segunda-feira, 30 de maio de 2011

[o meu hospital na zambézia] está melhor? ainda...

(continuando...)

Esta mamã, como qualquer mulher macua nascida e criada no mato, acredita apenas no destino e já percebeu que a hora do filho está perto. Não interfere. Só está ali porque a família já o deu como perdido e portanto foram ao hospital tentar ainda a sorte, mas sem grande convicção... Como sei que foi assim? Já não preciso de perguntar. Ninguém vai ao hospital sem passar antes de mais pelo curandeiro. Na cultura macua, a doença só pode resultar de um feitiço que alguém lançou à criança por inveja da família, ou então da zanga de um antepassado porque alguém quebrou um qualquer tabu - ou não guardou o devido respeito a uma tradição. Vírus? Micróbios? Uma pneumonia? Que sentido podem fazer à luz destes conceitos? Por mais que me esforce nunca lhe vou conseguir explicar que o que se passa com o seu menino é uma alteração na estrutura do coração... Só posso ir prometendo que vamos cuidar bem dele e ajudar a família no que pudermos...

Foi por não perceber os mecanismos de doença na cultura macua que demorei tempos infindos a perceber por que razão os pais respondiam sempre que os meninos não estavam melhores, a não ser que já estivessem completamente bem e prontos para ter alta.

- Mas ele parece melhor, papá...
- Não… ainda está doente.
- Mas ontem teve febre quantas vezes?
- Três vezes.
- E hoje?
- Hoje… ainda. [Ou seja, hoje ainda não teve febre.]

Os meninos estavam claramente melhores e os pais não percebiam isso… Não sei quanto tempo demorei para me dar conta de que eles genuinamente não reconheciam o estado dos filhos. Até lá imaginava apenas que os pais tinham tanto medo de que os filhos morressem que até tinham receio de dizer que estavam melhores. Eu pensava que era intuitivo, que qualquer pessoa conseguiria ver se outra estava melhor, quanto mais uma mãe: se já estavam mais corados, se já se alimentavam e brincavam um pouco, é óbvio que estavam melhores…

Mas bastava ter pensado um bocadinho. Eu é que não estava preparada para me afastar tanto do meu próprio conceito de doença. Se o menino foi vítima de um feitiço ou de um castigo dos antepassados, então só podem existir dois estados de saúde possíveis: ou se está bem, ou se está doente. Não faz sentido existir um meio-termo. [Daí a clássica resposta: “Não, não está melhor. Ainda está doente…”] Nem existe, aliás, qualquer expressão em macua que signifique "estar a melhorar". Existe a expressão "vakhani-vakhani", que quer dizer "pouco a pouco", mas não se refere a uma alteração no estado geral, quer apenas dizer que não se está muito bem nem muito mal.

O problema é que, tal como não reconheciam as melhoras, também não se davam conta de qualquer agravamento. Entendiam o agravamento como fazendo parte da evolução natural da doença. Nem sequer lhes ocorria avisar quem de direito ou pedir ajuda. “Somos todos impotentes na doença” diz um provérbio macua. Por isso é preciso estar sempre em cima do acontecimento ou as coisas acontecem nas nossas barbas!

(continua...)

2 comentários:

  1. O teu blog é tão bom... mas tãaaaaaao bom.
    Adoro as histórias, a maneira como escreves, como descreves, como sentes o que escreves. Fantástico.

    bjo

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  2. essa do ainda é demais. cada vez que me lembro do miudo que se chamava "ainda" lol

    mas então não existe por ex o conceito de estar a "apanhar o feitiço" a ficar doente, quase a ficar livre do feitiço "francas melhoras"...

    ah, e obrg pela resposta do post abaixo. não conseguia perceber mesmo perceber.

    bjs

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