Este ano em Portugal não há Natal: o Espírito Santo faliu, o José está preso e o Jesus foi eliminado.Se calhar ainda vai tudo parar a Santa Maria, valha-nos o Natal dos Hospitais...
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
[graças e desgraças] deste portugal tadinho...
Desculpem, mas não resisti a partilhar este post quadripolar:
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
[vozes brancas] etimologias...
Para o baby-de-mulata:
- Então, meu querido, sabes onde vais com a escola amanhã?
- Vou ao planetário... Plantar o quê, mãe? Vamos lá plantar flores?
...
No dia 7 de Dezembro:
- Mamã, hoje é domingo?
- Sim, filho...
- Então amanhã é dia de escola?
- Não, meu amor, amanhã é feriado.
- Vai estar frio? Mas eu visto o casaco, prometo!
...
Isto promete! E o que se perde em propriedade vocabular, ganha-se em consciência fonológica, benza-o Deus, que lá ouvido não lhe falta!
- Então, meu querido, sabes onde vais com a escola amanhã?
- Vou ao planetário... Plantar o quê, mãe? Vamos lá plantar flores?
...
No dia 7 de Dezembro:
- Mamã, hoje é domingo?
- Sim, filho...
- Então amanhã é dia de escola?
- Não, meu amor, amanhã é feriado.
- Vai estar frio? Mas eu visto o casaco, prometo!
...
Isto promete! E o que se perde em propriedade vocabular, ganha-se em consciência fonológica, benza-o Deus, que lá ouvido não lhe falta!
[...and the season began] em repeat
E a quadra de Natal começou! Cá em casa treinamos afincadamente para a festa de Natal do colégio do baby-de-mulata, e cantamos ainda esta música que vos deixo, provavelmente a melhor canção de Natal infantil escrita nos últimos anos!
Ensinem aos vossos filhos, que a vida é simples, e o Natal também!
Ensinem aos vossos filhos, que a vida é simples, e o Natal também!
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
[outras palavras] frase da semana!
terça-feira, 9 de dezembro de 2014
[outras palavras] o lugar das birras é no birrão!
Em criança atirava-me para o chão quando me contrariavam a vontade infantil. Fazia birras. Em qualquer lugar. Terminadas, normalmente, com um açoite e mais lágrimas. Era o método pacifista de antigamente: a palmada da paz.
Entretanto passaram-se 40 anos e deparo-me com uma criança de 18 meses a pôr-se em bicos dos pés, a crescer literalmente para mim, a encostar-me à parede para poder passar. Mal termino de proferir um Não! e já a miúda está a espumar da boca, de punhos cerrados e com um olhar, primeiro suplicante, depois raivoso. Sou a mãe carrasco. E ela não é menos do que um Gremlin, dos maus.
– Não dê importância! Senão, está tramada – Palavras da pediatra. Conselhos das amigas mães.
Regras dos livros com títulos que as mães querem ouvir: O Grande Livro dos Medos e Birras; Grandes Birras, Pequenos Truques; As crianças francesas não fazem birras. – A sério? Bem, talvez possa admitir que um Laissez faire, laissez passer! dito por uma criança francesa à sua mamã não envergonhe ninguém. E conforta-me saber que terei sempre Paris.
Ninguém gosta de fitas, caprichos, comportamentos exacerbados. Nos outros, claro. Respira-se fundo, conta-se até dez, argumenta-se, depois ameaça-se e, finalmente, castiga-se.
– Ignore! Tenha paciência! – Errado. Porque ninguém ignora; finge que ignora. Finge, impacientemente, que tem toda a paciência do mundo. Porque para a criança aprender a lidar com as suas frustrações, os pais têm de engolir as suas verdadeiras reações. Porque as crianças aprendem com o exemplo dos pais que, convenhamos, são exemplares quando fazem de conta. São dos melhores artistas que tenho observado.
No meu caso estou a iniciar carreira como cantora. Nunca me deu para cantar a meio de uma discussão. Só que as birras dão mesmo cabo da sanidade mental dos pais. Por isso, dei comigo a desatar a cantar, um destes dias, quando a minha filha se atirou para o chão porque não a deixei comer um parafuso. A um prego eu até poderia ter olhado para o lado mas o parafuso soltou-me as cordas vocais.
Birras são como vilãs / Tombos indiscretos no alcatrão sujo / Rasgando os nervos das mamãs / Deitados nas Birras, alheios a tudo / Olhos lacrimejantes / Pensamentos danados.
É mauzinho mas é sincero. E funcionou pois a miúda ficou sem pio. Penso que, instintivamente, sentiu que era melhor ter cuidado comigo. Percebo-a, há dias em que penso o mesmo sobre a minha pessoa.
Quanto a ela, gosto de pensar que a miúda é expressiva. Que manifesta um forte desejo de independência em construção. Quer trocar a fralda em pé, que estando empapada em cocó, me facilita imenso a vida. Quer comer com as mãos, o que não me incomodava se não fosse puré. Não quer pôr o cinto de segurança, eu obrigo e ela tira as alças assim que arranco. Quer sempre mais uma colher de xarope e, se a deixasse, auto-medicava-se desde os 2 anos. Ah! E quer pintar as paredes, que são minhas, com os lápis de cera, que são dela. A pro-atividade impera nas crianças.
Honestamente, invejo-a. E que caiam os dentes a quem negar esta evidência: todos os adultos mentalmente saudáveis, pais ou não, invejam as birras infantis. Porque também eles, em crianças, foram lesados nas suas vontades e impedidos de reclamar, ripostar, reagir.
E como se não bastasse terem sido obrigados a desistir dos seus caprichos de infância, ainda lhes é exigido que se comportem como adultos todos os dias do resto da sua vida! Uma crueldade. Felizmente, existem os batoteiros. Que são a maioria.
Para manterem a sanidade mental, adultos e crianças, têm mesmo de despejar as vontades contrariadas. Assim, a única solução que encontro é arranjar um birrão. É como ir pôr o lixo, à noite, na rua. Todos os dias temos de o fazer, atar o saco, carregá-lo e depositá-lo no lixão. Porque se acumularmos muitas birras ficamos nauseabundos. Limpeza é sobrevivência.
Deixemos pois as crianças fazerem as suas birras. Mas à noite, na rotina do soninho, depois de lavarem os dentes devemos ensiná-las a irem pôr as birras no birrão.
Já escrevi ao Pai Natal a pedir um birrão cá para casa, tamanho familiar. Estou em pulgas.
Por Sofia Anjos, aqui.
Entretanto passaram-se 40 anos e deparo-me com uma criança de 18 meses a pôr-se em bicos dos pés, a crescer literalmente para mim, a encostar-me à parede para poder passar. Mal termino de proferir um Não! e já a miúda está a espumar da boca, de punhos cerrados e com um olhar, primeiro suplicante, depois raivoso. Sou a mãe carrasco. E ela não é menos do que um Gremlin, dos maus.
– Não dê importância! Senão, está tramada – Palavras da pediatra. Conselhos das amigas mães.
Regras dos livros com títulos que as mães querem ouvir: O Grande Livro dos Medos e Birras; Grandes Birras, Pequenos Truques; As crianças francesas não fazem birras. – A sério? Bem, talvez possa admitir que um Laissez faire, laissez passer! dito por uma criança francesa à sua mamã não envergonhe ninguém. E conforta-me saber que terei sempre Paris.
Ninguém gosta de fitas, caprichos, comportamentos exacerbados. Nos outros, claro. Respira-se fundo, conta-se até dez, argumenta-se, depois ameaça-se e, finalmente, castiga-se.
– Ignore! Tenha paciência! – Errado. Porque ninguém ignora; finge que ignora. Finge, impacientemente, que tem toda a paciência do mundo. Porque para a criança aprender a lidar com as suas frustrações, os pais têm de engolir as suas verdadeiras reações. Porque as crianças aprendem com o exemplo dos pais que, convenhamos, são exemplares quando fazem de conta. São dos melhores artistas que tenho observado.
