o que realmente interessa nesta vida...*
O corolário desta moda igualitária é que os padrões das capulanas são também uma maneira cómoda e prática de datar fotos e vídeos... Por exemplo, o vídeo que vos mostrei há dias sobre o "Expresso do Oriente", o improvável comboio entre Nampula e o Niassa, só pode ter sido filmado depois de 2010, altura em que foi lançado o padrão da capulana da senhora que aparece ao minuto 01:24. Muito bonito por sinal... E que bem que ficava à tia da pequena Beatriz...
* Gosto genericamente de argumentos irrefutáveis, são cómodos e transmitem-me segurança... É mais ou menos como os protocolos, mas em simples.
[famous last words] mas... mas...
Mas... mas nem levava pepino... era só uma saladinha de tomate e rebentos de soja biológicos...
(É oficial, este blogue iniciou a silly season...)
(É oficial, este blogue iniciou a silly season...)
domingo, 5 de junho de 2011
[o meu hospital na zambézia] instantes
O Hospital do Gilé, tal como o vi pela primeira vez...
(Gilé, Zambézia)
Fui ao Gilé pela primeira vez em 2004, a acompanhar a Irmã Lurdes, que ia deixar Iapala para fundar uma missão naquele mais que fim do mundo. Como era possível alguém deixar Iapala?, pensava eu na altura. Ainda hoje não sei como foi que ela teve coragem de deixar Iapala, a montanha mágica de Nampula, para ir para um desterro como aquele. Não havia água canalizada, nem luz eléctrica, nem bombas de gasolina. Não havia pão para o pequeno-almoço nem ninguém que o pudesse fazer. Quase não havia comércio. A feira era uma vez por mês. Se quiséssemos comprar carne ou legumes, ou outros géneros alimentares era quase impossível. E então se precisássemos de um biberão para uma criança desnutrida ou até de uma simples capulana era melhor nem pensar. Só se se "apanhasse muita sorte"!
A cidade ficava a 8 horas de viagem durante a estação seca e não se podia fazer o caminho durante as chuvas porque não havia combustível e as estradas ficavam quase intransitáveis... As Irmãs não iam ter sequer uma casa onde viver, iam acotovelar-se num anexo da casa dos padres... Como era possível alguém acreditar que ia poder fazer alguma coisa a partir de menos que zero?
Mas a Irmã Lurdes era inamovível. Ia para Gilé. Se era para lá que Deus a mandava, era para lá que iria! E eu também fui nesse dia, para ver o que a esperava... Para pelo menos poder rezar por ela...
Fui ao hospital nesse dia. Sempre gostei de fazer turismo hospitalar, mas dessa vez fui porque o director da escola onde as Irmãs iriam trabalhar me pediu para lá ir ver o filho que estava internado. O senhor mal conseguia falar de tão emocionado e preocupado que estava com a doença da sua "primeira sorte". Achei o hospital absolutamente encantador, com as suas enfermariazinhas pequeninas de dois ou três doentes que pareciam casinhas de bonecas, paupérrimo, com uma pobreza de recursos e de conhecimentos absolutamente avassaladora.
Entrei na enfermaria onde estava o menino e deparei-me com uma criança de dois anos, prostrada, a arder em febre, no colo de sua mãe lindíssima, que lentamente o massajava com água fria para o arrefecer enquanto o olhava nos olhos. Uma imagem tranquila, quase de uma pintura de outros tempos... Foi nesse momento que tive o primeiro pressentimento de que afinal talvez pudesse um dia trabalhar ali. A Irmã Lurdes já o tinha tido noutro local tempos antes. Falou-me depois do sofrimento silencioso das pessoas, da esperança e da resignação do povo que tinha visto na primeira manhã da sua visita ao Gilé... São momentos que mudam as nossas vidas.
Observei o menino, que tinha uma gastroenterite bacteriana, nada mais. Precisava apenas de um soro e de um antibiótico. Um tratamento absolutamente básico mas que não estava a ser feito. O pai tinha toda a razão em temer pela vida do filho... Fui ter com os enfermeiros, que alegremente descansavam, conversando debaixo do cajueiro. Sentei-me com eles a conversar, apresentei-me, pedi-lhes delicadamente para colocarem um soro ao menino e perguntei-lhes se tinham o antibiótico indicado para aquela situação. Não o conheciam, mas disseram que sim. À cautela escrevi-o num papel que dei ao pai, para ele poder depois confirmar se lhe estava a ser feita a medicação.
