domingo, 28 de novembro de 2010

[vozes amadurecidas] incondicionalidades


Natureza morta com medicamentos para a lepra, telemóvel, buganvília, vacinas do kit da Unicef e balança suspensa.
(Palhota-Posto de Saúde, Moneia, Zambézia)

Quando regressei de Moçambique, a mãe de um menino perguntou-me como tinha sido e se tinha gostado da estadia. Apesar de ter ido no verão, a altura do ano em que os meninos estão menos doentes e apesar de ter pedido a uma colega para me ficar a substituir, foram muitas as mães que me telefonaram para o fim do mundo por pequenas intercorrências porque, segundo elas, precisavam de ouvir a minha voz para se tranquilizarem. Não foi fácil, disseram algumas: saber-me longe, sem poder acudir aos seus meninos se fosse necessário.

Quanto a mim, atendi sempre o telefone. Talvez pudesse não o ter feito, mas sei que tenho responsabilidades. Não gosto de alimentar dependências, mas também não sei fazer psicoterapia e mudar personalidades. E como autonomizar quem ainda não tem auto-confiança e está a dar os primeiros passos juntamente com os filhos? E quem sou eu para dizer que é patológico querer falar com alguém que se conhece e em quem se tem confiança quando se tem um problema? De qualquer modo também não tinha ido para fugir de nada nem de ninguém. Tinha ido porque sentia que rebentava de saudades. Não fazia sentido deixar nada para trás.

Mas, roaming à parte, para mim também não foi fácil atender o telefone... Num hospital no meio do mato onde há crianças desnutridas e com doenças gravíssimas, onde morre gente todos os dias, onde faltam recursos humanos e humanidades, onde faltam medicamentos, material e boas-vontades, não é totalmente imediato  responder às angústias de uma mãe de forma empática quando o drama é que tossiu durante a noite e tem o nariz entupido. É violento atender o telefone e entrar de repente em "modo de civilização" quando se está a milhares de quilómetros a lutar com todas as nossas forças para fazer alguma coisa em "modo de fim-do-mundo".

E perguntava-me essa mãe se não tinha sido forte demais para mim assistir, tantas vezes impotente, à miséria das pessoas... Ao que respondi que certamente tinha tido alguns dias maus. E um ou dois dias horríveis também. Mas que o resto compensava. Sobretudo o exemplo de amor incondicional dos Macuas pela família. E que chegava a ser comovente a forma como aquele povo cuidava dos seus filhos e os protegia. Que famílias inteiras eram capazes de percorrer mais de 100 km a pé para levar uma criança doente ao hospital e ficavam por lá durante o tempo que fosse necessário enquanto durasse o tratamento, arriscando-se a perder toda a colheita desse ano por falta de trabalho no campo. Que mesmo que tivessem oito, dez filhos sofriam e dedicavam-se da mesma maneira. E contei-lhe que os Macuas, quando queriam ver se uma pessoa merecia a sua confiança, mandavam sempre primeiro uma criança ter com ela e, dependendo da forma como tratava a criança, assim concluiam se era alguém que merecia ou não o seu respeito. Que era um povo muito místico, muito alegre e muito afável...

A mãe olhava para mim, meia embevecida, meia incrédula, enquanto eu falava com o brilho no olhar que me caracteriza quando falo deste povo e deste país que me encanta. Não costumo falar disto com os doentes e era a primeira vez que falava sobre Moçambique com ela, mas depois destas frases respondeu-me:
- A Doutora não consegue mesmo ver o lado da miséria e da pobreza, pois não? É como se estivesse perdidamente apaixonada...

E é verdade. É mesmo verdade. Estou irremediavelmente apaixonada. Não é que não veja o lado da pobreza e da miséria. Eu vejo. Como vejo... E sofro com ele. Mas é como se esse lado quase não tivesse impacto em mim. 

2 comentários:

  1. Cada vez que leio um dos teus posts, especialmente aqueles que se sente serem escritos com a alma, gosto um bocadinho mais de ti. É um privilégio estar por perto, partilhar (mesmo que em discurso indirecto) esses momentos, ser teu amigo. E este, como outros no passado, acertou-me em cheio, a mim que tento sem grande sucesso ajustar-me ao meu recém-adquirido défice (-Quase um oxímoro, hmm, já viste? G'anda pinta.) de incondicionalidade.
    Kudos.

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  2. Com esta tua partilha encontrei finalmente a resposta à pergunta que tanto me atormentava.
    Obrigada.

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