No meu caso estou a iniciar carreira como cantora. Nunca me deu para cantar a meio de uma discussão. Só que as birras dão mesmo cabo da sanidade mental dos pais. Por isso, dei comigo a desatar a cantar, um destes dias, quando a minha filha se atirou para o chão porque não a deixei comer um parafuso. A um prego eu até poderia ter olhado para o lado mas o parafuso soltou-me as cordas vocais.
Birras são como vilãs / Tombos indiscretos no alcatrão sujo / Rasgando os nervos das mamãs / Deitados nas Birras, alheios a tudo / Olhos lacrimejantes / Pensamentos danados.
É mauzinho mas é sincero. E funcionou pois a miúda ficou sem pio. Penso que, instintivamente, sentiu que era melhor ter cuidado comigo. Percebo-a, há dias em que penso o mesmo sobre a minha pessoa.
Quanto a ela, gosto de pensar que a miúda é expressiva. Que manifesta um forte desejo de independência em construção. Quer trocar a fralda em pé, que estando empapada em cocó, me facilita imenso a vida. Quer comer com as mãos, o que não me incomodava se não fosse puré. Não quer pôr o cinto de segurança, eu obrigo e ela tira as alças assim que arranco. Quer sempre mais uma colher de xarope e, se a deixasse, auto-medicava-se desde os 2 anos. Ah! E quer pintar as paredes, que são minhas, com os lápis de cera, que são dela. A pro-atividade impera nas crianças.
Honestamente, invejo-a. E que caiam os dentes a quem negar esta evidência: todos os adultos mentalmente saudáveis, pais ou não, invejam as birras infantis. Porque também eles, em crianças, foram lesados nas suas vontades e impedidos de reclamar, ripostar, reagir.
E como se não bastasse terem sido obrigados a desistir dos seus caprichos de infância, ainda lhes é exigido que se comportem como adultos todos os dias do resto da sua vida! Uma crueldade. Felizmente, existem os batoteiros. Que são a maioria.
Para manterem a sanidade mental, adultos e crianças, têm mesmo de despejar as vontades contrariadas. Assim, a única solução que encontro é arranjar um birrão. É como ir pôr o lixo, à noite, na rua. Todos os dias temos de o fazer, atar o saco, carregá-lo e depositá-lo no lixão. Porque se acumularmos muitas birras ficamos nauseabundos. Limpeza é sobrevivência.
Deixemos pois as crianças fazerem as suas birras. Mas à noite, na rotina do soninho, depois de lavarem os dentes devemos ensiná-las a irem pôr as birras no birrão.
Já escrevi ao Pai Natal a pedir um birrão cá para casa, tamanho familiar. Estou em pulgas.
Por Sofia Anjos, aqui.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
[vozes brancas*] a descoberta do sexo
Há dias, na consulta de rotina de uma menina de dois anos e meio, já na reta final, depois do anúncio dos percentis, depois do meu parecer sobre o excelente desenvolvimento psicomotor da menina e depois de termos abordado, a pedido dos pais, temas tão díspares como o treino do bacio e a prevenção da toxicodependência (true story...), faço a derradeira pergunta: "E têm mais alguma preocupação com ela?" Ao que a mãe faz a pergunta que decerto lhe queimava a língua:
- Doutora, é normal que ela já se aperceba com esta idade da anatomia dos pais?
- Claro, a descoberta do sexo começa agora, fica mais consolidada aos três anos, mas começa mais cedo. Até antes.
- É que no outro dia ela foi espreitar o pai a fazer chichi na sanita. Não achámos mal nenhum porque ela tem de aprender e anda interessada no treino da fralda, portanto achámos que era um bom exemplo a dar. Mas umas horas depois dei com ela a rir sozinha às gargalhadas. Até me assustei, confesso. Ela ria-se do nada e até me dava ideia de que não estava bem. Mas depois perguntei-lhe: "Filha, de que é que te estás a rir?" E ela respondeu-me, divertidíssima, e assim um bocado a cochichar: "Mãe, o pai tem uma cauda!"
* Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade...
- Doutora, é normal que ela já se aperceba com esta idade da anatomia dos pais?
- Claro, a descoberta do sexo começa agora, fica mais consolidada aos três anos, mas começa mais cedo. Até antes.
- É que no outro dia ela foi espreitar o pai a fazer chichi na sanita. Não achámos mal nenhum porque ela tem de aprender e anda interessada no treino da fralda, portanto achámos que era um bom exemplo a dar. Mas umas horas depois dei com ela a rir sozinha às gargalhadas. Até me assustei, confesso. Ela ria-se do nada e até me dava ideia de que não estava bem. Mas depois perguntei-lhe: "Filha, de que é que te estás a rir?" E ela respondeu-me, divertidíssima, e assim um bocado a cochichar: "Mãe, o pai tem uma cauda!"
* Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade...
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
[músicas para o baby-de-mulata] let the season begin
Que comecem as festas! E que, com este pretexto, as mais belas canções de embalar de Natal voltem ao leito do baby-de-mulata e à hora do adormecer que é só nossa...
[músicas para o baby-de-mulata] dá-me uma gotinha de água...
Nestes dias temos cantado Cantares Alentejanos dia e noite. Como este aqui acima e como o "Olha o Passarinho", ou o "Eu tinha Quatro Patinhos", que já partilhei aqui convosco. Foi um excelente timing, o da elevação do Cante Alentejano a Património da Humanidade. Mais uns dias e já não teria o mesmo tempo de antena, digo eu. Antes que comecem os cânticos de Natal, cantemos Alentejo!
sábado, 29 de novembro de 2014
[as melhores do serviço de urgência] diagnósticos brilhantes!
Serviço de Urgência, quinta feira passada. São 16:00 num dos dias mais movimentados do ano. Há trinta crianças que aguardam ser vistas, várias delas classificadas como urgentes ou muito urgentes. Temos duas horas e meia de espera para os não urgentes. Eu estou quase pelos cabelos. Não almocei, que não tive coragem de deixar a equipa mas estou quase a capitular. Decido que vou ver só mais um menino não urgente e depois vou mesmo ter de ir comer qualquer coisa...
Chamo o menino que segue. Tem quatro anos e entra-me no gabinete ostentando, orgulhoso, a sua pulseirinha verde, que para nós quer dizer "Não Urgente", mas que para ele quer dizer "Spooorting!". Olha para mim, tira-me as medidas e pergunta:
- Tu és médica do cérebro?
- Não, meu querido, sou médica de meninos. Mas porquê?
- É que eu preciso muito de uma médica do cérebro.
- Ah, está bem, daqui a nada já vou ali chamá-la - franzo o sobrolho e troco um olhar com a mãe, tão espantada como eu: o relatório de triagem dizia apenas que o menino vinha por ardor a urinar -, mas o que é que se passa contigo?
- É que o meu cérebro deve estar baralhado. Eu sinto vontade de fazer chichi a toda a hora, mas não sai nada da minha pilinha. E quando sai chichi, arde-me!
Eu e a mãe íamos rebentando a rir, mas contivemo-nos!
- Ah, olha, querido, eu acho que é o teu chichi que deve ter um micróbio e isso que deve estar a baralhar o teu cérebro.
- Ah...
- Vamos fazer uma análise ao teu chichi.
- Uma quê?
- Uma análise.
- Vão ver o meu chichi ao microscópio?
- Isso mesmo!
- Também posso ver?
- Claro! Eu depois mostro-te uma fotografia do chichi ao microscópio.
- Boa! Vamos então!
[Que maravilha! Vai longe, este miúdo!]
Chamo o menino que segue. Tem quatro anos e entra-me no gabinete ostentando, orgulhoso, a sua pulseirinha verde, que para nós quer dizer "Não Urgente", mas que para ele quer dizer "Spooorting!". Olha para mim, tira-me as medidas e pergunta:
- Tu és médica do cérebro?