Anos depois, numa outra visita ao Gilé, o director da escola soube que eu estava novamente na vila e levou-me o filho para me mostrar como estava lindo e enorme!
- Sabe, Doutora, eles não tinham aquele medicamento. Eu tive de ir a Quelimane, a 400 km daqui para ir comprar o antibiótico para o meu filho e só depois é que ele começou a melhorar...
Na mão trazia-me um embrulho minúsculo em papel de jornal. Nem o abri à frente dele, embevecida que estava por o menino não ter medo de mim e até me querer saltar para o colo a sorrir (é tão raro não estranharem uma mulher sem cor de pessoa...). Só quando saiu me lembrei do embrulho. Era uma pequena pedra vermelha, tosca e com uma forma bruta. Um rubi das minas que ficam perto...
sábado, 4 de junho de 2011
[o meu hospital na zambézia] as leis de murphy aplicadas à medicina
(continuando...)
Regressemos então ao meu hospital na Zambézia, que deixámos lá, em suspended animation, o menino de sua mãe com uma insuficiência cardíaca que se agravou nas últimas horas.
[Primeira lei de Murphy: se o aparelho não funciona, teste a tomada.]
- Já lhe deram a medicação? - pergunto à mãe.
- Sim, já tomou. Agora mesmo.
[Segunda lei de Murphy: se mais do que uma coisa puder correr mal, correrão todas mal ao mesmo tempo. Hummm... De certeza que apanhou mais qualquer coisa...]
- E hoje teve febre?
- Não.
- Tosse?
- Não.
- Diarreia ou dor de barriga?
- Não teve nada na barriga.
[Terceira lei de Murphy: se duas coisas puderem potencialmente correr mal e você conseguiu evitar ambas, então ocorrerá invariavelmente uma terceira, muito mais complexa... Bem, tenho de ir ver o que se passa.]
- Até já, mamã, que vou ali perguntar uma coisa... [Vou ter com o enfermeiro.] Sr. Enfermeiro, o menino B. já tomou a medicação?
- Sim, tomou agora mesmo.
- Mas ele está muito pior... Se calhar era melhor tomar uma dose suplementar do medicamento A...
- O medicamento A não tem...
- Não tem?! Como assim?
- Não tem. Não tem o medicamento A no armário dos medicamento...
- Mas disse-me que ele tomou a medicação!
- Sim, tomou o que havia. O que não havia não tomou.
- Então o que é que ele tomou?
- Tomou multivitamina e paracetamol.
- Mas esta manhã, quando internei o menino perguntei se tinha e disse-me que sim.
- Sim, tem.
- Então? [Ó valha-me Santa Rita de Cássia!]
- Mas hoje não tem...
(continua...)
Regressemos então ao meu hospital na Zambézia, que deixámos lá, em suspended animation, o menino de sua mãe com uma insuficiência cardíaca que se agravou nas últimas horas.
[Primeira lei de Murphy: se o aparelho não funciona, teste a tomada.]
- Já lhe deram a medicação? - pergunto à mãe.
- Sim, já tomou. Agora mesmo.
[Segunda lei de Murphy: se mais do que uma coisa puder correr mal, correrão todas mal ao mesmo tempo. Hummm... De certeza que apanhou mais qualquer coisa...]
- E hoje teve febre?
- Não.
- Tosse?
- Não.
- Diarreia ou dor de barriga?
- Não teve nada na barriga.
[Terceira lei de Murphy: se duas coisas puderem potencialmente correr mal e você conseguiu evitar ambas, então ocorrerá invariavelmente uma terceira, muito mais complexa... Bem, tenho de ir ver o que se passa.]
- Até já, mamã, que vou ali perguntar uma coisa... [Vou ter com o enfermeiro.] Sr. Enfermeiro, o menino B. já tomou a medicação?
- Sim, tomou agora mesmo.
- Mas ele está muito pior... Se calhar era melhor tomar uma dose suplementar do medicamento A...
- O medicamento A não tem...
- Não tem?! Como assim?
- Não tem. Não tem o medicamento A no armário dos medicamento...
- Mas disse-me que ele tomou a medicação!
- Sim, tomou o que havia. O que não havia não tomou.
- Então o que é que ele tomou?
- Tomou multivitamina e paracetamol.
- Mas esta manhã, quando internei o menino perguntei se tinha e disse-me que sim.
