domingo, 27 de junho de 2010

[welcome to mozambique] a tristeza só não espreita a cada esquina, porque vive em espaço aberto

(Continuando esta história...) Está na hora da missa!





De caminho somos interceptadas por um professor de uma das turmas que hoje fará a Primeira Comunhão, que se aproxima trazendo pela mão um menino com ar triste, que aparenta uns 8 ou 9 anos.
– Quando estava a jogar futebol, há uma hora, caiu para o chão e ficou estendido. Só acordou depois. Faço várias perguntas ao professor, mas não o viu cair. Ninguém sabe, portanto, se tropeçou e bateu com a cabeça, perdendo a consciência ou se desmaiou. A Irmã Lurdes põe-lhe a mão na testa.
– Está fresco... E não tem má cara...

Um exame neurológico sumário não revela alterações, deve ter sido uma breve perda de conhecimento depois do traumatismo craniano, penso. Como se tivéssemos telepatia, a Irmã leva a mão à carteira para ir buscar os medicamentos que sempre a acompanham:
– Vai tomar este comprimido de paracetamol e vai-se deitar agora. Antes de irmos venham-nos dizer como está.
– Obrigado, Irmã.

Continuamos para a missa, pois já se ouvem os cânticos da entrada. Batuques e vozes. Batuques e vozes apenas. Fico sempre surpreendida de como conseguem criar uma harmonia tão bonita e envolvente.

Depois da missa, que durou mais de duas horas sem que se desse pelo tempo passar, somos recebidos no pwarrow do régulo, a sala das visitas importantes da aldeia, para um almoço que cheira deliciosamente... Oferecem-me água para lavar as mãos, mas recuso delicadamente (esta água é um líquido tudo menos incolor e inodoro, com alto teor de matéria orgânica em suspensão, em que quase julgo ver vibriões da cólera e schistosomas a proliferar numa algazarra primaveril). Acabo por limpar disfarçadamente as mãos com um toalhete Dodot® e sentar-me à mesa. A Irmã Lurdes tinha-se compadecido de mim no meu primeiro dia e tirou da carteira um conjunto de talheres. Mas avisou-me logo que seria uma vez sem exemplo, porque em Moçambique não sejas romano... e não devemos ter modos muito diferentes dos das pessoas que nos recebem. Concordei com um gesto, mas todos sorriram do meu alívio de não ter de comer com “os talheres que Deus nos deu”. Galinha com milho e feijão, uma iguaria apenas reservada para os dias de festa brava.

Depois de almoço, quando já nem nos lembrávamos de que tínhamos pedido antes da missa para fazer café, a mamã Teresa aparece com um café balsâmico e fumegante, a uma temperatura que me tranquiliza completamente quanto à ameaça infecciosa da água.
– Parece que revivi... – exclama a Martine ao primeiro golo. Já parece completamente refeita da noite em claro... E a conversa corre animada sobre as actividades da comunidade.

De súbito, somos chamados cá fora. O professor do menino, que nos abordara antes da missa diz-nos:
– Sabem, Irmãs, o menino que mostrei há bocado...
– Sim?
– Já despediu.

Não compreendo o que diz, entendo as palavras, não o sentido, mas a Irmã Lurdes parece ter tido um choque:
– Como?!
– Já despediu, Irmãs, perdeu a vida...

Que horror! Meu Deus, como é que é possível?! Mas nem sequer parecia doente... De tal forma não fiquei preocupada com ele que já só vagamente me lembrava que tinha de perguntar pelo menino antes de ir... Olhamo-nos consternadas. Eu certamente mais triste do que a Irmã, pois é o meu primeiro dia, no fundo o meu primeiro caso clínico. A face triste do menino vem-me à memória com uma angústia brutal.

– Nem posso acreditar, meu Deus... tão de repente... e logo uma criança.
Ocorre-me então uma pequena luz de esperança:
– E se estiver só desmaiado outra vez? Alguém lhe viu o pulso, viram se respirava?

O professor acena negativamente.
– Onde é que ele está? Vamos lá agora mesmo, decidiu a Irmã Lurdes.
– Mas é longe, Irmãs, ele está em casa.
– Vamos embora!

Com o coração completamente aos pulos lá sigo o professor, atrás da Irmã Lurdes e do Senhor Rafael.
– Vamos fazer o que pudermos. Pode ser que esteja vivo, murmura a Irmã.

Mas eu não me consigo distanciar desta forma da situação. Sinto-me inteiramente responsável por esta morte. Avançamos hors piste, a corta-mato. Não há sequer um caminho por onde possa passar uma bicicleta. Seguimos por um terreno arenoso e acidentado, onde os sapatos se afundam, impedindo-nos de avançar rapidamente. Como é que as pessoas não se perdem se não há ruas ou caminhos e muito poucos pontos de referência? De vez em quando um embondeiro, de vez em quando uma palhota, mas tudo me parece igual...

(Prometo que continua...)

2 comentários:

  1. AH!!! Então??? Anseio pelo fim. Espero que a tragédia não se verifique, embora tema que sim.
    Beijo, Ana

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  2. Vai tudo correr bem! Moçambique é uma terra abençoada...

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