- Não, meu querido, sou médica de meninos. Mas porquê?
- É que eu preciso muito de uma médica do cérebro.
- Ah, está bem, daqui a nada já vou ali chamá-la - franzo o sobrolho e troco um olhar com a mãe, tão espantada como eu: o relatório de triagem dizia apenas que o menino vinha por ardor a urinar -, mas o que é que se passa contigo?
- É que o meu cérebro deve estar baralhado. Eu sinto vontade de fazer chichi a toda a hora, mas não sai nada da minha pilinha. E quando sai chichi, arde-me!
Eu e a mãe íamos rebentando a rir, mas contivemo-nos!
- Ah, olha, querido, eu acho que é o teu chichi que deve ter um micróbio e isso que deve estar a baralhar o teu cérebro.
- Ah...
- Vamos fazer uma análise ao teu chichi.
- Uma quê?
- Uma análise.
- Vão ver o meu chichi ao microscópio?
- Isso mesmo!
- Também posso ver?
- Claro! Eu depois mostro-te uma fotografia do chichi ao microscópio.
- Boa! Vamos então!
[Que maravilha! Vai longe, este miúdo!]
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
[vozes brancas] baby m. no seu melhor
Esta tarde, o baby-de-mulata brincava com baby M., o seu primo quase-gémeo, ambos agora com três anos. Montámos uma pista de comboios mais ou menos como aquela ali acima, com uma envolvência de savana, ambulâncias, acidentes, descarrilamentos e salvamentos heroicos... E enquanto o baby-de-mulata salvava de helicóptero um tigre atropelado pelo camião dos bombeiros, baby M. continuava, pacatamente, a fazer o comboio andar pela pista, transportando o acidentado camião dos bombeiros para a oficina. Eu assistia a tudo, tentando interferir o menos possível naquela fantasia que era dos dois, quando oiço baby M. comentar de si para os seus botões: "Nunca mais chego à oficina, tenho a impressão de que estou a andar às voltas..."
[as melhores do serviço de urgência] ouvido por aí...
Relatórios Médicos do Serviço de Urgência
(Daqui...)
Para os que não compreendem bem o Inglês, aqui vai, salvo melhor tradução...
1. A doente não tinha arrepios ou calafrios, mas o marido descreve-a como escaldante na cama na noite anterior... [Demasiada informação clínica, diria eu...]
2. O exame dos genitais revelou que o senhor era circo cisado. [Pobrezinho, cortado no circo... Mas em Inglês resulta melhor, que se depreende que o senhor era de tamanho circense...]
3. Visto que a doente não consegue engravidar com o marido, pensei que poderias querer vê-la. [Em Inglês também resulta melhor, lamento...]
4. A doente apresentava-se chorosa, lamentando-se constantemente. Também parecia estar deprimida. [Faz-me lembrar a senhora que tinha uma com estenose da válvula aórtica e insuficiência cardíaca. E também tinha um sopro no coração.]
5. A doente tem estado deprimida desde que começou a ser seguida por mim, em 1993. [O clássico paradigma do "não és tu, sou eu."]
6. Relatório do estado do doente na alta: Vivo, contra parecer médico. [Não se faz a ninguém! Anda um médico aqui a esfalfar-se, a não dormir, a dar tudo por tudo e para depois o doente não cumprir as prescrições...]
7. Um doente decrépito aparentemente saudável de 69 anos, mentalmente alerta, mas demente. [Faz-me lembrar uma fantástica tirada minha, dos meus tempos de faculdade: "Há quanto tempo é que o senhor tem falta de memória?" "Ai, menina, não me lembro...]
8. O doente recusou autópsia. [Mas resolvi dar-lhe tempo para poder repensar a decisão...]
9. O doente não tem qualquer história prévia de suicídio. [Nem o próprio médico, aparentemente...]
10. O doente deixou os glóbulos brancos noutro hospital. [E o médico, onde teria deixado a cabeça?]
11. Os antecedente pessoais da doente eram absolutamente irrelevantes, com apenas um aumento ponderal de 20 quilos nos últimos 3 dias. [Talvez quisesse dizer irrelefantes...]
12. A doente comeu waffles ao pequeno almoço e anorexia ao almoço. [Qual deles o mais indigesto...]
13. Entre si e mim, temos de ser capazes de fazer esta senhora engravidar. [Idem.]
14. Ao segundo dia, o joelho estava melhor e, no terceiro dia, tinha desaparecido. [Um clássico "Vanishing knee syndrome"...]
15. Ela sentia-se dormente dos pés para baixo.
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
[nomes que dizem tudo] maktub*
No outro dia, apesar de todas as medidas não farmacológicas instituídas desde o início, tive de me render à evidência: a menina precisava de medicação. Estava a fraquejar nos estudos e a desmotivar-se a olhos vistos. Mas nesse momento, a palavra Maktub ecoava-me nos ouvidos e assaltavam-me pruridos onomásticos... Para a desgraça não ser completa e não deixar o destino rir-se de ninguém, não lhe prescrevi Ritalina, mas uma alternativa e em genérico... A menina está melhor. Os pais estão aliviados...
* Expressão árabe, que significa "assim estava escrito".
sábado, 22 de novembro de 2014
[a minha vida dava um filme catástrofe] os meus dois pés esquerdos
Quem se lembra do grande programa do Herman, "Casino Royal"? Uma das muitas personagens encarnadas pelo Herman era a genial Dona Gradívia Pépracova. Nome que desde hoje é o meu segundo nome. Expliquem-me como raio é que se formam buracos de propósito no momento em que passo num qualquer e inocente local, com o exclusivo intuito de me fazer cair neles?
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
[as melhores do serviço de urgência] para (re)animar
Ainda não me saíram da cabeça as palavras de uma mãe no sábado passado. Eu estava a ver o filho dela, que estava com dificuldade respiratória e acabara de o mandar fazer um segundo tratamento com broncodilatadores, quando me vieram chamar de urgência a uma enfermaria. Uma criança que esteve em convusão mais de meia hora, seguida de paragem respiratória e uma reanimação difícil... Muitas lágrimas dos pais por susto, fadiga e dificuldade em gerir mais uma situação inesperada num filho que sempre fora doente, mas que nunca estivera tão perto da morte...
Por fim, desci novamente para a urgência. À minha espera estava ainda o menino que eu tinha visto com dificuldade respiratória. Deu-me um aperto no coração... Com a correria para a enfermaria, o caso não tinha sido passado a ninguém...
Mas nestas circunstâncias os pais costumam "desenrascar-se": perguntam a qualquer outro colega pelo médico que o estava a ver, ele apercebe-se que o colega foi chamado a uma reanimação e assumem o caso. A equipa de enfermagem também costuma dar uma ajuda. Mas desta vez, pelos vistos, tal não tinha acontecido...
Pedi desculpa à mãe pela demora e disse-lhe que podia ter pedido a outro médico para ver o filho. Ao que ela me respondeu: "Não se preocupe, Doutora! Eu preferi que o meu filho fosse visto por si. Eu percebi que foi chamada a uma situação complicada e fiquei por aqui a rezar pelo menino lá de cima. Pedi muito a Deus por ele e por si. O meu que esperava o tempo que fosse preciso, mas que se salvasse o menino! Ele ficou bem?"
- Ficou, sim, obrigada por ter rezado por nós...
A sério que ainda estou comovida...
Por fim, desci novamente para a urgência. À minha espera estava ainda o menino que eu tinha visto com dificuldade respiratória. Deu-me um aperto no coração... Com a correria para a enfermaria, o caso não tinha sido passado a ninguém...
Mas nestas circunstâncias os pais costumam "desenrascar-se": perguntam a qualquer outro colega pelo médico que o estava a ver, ele apercebe-se que o colega foi chamado a uma reanimação e assumem o caso. A equipa de enfermagem também costuma dar uma ajuda. Mas desta vez, pelos vistos, tal não tinha acontecido...
