O Nampula-Cuamba Orient Express
(Iapala, Moçambique)
Texto do meu grande amigo Francisco Campos, sj. Viagem magistralmente captada em vídeo já postado mais abaixo. O link, para os leitores mais atarefados.
"Cheguei demasiado depressa. Foi um pulo demasiado rápido". Senti isso logo à chegada a Nampula, zona macua, no Norte de Moçambique. O meu destino era Cuamba, onde vim para dar um retiro aos Leigos para o Desenvolvimento que aqui trabalham e que me têm acolhido tão bem.
Nampula é muito diferente de Maputo. A cultura e a língua são outras, vêm-se muitos muçulmanos trajados com seus tradicionais hábitos e a própria maneira de estar é diferente. Por isso, assim que pude, fui dar uma volta a pé pelo bairro onde me achava alojado para poder estar e sentir, e finalmente poder "chegar" a esta terra onde já me encontrava.
No dia seguinte segui para Cuamba. A maneira mais fácil de fazer estes 350 km é de comboio. Uma viagem muito bonita e, como quase sempre em Moçambique, com os seus desafios tão específicos. Dura apenas 11 horas e em 3ª classe vai-se confortavelmente sentado em bancos de pau.
Às 3.30h da manhã o Pe. Leonel foi levar-me à estação e orientar-me na confusão aparentemente instalada. Há várias bichas consoante a quantidade de carga que se transporta, umas para mulheres e outras para homens. Guardas munidos de vistosos cacetetes ostensivamente abanados no ar vão gritando com as pessoas e mantendo a ordem relativa. Depois de uns minutos da despedida do Pe. Leonel vieram dizer-me que o "Padre foi assaltado e agredido com uma garrafa partida à saída da estação". Ainda lá fui ver o que se passava e se era preciso algum auxílio, mas já tinham ido todos embora. Os três meliantes tinham sido os primeiros a desaparecer com a aproximação rápida da polícia. O Pe. Leonel também já lá não estava e, vim a saber depois, tinha ido para a esquadra e hospital apanhar sete pontos no braço. Acabaram por não lhe roubar nada, e ainda bem que a história não acabou de forma ainda mais trágica.
Finalmente houve a ordem de entrada no comboio. Alguns tentam furar filas, outros arranjar bolsos com carteiras recheadas de gente mais desprevenida, grita-se, corre-se, os guardas entram ainda mais em acção, há encostos, o adro grande fica repleto de gente junto ao portão para a gare.
Ao entrar no comboio encontrei um bom lugar onde me sentei às apalpadelas. Na noite vai-se sentindo a aproximação das pessoas e dos vizinhos de viagem. Adivinham-se vultos e imaginam-se faces, cores, sorrisos... mas de facto não se vê nada. Com rapidez, a carruagem vai enchendo-se de pessoas e bagagens de todos os tipos e por vezes tem-se melhor noção disso quando alguém já habituado a estas andanças acende a sua lanterna. Reparo que o vidro da minha janela está partido e já não existe. Sinto que isso vai marcar definitivamente a viagem, e por ela pode contemplar-se um céu estrelado que profecia uma jornada tranquila.
Depois de uma hora dentro do comboio sempre com gente a entrar e deste estar suficientemente cheio (para os olhos de um ocidental, suficientemente cheio já teria sido há muitos minutos atrás), finalmente ouve-se o esperado apito de partida e, com os solavancos iniciais do arranque, os espíritos alegram-se por já estarmos a caminho.
Seguem-se 11 horas de histórias, situações impensáveis, de chuvas de milho em cima das nossas cabeças, de mamãs a mudarem fraldas com uma agilidade notável, de formigas a caírem-nos em cima provenientes das cargas que vão nas prateleiras superiores, de trocas de palavras macuas que ia pedindo que traduzissem (gritava zangada uma mulher da gare de uma estação para um dos passageiros que lhe pedia para mostrar o que vendia quando o comboio já partia: " Cê, cê...!! É maluco!! Deve capinar! Deve capinar muito!!")...
As estações ou apeadeiros estão sempre abarrotados de pessoas de todas as idades que dependem dos miseráveis trocos resultantes da venda dramática de alguma coisa a alguém que vai no comboio. O facto de conseguirem vender ou não vai marcar o seu dia de barriga cheia ou vazia. Há esforço, suor, todo o empenho por muito pouco. Os miúdos correm angustiados ao lado do comboio, descalços e por cima das pedras, na iminência de ficarem sem produto que já subiu para o comboio e sem dinheiro que ainda não lhes foi pago. Sofre-se muito, só de ver.
E depois tudo continua, naquele ritmo lento até à próxima paragem, pelo meio de montes místicos (a geologia desta zona é única no mundo), de cheiros novos (pelo menos quatro cheiros nunca tinham passado antes pelo meu nariz!), já com os olhos secos do vento e do pó que atravessam a janela desvidraçada a bater na face e com o rabo quadrado pela escassez de coisas moles que o aliviem, mas de sorriso interior por se estar no Niassa, conhecida por Província esquecida, e neste Moçambique que tanto nos dá.
Muito bem conseguido este texto...parabéns ao Francisco Campos!!!
ResponderEliminarConcordo, estrela! :)
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