- Sim, tem.
- Então? [Ó valha-me Santa Rita de Cássia!]
- Mas hoje não tem...
(continua...)
quarta-feira, 1 de junho de 2011
[benvindos ao estado de emergência] os pepinos
Bem*, e já que vieram do mato de propósito para me ouvirem falar das baboseiras dos nomes primos ali no post abaixo, não vamos perder a viagem, pois não?
Ora depois de uma semana inteira de trocadilhos com pepinos e "colibacilos" [o que eu gosto desta palavra!], depois de vários dias na Europa Central numa de peel it, boil it or forget it, como se tivéssemos ido à ópera num campo de refugiados do Ruanda, depois de num hotel vienense os pepinos e tomates do pequeno-almoço ostentarem, sem que eu fizesse a mais pálida ideia da razão, a localização geográfica das suas hortas de origem, vem então a Ministra da Agricultura de nuestros hermanos assegurar-nos de que "os pepinos estão bem". Grande senhora! Podemos hoje agradecer-lhe mais uma tirada fantástica a ficar na História Universal dos Vegetais. Para mim acabou de suplantar o clássico "Nothing personal, Damascus!" de Douglas Adams...
Graças a Deus e a São Francisco de Assis, padroeiro dos legumes! Cheguei mesmo a temer o pior para os pepinos. Agora resta-nos voltar ao peel it, boil it or forget it e, pelo sim pelo não, ferver a água como no mato enquanto não se descobre a origem da epidemia. E, já que estamos numa de mato... 'bora voltar para a Zambézia?
* Este blog continua um fervoroso adepto da vírgula de Oxford. Cá por coisas.
Ora depois de uma semana inteira de trocadilhos com pepinos e "colibacilos" [o que eu gosto desta palavra!], depois de vários dias na Europa Central numa de peel it, boil it or forget it, como se tivéssemos ido à ópera num campo de refugiados do Ruanda, depois de num hotel vienense os pepinos e tomates do pequeno-almoço ostentarem, sem que eu fizesse a mais pálida ideia da razão, a localização geográfica das suas hortas de origem, vem então a Ministra da Agricultura de nuestros hermanos assegurar-nos de que "os pepinos estão bem". Grande senhora! Podemos hoje agradecer-lhe mais uma tirada fantástica a ficar na História Universal dos Vegetais. Para mim acabou de suplantar o clássico "Nothing personal, Damascus!" de Douglas Adams...
Graças a Deus e a São Francisco de Assis, padroeiro dos legumes! Cheguei mesmo a temer o pior para os pepinos. Agora resta-nos voltar ao peel it, boil it or forget it e, pelo sim pelo não, ferver a água como no mato enquanto não se descobre a origem da epidemia. E, já que estamos numa de mato... 'bora voltar para a Zambézia?
* Este blog continua um fervoroso adepto da vírgula de Oxford. Cá por coisas.
[nomes que dizem tudo #19] interrompemos a emissão a partir do mato para dizer...
...minha querida Pólo Norte, eu sei porque tu já o revelaste em público... O teu segundo nome é um nome primo. [E o que é um nome primo?, perguntam os meus queridos amigos, que gentilmente se dispuseram a interromper a sua viagem exótica pelo meu hospital no meio do mato, na Alta Zambézia, para vir escutar mais uma das minhas teorias sobre nomes improváveis... Ora, é fácil, um nome primo é um nome que só combina de forma minimamente razoável com Maria ou com Ana, sendo nome de menina, ou com José, sendo nome de rapaz.]
E portanto, Pólo Norte, foi em ti que pensei hoje na minha consulta. Mesmo que o teu verdadeiro nome seja qualquer-coisa-de-absolutamente-tenebroso-e-que-combina-de-forma-assustadora-com-Ruth, a partir de hoje podes ficar em paz, porque eu já vi uma menina chamada.... [estão preparados?] Odete Soraia!
Pronto. Era só isto. A emissão segue novamente para o mato dentro de momentos...
E portanto, Pólo Norte, foi em ti que pensei hoje na minha consulta. Mesmo que o teu verdadeiro nome seja qualquer-coisa-de-absolutamente-tenebroso-e-que-combina-de-forma-assustadora-com-Ruth, a partir de hoje podes ficar em paz, porque eu já vi uma menina chamada.... [estão preparados?] Odete Soraia!
Pronto. Era só isto. A emissão segue novamente para o mato dentro de momentos...
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