Pedi desculpa à mãe pela demora e disse-lhe que podia ter pedido a outro médico para ver o filho. Ao que ela me respondeu: "Não se preocupe, Doutora! Eu preferi que o meu filho fosse visto por si. Eu percebi que foi chamada a uma situação complicada e fiquei por aqui a rezar pelo menino lá de cima. Pedi muito a Deus por ele e por si. O meu que esperava o tempo que fosse preciso, mas que se salvasse o menino! Ele ficou bem?"
- Ficou, sim, obrigada por ter rezado por nós...
A sério que ainda estou comovida...
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
[as melhores do serviço de urgência] foi por um triz!
Serviço de Urgência, a noite avança madrugada adentro. No ecrã do computador aparece um nome e uma idade: lactente de três meses e, embora para o caso pouco interesse, do sexo feminino. Imagino-a na chegada, vestida de rosa carregado das botinhas à touca.
Sua mãe entra, esbaforida, no corredor da urgência, gritando: "Por favor, por favor, é uma emergência!".
Todos saímos rapidamente dos gabinetes para acudir ao corredor da triagem. A número dois da equipa, neste caso esta vossa humilde serva que se assina beijo-de-mulata, de arraiais assentes desde o início do turno no gabinete mais próximo da triagem, foi a primeira a chegar, igualmente esbaforida. A última vez que ouvi este grito, a criança tinha uma septicémia e foi direta para os cuidados intensivos, onde lutou heroicamente pela vida durante semanas.
A bebé, cuja mãe gritava com voz de juízo final, dormia tranquilamente o sono dos justos. "O que se passa, mamã?", perguntamos com calma, habituados a estas andanças. A mãe, vendo-me de estetoscópio ao pescoço, ignorou olimpicamente toda uma equipa de enfermagem que a rodeava em seu auxílio e declarou-me dramaticamente: "Doutora, a menina tem um cabelo MEU enrolado no dedo! Já lá deve estar há uns três dias e a ponta do dedo está a ficar inchada!" (Suspiro... Controla-te beijo-de-mulata, a vida é curta demais!) "Tenha calma, mãe, os senhores enfermeiros vão ajudá-la."
Viro costas e volto calmamente para o meu gabinete. Mais ao longe ainda oiço a mãe perguntar, enquanto o enfermeiro com uma tesourinha corta o cabelo enrolado à volta do dedinho da princesa: "Enfermeiro, acha que a médica demora a chamar? Ai que eu acho que morro! Acha que o dedo se salva?"
Mas porquê, meu Deus?
Sua mãe entra, esbaforida, no corredor da urgência, gritando: "Por favor, por favor, é uma emergência!".
Todos saímos rapidamente dos gabinetes para acudir ao corredor da triagem. A número dois da equipa, neste caso esta vossa humilde serva que se assina beijo-de-mulata, de arraiais assentes desde o início do turno no gabinete mais próximo da triagem, foi a primeira a chegar, igualmente esbaforida. A última vez que ouvi este grito, a criança tinha uma septicémia e foi direta para os cuidados intensivos, onde lutou heroicamente pela vida durante semanas.
A bebé, cuja mãe gritava com voz de juízo final, dormia tranquilamente o sono dos justos. "O que se passa, mamã?", perguntamos com calma, habituados a estas andanças. A mãe, vendo-me de estetoscópio ao pescoço, ignorou olimpicamente toda uma equipa de enfermagem que a rodeava em seu auxílio e declarou-me dramaticamente: "Doutora, a menina tem um cabelo MEU enrolado no dedo! Já lá deve estar há uns três dias e a ponta do dedo está a ficar inchada!" (Suspiro... Controla-te beijo-de-mulata, a vida é curta demais!) "Tenha calma, mãe, os senhores enfermeiros vão ajudá-la."
Viro costas e volto calmamente para o meu gabinete. Mais ao longe ainda oiço a mãe perguntar, enquanto o enfermeiro com uma tesourinha corta o cabelo enrolado à volta do dedinho da princesa: "Enfermeiro, acha que a médica demora a chamar? Ai que eu acho que morro! Acha que o dedo se salva?"
Mas porquê, meu Deus?
domingo, 26 de outubro de 2014
[vozes brancas] neologismos
Há duas semanas tive um acidente feio: ao chegar ao jardim de infância do baby, naquele local em que costumo fazer com ele a transição simbólica do modo "casa/ mãe", em que pode ser bebé, para o modo "escola/ educadora", que que tem de ser um menino crescido, escorreguei e caí com ele ao colo.
Foi um momento terrível quando percebi que ele ia bater com a cabeça no chão empedrado do pátio... Felizmente foi um traumatismo craniano sem gravidade para o lado dele, embora só o tenha deixado depois com mil recomendações à educadora e auxiliar de que se vomitasse ou ficasse mais estranho e sonolento me ligassem de imediato. Já para o meu lado a coisa correu menos bem, porque ao tentar colocar-me debaixo dele para lhe amparar a queda, o esbardalhanço foi total e torci o pé à grande e à francesa. Quase me saiu disparado e bem articulado um palavrão francês, mas já que não podia fazer nada para remediar o assunto, também de nada adiantava praguejar, por isso calei-me, abracei o baby e cobri-o de beijos, enquanto disfarçadamente lhe fazia um apressado exame neurológico.
No meio destas semanas todas fui assobiando para o ar e fazendo vida normal. O problema é que enquanto se assobia para o ar, o pé fragilizado torce mais cinquenta vezes. Por isso, em vez de melhorar fui sempre piorando, até que ontem, no Badoca Park, onde fiz questão de ir em mais um exercício africano (o baby há de querer ir comigo na minha próxima missão a Moçambique, ou eu não me chame beijo-de-mulata!), torci o pé de vez enquanto andava num caminho tipo picada africana com o baby ao colo, tentando chamar-lhe a atenção para o divertido comportamento dos macacos mais jovens
Por fim, hoje lá me tive de render à evidência. E às canadianas. E ao gelo, ao Voltaren e ao Brufen de 8/8 horas certinho.
Há pouco, D. baby-de-mulata, já deitado para a sesta, perguntou-me se podíamos ir a um concerto depois da sesta.
- Oh, filho, vai ser difícil, que a mãe mal consegue andar.
- Mas eu vou, pronto! Posso ir sozinho! E tu, se quiseres, pegas nessas cruzetas* e vais comigo!
- Quais cruzetas, baby?
- Essas... coisas... - apontando para as canadianas.
- Ah, vou de canadianas, está bem, combinado!
Três anos e já ameaça que deixa a senhora sua mãe literalmente pendurada! Isto promete!
*Cabides, no dizer do povo da Beira Alta, terra da senhora minha mãe, que cuida do baby na minha ausência.
Foi um momento terrível quando percebi que ele ia bater com a cabeça no chão empedrado do pátio... Felizmente foi um traumatismo craniano sem gravidade para o lado dele, embora só o tenha deixado depois com mil recomendações à educadora e auxiliar de que se vomitasse ou ficasse mais estranho e sonolento me ligassem de imediato. Já para o meu lado a coisa correu menos bem, porque ao tentar colocar-me debaixo dele para lhe amparar a queda, o esbardalhanço foi total e torci o pé à grande e à francesa. Quase me saiu disparado e bem articulado um palavrão francês, mas já que não podia fazer nada para remediar o assunto, também de nada adiantava praguejar, por isso calei-me, abracei o baby e cobri-o de beijos, enquanto disfarçadamente lhe fazia um apressado exame neurológico.
