sábado, 12 de outubro de 2013

[vozes brancas*] filhos do coração? ups, cuidado!


Há tempos, na consulta, um menino de 4 anos e meio, muito desenvolto e comunicativo, brincava comigo enquanto a mãe se demorava na casa de banho com a mais nova, que estava no treino da fralda. Conheci-o quando estava prestes a fazer dois anos, acabado de chegar a casa dos pais adotivos, que se apressaram a levá-lo à consulta para que eu o olhasse de alto a baixo e declarasse, para todo o sempre naquela família: "Temos homem! Que filho mais querido... Acho mesmo que saiu o Euromilhões a cada um!"

Os pais suspiraram de alívio. Mais tarde confidenciaram-me que apenas o sentiram filho de verdade depois da consulta. Fiquei contente mas chocada ao mesmo tempo. Eu ainda não tinha conhecido o baby-de-mulata e estava muito mais longe destas realidades e dos sentimentos que vêm devagarinho. Só depois percebi que os caminhos que levam da infertilidade à adoção não são lineares nem isentos de pedregulhos. Também demorei muito tempo a perceber que a adoção não é para todos, e que, para muitos casais inférteis, a ideia de adotar uma criança é incrivelmente perturbadora: lá bem no fundo, quase significa desistir do sonho de ser pai e mãe. Não critiquem, não julguem, talvez seja preciso passar pela dor de não poder conceber para saber o que se faria num caso destes.

Mas avancemos, que este menino estava ali mesmo na minha sala de consulta e brincava com um pato e dois patinhos pequeninos de cores diferentes. Sensível às questões da cor da pele, perguntou-me:

- Estes patinhos são filhos da barriga ou também são filhos do coração?
- Não sei - respondi - temos de perguntar à mãe pata. Mas o que é que tu achas?
- Eu acho que são filhos do coração.
- Pois, eu também acho. E ela gosta dos patinhos?
- Sim, gosta muito.
- E se fossem da barriga, também gostava?
- Sim. No outro dia vi uma senhora muito gorda e a minha mãe disse que ela tinha ficado assim porque tinha tido um bebé na barriga.
- Pois, os bebés fazem a barriga crescer muito para conseguirem caber lá dentro.

Nisto, ficou de repente com um brilho no olhar, como se tivesse tido, nesse momento, uma revelação. E a mãe regressou à consulta, mesmo a tempo de o ouvir afirmar:
- Ah, por isso é que a minha mãe ficou com as maminhas tão grandes. Foi para eu caber no coração dela!

Engoli em seco, esverdeada pelo comentário... Felizmente a mãe achou graça e riu-se da saída do filho.

Seguiu-se uma longa explicação à criança. E uma pequena explicação à mãe: cuidado com as metáforas! Antes dos seis ou sete anos as crianças não têm capacidade de abstração suficiente para compreenderem a diferença entre sentido literal e sentidos figurados. Fica aqui o aviso. E esta ficou para a história!

* Timbre da voz das crianças antes da puberdade.

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