No meio destas semanas todas fui assobiando para o ar e fazendo vida normal. O problema é que enquanto se assobia para o ar, o pé fragilizado torce mais cinquenta vezes. Por isso, em vez de melhorar fui sempre piorando, até que ontem, no Badoca Park, onde fiz questão de ir em mais um exercício africano (o baby há de querer ir comigo na minha próxima missão a Moçambique, ou eu não me chame beijo-de-mulata!), torci o pé de vez enquanto andava num caminho tipo picada africana com o baby ao colo, tentando chamar-lhe a atenção para o divertido comportamento dos macacos mais jovens
Por fim, hoje lá me tive de render à evidência. E às canadianas. E ao gelo, ao Voltaren e ao Brufen de 8/8 horas certinho.
Há pouco, D. baby-de-mulata, já deitado para a sesta, perguntou-me se podíamos ir a um concerto depois da sesta.
- Oh, filho, vai ser difícil, que a mãe mal consegue andar.
- Mas eu vou, pronto! Posso ir sozinho! E tu, se quiseres, pegas nessas cruzetas* e vais comigo!
- Quais cruzetas, baby?
- Essas... coisas... - apontando para as canadianas.
- Ah, vou de canadianas, está bem, combinado!
Três anos e já ameaça que deixa a senhora sua mãe literalmente pendurada! Isto promete!
*Cabides, no dizer do povo da Beira Alta, terra da senhora minha mãe, que cuida do baby na minha ausência.
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
[vozes brancas] eu sempre disse que o baby era místico!
Mística infantil...
Esta semana, enquanto eu não chegava do hospital, a minha mãe foi buscar o baby à escola e levou-o ao Jardim da Estrela para se divertir no escorrega e nos baloiços e, quiçá, treinar as suas competências sociais com os companheiros de ocasião.
Por fim, eram horas de seguir para casa, mas perguntou à minha mãe, se não queria ir primeiro ao convento das irmãs Clarissas:
- Avó, tu disseste que te esqueceste lá dos teus óculos no domingo.
- Ah, é verdade, obrigada, meu querido, vamos lá.
(Um primor de responsabilidade, este meu baby! Por enquanto só ainda sabe o seu horário da escola e já consegue organizar o material de véspera. Mas conto, quando ele fizer quatro anos, alcançar o meu objetivo, que é deixar de precisar de agenda assim que ele aprenda a orientar-se num calendário, que o Alzheimer se aproxima a passos largos e sinto que vou precisar de um assistente a breve trecho. Já o estou a ver: "No próximo domingo vamos ao teatro, no sábado temos o batismo da Teresinha, na quinta-feira estás de banco.")
Por fim, já a caminho de casa, o baby perguntou à minha mãe:
- Mas avó, explica-me, qual delas é a tua irmã? É a da parede, não é?* Ou é a verdadeira**?
Eu sempre disse que o baby era místico! Desde o dia em que olhou para uma imagem de Nossa Senhora com o menino e exclamou, embevecido: "Mamã!"
Lá no convento das Clarissas olhou para o quadro de Santa Clara, descobriu semelhanças, sentiu a força do seu olhar de vários séculos e viu na santa uma irmã da senhora sua avó. Bem, há mais alternativas, eu sei: ou é místico ou isto aconteceu porque tem três anos e ainda tem dificuldade em distinguir a realidade da fantasia... Mas o tempo há de dar-me razão!
* Há um quadro enorme de Santa Clara na parede à entrada do convento.
** A madre superiora, que os recebeu em carne e osso.
sábado, 18 de outubro de 2014
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
[outras palavras] welcome to holland
Holanda...
Sobre o choque e a necessidade de aceitação de um filho com autismo ou outro tipo de deficiência... Roubado do blogue "Para falar são precisos dois".
Ter um bebé é como planear uma fabulosa viagem de férias - para a Itália! Você compra montes de guias, faz planos maravilhosos. O Coliseu. O David de Michelangelo. As gôndolas de Veneza. Você pode aprender algumas frases simples em italiano. É tudo muito excitante.
Após meses de antecipação, finalmente chega o grande dia. Você arruma as suas malas e embarca. Algumas horas depois aterra. O comissário de bordo chega e diz: - "Bem vindo à HOLANDA !"
"HOLANDA!?! " diz você - "O que quer dizer com Holanda?? Eu escolhi a Itália! Eu devia ter chegado à Itália. Toda minha vida eu sonhei em conhecer a Itália".
Mas houve uma mudança no plano de vôo. Eles aterraram na Holanda e é lá que você deve ficar.
A coisa mais importante é que eles não te levaram a um lugar horrível, desagradável, cheio de pestilência, fome e doença. É apenas um lugar diferente. Logo, você deve sair e comprar novos guias. Deve aprender uma nova linguagem. E você irá encontrar todo um novo grupo de pessoas que nunca encontrou antes. É apenas um lugar diferente. É mais baixo e menos ensolarado que a Itália. Mas, após alguns minutos, você pode respirar fundo e olhar ao redor... e começar a notar que a Holanda tem moinhos de vento, tulipas e até Rembrandts e Van Goghs.
Mas, todos que você conhece estão ocupados indo e vindo da Itália... e estão sempre comentando sobre o tempo maravilhoso que passaram lá. E por toda a sua vida você dirá : "Sim, lá era onde eu deveria estar. Era tudo o que eu tinha planeado." E a dor que isso causa nunca, nunca irá embora... porque a perda desse sonho é uma perda extremamente significativa.
Porém... se você passar a sua vida toda remoendo o fato de não ter chegado à Itália, nunca estará livre para apreciar as coisas belas e muito especiais... sobre a Holanda.
Emily Perl Knisley
domingo, 12 de outubro de 2014
[post que era para ser só um comentário] ainda as listas dos criminosos sexuais contra crianças
Obrigada por voltares, Rita! É um post brilhante e com uma excelente argumentação. Só queria acrescentar alguns pontos... Eu concordo
inteiramente contigo quanto ao facto de ser descabido publicar listas do que
quer que seja. Tu já argumentaste magistralmente
contra esse ponto. Mas a meu ver há um problema na definição de conceitos.
Mas ocasionalmente, essas pessoas interiorizam que este ato é condenado pela sociedade, podem refletir sobre isso e, sobretudo depois de terem sido condenadas por um abuso que cometeram, podem entrar em tratamento e, até certo ponto, controlar o seu impulso. Nesses talvez valha a pena investir.
A verdadeira questão é que, em criminologia em geral, e segundo a lei portuguesa em particular, os crimes de pedofilia são quaisquer crimes sexuais cometidos contra crianças ou adolescentes, pré-púberes ou não. Dentro da categoria "pedófilo" estão criminosos sexuais em geral, que cometem crimes contra qualquer pessoa e, "por acidente", também contra crianças, e psicopatas cuja escolha de crianças lhes aumenta o prazer por se tratar de alguém com menor poder e menor capacidade de reação. São sobretudo estes que passam ao ato. São quase só estes que são condenados. São quase só estes que aparecerão nas listas. Listas estas que condeno, por todas as razões que tu argumentas. Menos as que dizem que os pedófilos são tratáveis. Porque muitas vezes não são.
Confesso que por vezes não me apetece ser contra as listas. Sobretudo quando vejo uma criança atrás de outra a ser abusada pela mesma pessoa. E quando pergunto: "Mas esse homem não estava debaixo de olho? Ninguém tinha avisado a mãe que o homem que tinha metido lá em casa era um criminoso sexual?"
E as respostas não são simples. Por vezes a mãe não tinha sido avisada. Por vezes tinha sido avisada e não tinha acreditado na polícia ou na assistente social. Se o perfil dos criminosos é complexo, o perfil das vítimas é ainda mais intrincado...
Quem não é psiquiatra nem trabalha em saúde mental, pode não
ter noção que por detrás da palavra "pedófilo" podem estar conceitos
muito distintos.
Segundo o DSM, o manual/ "catálogo" de doenças
mentais, o termo "pedofilia" é isso mesmo que descreves: uma
orientação sexual. Uma atração preferencial por crianças pré-púberes, antes da
adolescência. Também diz que essa atração é egossintónica, ou seja, a pessoa
muitas vezes não se sentem mal com isso, tal não as impede de funcionar
normalmente em todos os outros aspetos da sua vida em sociedade e não cria
dificuldades inter e intrapessoais significativas. Como tal, um pedófilo assim
descrito não procura ajuda. Já daqui vem uma dificuldade. Por vezes passam ao
ato com crianças que estão ao seu alcance (dentro e fora de casa). Mas ocasionalmente, essas pessoas interiorizam que este ato é condenado pela sociedade, podem refletir sobre isso e, sobretudo depois de terem sido condenadas por um abuso que cometeram, podem entrar em tratamento e, até certo ponto, controlar o seu impulso. Nesses talvez valha a pena investir.
A verdadeira questão é que, em criminologia em geral, e segundo a lei portuguesa em particular, os crimes de pedofilia são quaisquer crimes sexuais cometidos contra crianças ou adolescentes, pré-púberes ou não. Dentro da categoria "pedófilo" estão criminosos sexuais em geral, que cometem crimes contra qualquer pessoa e, "por acidente", também contra crianças, e psicopatas cuja escolha de crianças lhes aumenta o prazer por se tratar de alguém com menor poder e menor capacidade de reação. São sobretudo estes que passam ao ato. São quase só estes que são condenados. São quase só estes que aparecerão nas listas. Listas estas que condeno, por todas as razões que tu argumentas. Menos as que dizem que os pedófilos são tratáveis. Porque muitas vezes não são.
Os tais pedófilos de que falas, os que cumprem os critérios do
DSM, sobretudo os que cometem abusos dentro das próprias famílias, quase nunca
são condenados. Por mais diferenciadas que sejam as mães e os outros
encarregados de educação, quase nunca têm coragem de levar o processo adiante
até à condenação porque não querem ver o pai das crianças preso. Porque no fundo
quem sofre sempre são as crianças. E ninguém quer que o seu filho seja apontado
como “o filho do pedófilo”.
Ou seja, neste caso (o das listas de criminosos sexuais
condenados por crimes contra crianças) pedófilos não são doentes mentais que
devem ser ajudados. Neste caso pedófilos são criminosos que, na sua maioria têm
perturbações graves da personalidade, na sua maioria psicopatas, e têm
compulsão a repetir o ato, mesmo depois de terem sido condenados. Confesso que por vezes não me apetece ser contra as listas. Sobretudo quando vejo uma criança atrás de outra a ser abusada pela mesma pessoa. E quando pergunto: "Mas esse homem não estava debaixo de olho? Ninguém tinha avisado a mãe que o homem que tinha metido lá em casa era um criminoso sexual?"
E as respostas não são simples. Por vezes a mãe não tinha sido avisada. Por vezes tinha sido avisada e não tinha acreditado na polícia ou na assistente social. Se o perfil dos criminosos é complexo, o perfil das vítimas é ainda mais intrincado...
O que eu sei é que por vezes vejo crianças, vítimas durante
anos de violência (sexual ou não), completamente destruídas por dentro na sua
autoestima e integridade psicológica, por pessoas, supostamente cuidadoras,
fossem pais, padrastos, tutores, padrinhos e que, a muito custo, as mães lá se
organizaram para se livrarem deles. E, meses ou anos depois, pergunto às mães:
"Onde está esse homem?" E elas respondem: "Tem uma nova família."
E eu arrepio-me. Quase que poderia ser a favor das listas,
não fossem elas atentados contra os direitos humanos e o direito à privacidade.
Não fossem elas prejudicar ainda mais as famílias deles, já de si devastadas.
Não fossem elas ineficazes. Mas acho que se deveria preparar melhor as equipas
que estão no terreno, articular melhor com os serviços de saúde mental, com as
associações de apoio à vítima. Deveria haver um mecanismo previsto na lei que
se poderia aplicar em caso de reincidência ou comprovada compulsão a repetir
para manter os criminosos debaixo de olho a longo prazo depois de terem sido
condenados. Isto sim era responsabilizar o estado e não criar alarme na
comunidade. Isto sim seria descansar a comunidade e não criar uma comunidade em
alerta permanente.
Obrigada mais uma vez, Rita, por voltares.
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
[baby-de-mulata] viagem à roda do teu nome...
Cartoon daqui.
Ontem à noite, como sempre, já na cama, o baby-de-mulata pediu-me uma história antes de adormecer. E eu conto sempre a história que ele quer, mesmo quando estou exausta. Há só um pequeno problema: é que as minhas histórias variam quase todos os dias porque eu sou do tipo de pessoa que fala durante o sono como se estivesse acordada. E geralmente até consigo fazer sentido no que digo. Pelo menos é o que alguns dizem. E eu só acredito nesses, como está bem de ver. Só não respondo é à conversa e o fio e a meada deslaçam-se rapidamente. Ou seja, por outras palavras, as minhas histórias começam sempre da mesma maneira e fogem quase sempre para o nonsense de forma imprevisível.
De modo que, por vezes, os três porquinhos, em vez de construírem casas de palha, madeira e tijolo, têm alergias, pneumonia e hiperatividade. Mas só quando passam demasiado tempo na sala de espera da urgência até serem atendidos é que o baby se farta e me grita que não é assim a história, que é altura de o lobo mau chegar das profundezas da floresta, que ele, baby, também tem sono e quer dormir. Eu que me despache a meter o caldeirão ao lume, ele quer ver o lobo mau de rabo queimado a subir pela chaminé e fugir pela floresta afora, e que as angústias da noite se dissipem com uma história em que o medo e o perigo são vencidos. Mas é um problema... A carochinha já teve uma intoxicação alcoólica, o João Ratão não aprendia a ler de maneira nenhuma e teve de ir fazer terapia da fala e, uma vez, os sete cabritinhos também estiveram no corredor da urgência em macas, a soro, porque não havia camas para todos para tratar um surto de salmonelas que apanharam por se terem alambazado com uma mousse de chocolate. [Palavra que eu disse! Nessa noite acordei com o baby furioso. Os sete cabritinhos tinham comido mousse de chocolate e ele nem uma bolacha Maria! Vi-me e desejei-me para o adormecer e convencer que a mãe dos sete cabritinhos era uma irresponsável, onde é que já se viu dar mousse de chocolate aos filhos àquela hora da noite!] A maior parte das vezes acordo com o baby a rir às gargalhadas por mais um disparate... Mas, como eu ia dizendo, ontem, antes de adormecer, o baby-de-mulata queria uma história. Queria a história do peixe Tobias. E porque é que ele se chamava Tobias?, perguntou-me o baby. Inventei uma resposta qualquer...
- E porque é que eu me chamo baby?
- Ah, meu amor, porque baby é um nome lindo, pequeno, fofo, mas também nome de santo, de guerreiro, de homem grande, valente e generoso.
- Sim, mas quem me deu esse nome?
Aí vacilei... A mãe biológica só o viu no primeiro dia de vida e o nome foi o único legado que lhe deixou. Eu tinha uma resposta preparada para quando ele me perguntasse um dia: "Eu tenho alguma coisa dela? Ela pensou em mim alguma vez?" Essa resposta era: "Ela deu-te o teu nome. O nome mais lindo do mundo. É porque queria que tu fosses feliz."
E o baby viu-me vacilar porque acertou na mouche, na minha resposta preparada. Eu podia ter respondido uma coisa qualquer, mudar de assunto, dizer que eu e o pai é que lhe demos o nome completo, o que não era mentira: Baby-Maria-de-mulata-Shaka foi o nome que nós lhe pusemos. Mas ele não é parvo nenhum. Viu-me vacilar. E perguntou logo, como criança perspicaz que é: "Quem foi? Porque é que não foste tu?"
E foi assim que começou a nossa primeira conversa sobre origens, biologia e amor. Foi ontem que eu lhe disse que era a mulher mais feliz do mundo desde o dia em que me tornei a mãe dele para sempre. Ele quis saber tudo. Como foi? Como foi que tu me viste? Fui eu que te chamei? Eu disse que queria ser teu filho? E eu expliquei-lhe a história. Contei-lhe o momento lindo em que os nossos olhos se cruzaram e como foi o nosso amor à primeira vista. Contei-lhe como ele me deu os braços e eu lhe peguei ao colo e disse que queria ser mãe dele para sempre!
E a noite acabou com ele a pedir pormenores para encenar "a peça" do momento em que lhe peguei ao colo pela primeira vez... Representou-a vezes sem conta. Até que pediu para dormir. Dormiu tranquilo e acordou bem disposto.
Mais uma etapa superada. Ou pelo menos assim o espero...
domingo, 28 de setembro de 2014
[caderneta de cromos] peixe, peixe, peixe!
Alguém se lembra desta cena? O baby-de-mulata adora ver esta história... "É 'pantoso!"
domingo, 21 de setembro de 2014
[vozes brancas] e raciocínios irrepreensíveis!
Conversa entre o baby-de-mulata (atualmente com 3 anos e pouco) e sua avó, ouvida através da porta da cozinha:
- Amanhã onde vais passear?
- Vou ao oceanário com a mamã e o papá. Sabes, vovó, eu gostava de ter peixinhos em casa!
- Ah, então tens de pedir ao papá e à mamã para te comprarem peixinhos para tu cuidares e dares comida.
- Boa! E é melhor comprar também um aquário para os peixinhos não fugirem!
sábado, 20 de setembro de 2014
[outras palavras] ele tem autismo, não é autista!
Do blogue "Para Falar São Precisos Dois", um texto de Kerry Magro, um jovem adulto com autismo, professor universitário nos Estados Unidos, autor de um livro de auto-ajuda sobre as suas vivências e dificuldades.
Olá, o meu nome é Kerry e sofro de perturbação global do desenvolvimento sem outra especificação [em inglês, Pervasive Developmental Disorder Not Otherwise Specified - PDD-NOS).
Isto quer dizer que tenho autismo.
Isto não quer dizer que eu sou autista.
Isto quer dizer que eu por vezes vejo o mundo sob uma luz diferente.
Isto não quer dizer que eu esteja no escuro.
Isto quer dizer que, de tempos a tempos, eu tenho dificuldade em expressar as minhas emoções.
Isto não quer dizer que não tenho sentimentos.
Isto quer dizer que quando eu comunico, o faço num estilo muito próprio.
Isto não quer dizer que eu não tenho voz.
Isto quer dizer que eu tenho uma enorme sensibilidade para certas texturas e toques.
Isto quer dizer que alguns sons me fazem sentir desconfortável.
Isto não quer dizer que seja surdo ou duro de ouvido.
Isto quer dizer que me foco muitas vezes em certos interesses por um longo período de tempo.
Isto não quer dizer que aqueles sejam os meus únicos interesses.
Isto quer dizer que sou o único na família que tem esta condição.
Isto não quer dizer que estou sozinho.
Isto quer dizer que tenho 500 sintomas e capacidades diferentes das outras pessoas.
Isto não quer dizer que seja mais ou menos que ninguém.
O meu nome é Kerry e, independentemente do que PDD-NOS queira dizer, o autismo não me define. Eu sou uma das definições. E apenas posso desejar que todas as outras pessoas, tenham ou não autismo, possam também definir as suas vidas e os seus percursos pela maneira como os veem!
Isto quer dizer que tenho autismo.
Isto não quer dizer que eu sou autista.
Isto quer dizer que eu por vezes vejo o mundo sob uma luz diferente.
Isto não quer dizer que eu esteja no escuro.
Isto quer dizer que, de tempos a tempos, eu tenho dificuldade em expressar as minhas emoções.
Isto não quer dizer que não tenho sentimentos.
Isto quer dizer que quando eu comunico, o faço num estilo muito próprio.
Isto não quer dizer que eu não tenho voz.
Isto quer dizer que eu tenho uma enorme sensibilidade para certas texturas e toques.
Isto quer dizer que alguns sons me fazem sentir desconfortável.
Isto não quer dizer que seja surdo ou duro de ouvido.
Isto quer dizer que me foco muitas vezes em certos interesses por um longo período de tempo.
Isto não quer dizer que aqueles sejam os meus únicos interesses.
Isto quer dizer que sou o único na família que tem esta condição.
Isto não quer dizer que estou sozinho.
Isto quer dizer que tenho 500 sintomas e capacidades diferentes das outras pessoas.
Isto não quer dizer que seja mais ou menos que ninguém.
O meu nome é Kerry e, independentemente do que PDD-NOS queira dizer, o autismo não me define. Eu sou uma das definições. E apenas posso desejar que todas as outras pessoas, tenham ou não autismo, possam também definir as suas vidas e os seus percursos pela maneira como os veem!
domingo, 14 de setembro de 2014
[vozes brancas] chocoholic
Pois é...
Antes de mais, deixem-me carpir a minha mágoa de pediatra: o baby-de-mulata não gosta de fruta! É verdade. Conheço mais duas ou três crianças como ele, mas acho que não tão avessas à fruta... A simples visão de uma peça de fruta dá-lhe vómitos. O ar de pânico que faz quando percebe que chegou a hora da fruta é indescritível. Colocar uma peça de fruta na boca é um processo que envolve mentalização e coaching da minha parte. E muita coragem da parte dele. Mal comparado, fazê-lo comer fruta é como um instrutor de bungee jumping convencer uma pessoa com pavor de alturas a saltar de uma ponte. "Vá, meu filho, é ótimo, vais ver que vais gostar, é fantástico e faz tão bem..." e assim por diante. Nem sempre consigo, claro. Nem todos os dias uma criança tem esta disponibilidade para aceitar algo que visceralmente abomina. Ele tem é o azar de ter uma mãezinha que é chata como a potassa...
Pelo contrário, o chocolate foi uma descoberta recente, mas muito bem tolerada... [Porque é que a vida é tão injusta?] Hoje, à saída do jardim zoológico, fomos comer um gelado. Perguntou-me:
- Mãe, gostava de comer um gelado... de chocolate. Existe?
- Sim, filho, existe, vamos perguntar ao senhor se tem.
E foi a meio do gelado que ele se saiu com uma pérola:
- Mamã, eu adoro chocolate! Até podia comer uma maçã, se fosse de chocolate!
Tentei afastar as imagens do demo que me assaltaram a mente. Só de pensar nelas engordo dois quilos... Vou tentar não lhe dar fruta desta maneira nunca.
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
[as melhores do serviço de urgência] não, eu não quero!
Foto dali mesmo...
Há uns dias interrompi as férias para fazer 24 horas de urgência no meu hospital. Assim mesmo, sem aquecimento e com uma baixa na equipa à última da hora, que não deu para colmatar. Sim, eu sei, estou uma garganeira, a fazer-me indecentemente à medalha de cortiça do SNS, mas eu tenho uma equipa fantástica, em que três pessoas fizeram o mesmo estas férias, portanto não tenho nada que me queixar. Só tenho é de me recompor e dar graças a Deus porque entre mortos e feridos todos escapámos razoavelmente vivos às duas reanimações, um choque séptico, um neurolúpus e vários traumatismos cranianos! Quanto aos doentes, também todos sobreviveram à nossa presença e encontram-se a recuperar, felizmente. Obrigada por perguntarem.
Mas serve o presente post para vos contar que, pelas quatro da manhã, me veio um menino que não teria mais de quatro anos, vindo diretamente de uma pista de dança.
E perguntam vocês, meus queridos amigos, o que é que fazia um menino de quatro anos às quatro da madrugada numa pista de dança? Ora pois que fazia um grande galo na cabeça...
O miúdo era amoroso! Embora tivesse sido um traumatismo craniano e tanto, de uma altura considerável (ao que parece estava a dançar em cima de uma coluna, qual adolescente ligeiramente etilizado), e estivesse sonolento, continuava com sentido de humor, colaborante e afirmou que queria ir conhecer o túnel de que eu lhe falava, que era lindo, cheio de golfinhos e gaivotas e ia ficar mesmo muito caladinho para ouvir o som da baleia escondida... Dirigi-me à mãe:.
- Então vai ali fazer uma TAC e quando estiver despachado volta para aqui ter comigo. A Senhora enfermeira vai acompanhá-lo.
Três quartos de hora depois, o menino regressou, lavado em lágrimas, ao colo da mãe e acompanhado pela enfermeira, ambas com ar exaurido e tristes pelo insucesso retumbante daquela ida à TAC que tanto prometia... .
- Eu não entro naquele eletrodoméstico! - chorava o menino.
terça-feira, 9 de setembro de 2014
[grande é a poesia, a bondade e as danças] planos e futuros!
O baby-de-mulata, como bom portador de um cromossoma Y com todas as pernas, braços, bandas e sarabandas, quer ser professor de polícias ou professor de carros e de ambulâncias (professor da parte de Mr.-Shaka-seu-querido-paizinho, e polícia e condutor de ambulâncias da parte dele próprio, que sua mãe queria mesmo era ser bailarina nesta idade).
Mas eu, que sou uma mãe liberal e com abertura de espírito, adoro dizer-lhe no tom impagável de Raul-Solnado-no-seu-melhor: "Filho, quer tu queiras quer não queiras, tens de ser bombeiro voluntário!" A cara compenetrada e feliz que ele faz quando ouve esta frase é de morrer a rir. Queira Deus que só descubra o paradoxo daqui a uns tempos largos...
Mas eu, que sou uma mãe liberal e com abertura de espírito, adoro dizer-lhe no tom impagável de Raul-Solnado-no-seu-melhor: "Filho, quer tu queiras quer não queiras, tens de ser bombeiro voluntário!" A cara compenetrada e feliz que ele faz quando ouve esta frase é de morrer a rir. Queira Deus que só descubra o paradoxo daqui a uns tempos largos...
[vozes brancas] o vasquinho da anatomia...
Ontem, na consulta, um menino adorável de três anos e meio acompanhava o irmãozinho recém-nascido à primeira consulta. Abri a porta, sorri para os pais e dirigi-me a ele em primeiro lugar. Dei-lhe um beijinho, admirei-me muito e em voz bem alta por ele estar tão crescido, perguntei-lhe pelas novidades e ele disse-me que tinha tido um irmão bebé, que gostava muito dele mas que preferia que já viesse a saber jogar à bola. Dei-lhe uns entusiásticos parabéns e que agora compreendia por que é que ele estava tão crescido, que isto de se ser o irmão mais velho faz crescer muito!
- Entre, Vasquinho, apresenta-me o seu mano? Ele porta-se bem, ou chora muito?
- Porta-se bem, só que às vezes chora muito e não quer mamar. Eu acho que ele chora muito quando quer ir para casa dele...
- Ah, mas a casa dele agora é a vossa casa... [Ups... Que parte disto é que ele não tinha percebido?]
O Vasquinho fulminou-me com o olhar, ante a cara de "eu-já-lhe-tinha-dito-isto-mil-vezes-não-adiantava-atirar-o-barro-à-parede-ainda-mais-uma-vez,-envergonhando-a-sua-família" de sua mãe e virou-me costas para ir para a mesa das brincadeiras. Os pais encolheram os ombros e tentaram começar a consulta. Erro crasso... O Vasquinho começou a atirar todos os objetos que tinha à mão contra a parede com estrondo, sinal sonoro de que estava zangado e a reivindicar a atenção que lhe cabia por direito sucessório. Tentei mudar de estratégia:
- Vasquinho, precisava aqui da sua ajuda, pode vir aqui lembrar-me para que serve o otoscópio?
E o Vasquinho, orgulhoso da sua função de ajudante, apressou-se a vir para o meu colo para me ensinar a trabalhar com o aparelho que descobria sempre, como por magia, coisas interessantíssimas dentro dos seus ouvidos.
- Lembra-se, Vasquinho, de quando foi operado aos ouvidos? - perguntou a mãe.
- Sim, claro, foi com este operoscópio! - respondeu o Vasquinho, com um ar de "dãh" de pré-adolescente.
- Ah, ele sabe! E o que é que tiraram de lá? - perguntei.
- Foi o Pateta!
- Isso mesmo! E o que é que lá meteram?
- Foi um túnel.
- Um túnel?
- Sim, um túnel azul para eu ouvir melhor a televisão e os meus pais a chamar.
- Pois, os seus tubinhos são azuis, sim. Olhe, e onde é que foi nestas férias?
- Fui para a casa da piscina.
- Ah, que bom e gostou de lá estar?
- Sim, mas o pai apanhou gelatina.
- Escarlatina - sussurrou a mãe, numa tradução disfarçada, a ver se não feria novamente a suscetibilidade do primogénito.
- Ah, que pena, e o menino não apanhou?
- Não, eu apanhei laranjas...
- Ah... - que conversa que para aqui vai, valha-me Santo António dos peixes - e como é que foi isso?
- Não conseguia falar.
- Ah, doutora, ele está a dizer que apanhou uma laringite. Diga-lá, Vasquinho, à doutora, como é que se chama aquela coisa na garganta que nós temos para conseguir falar?
- São as cordas musicais!
- Não, Vasquinho - repreendeu a mãe.
- Não o corrija, por favor! - Pedi à mãe, ao mesmo tempo que não conseguia evitar uma gargalhada - Ele é uma delícia a falar! Tive um colega de Faculdade que também era assim, derivava palavras da anatomia com uma graça... Era o nosso Vasquinho da Anatomia, como o da canção de Lisboa.
- Entre, Vasquinho, apresenta-me o seu mano? Ele porta-se bem, ou chora muito?
- Porta-se bem, só que às vezes chora muito e não quer mamar. Eu acho que ele chora muito quando quer ir para casa dele...
- Ah, mas a casa dele agora é a vossa casa... [Ups... Que parte disto é que ele não tinha percebido?]
O Vasquinho fulminou-me com o olhar, ante a cara de "eu-já-lhe-tinha-dito-isto-mil-vezes-não-adiantava-atirar-o-barro-à-parede-ainda-mais-uma-vez,-envergonhando-a-sua-família" de sua mãe e virou-me costas para ir para a mesa das brincadeiras. Os pais encolheram os ombros e tentaram começar a consulta. Erro crasso... O Vasquinho começou a atirar todos os objetos que tinha à mão contra a parede com estrondo, sinal sonoro de que estava zangado e a reivindicar a atenção que lhe cabia por direito sucessório. Tentei mudar de estratégia:
- Vasquinho, precisava aqui da sua ajuda, pode vir aqui lembrar-me para que serve o otoscópio?
E o Vasquinho, orgulhoso da sua função de ajudante, apressou-se a vir para o meu colo para me ensinar a trabalhar com o aparelho que descobria sempre, como por magia, coisas interessantíssimas dentro dos seus ouvidos.
- Lembra-se, Vasquinho, de quando foi operado aos ouvidos? - perguntou a mãe.
- Sim, claro, foi com este operoscópio! - respondeu o Vasquinho, com um ar de "dãh" de pré-adolescente.
- Ah, ele sabe! E o que é que tiraram de lá? - perguntei.
- Foi o Pateta!
- Isso mesmo! E o que é que lá meteram?
- Foi um túnel.
- Um túnel?
- Sim, um túnel azul para eu ouvir melhor a televisão e os meus pais a chamar.
- Pois, os seus tubinhos são azuis, sim. Olhe, e onde é que foi nestas férias?
- Fui para a casa da piscina.
- Ah, que bom e gostou de lá estar?
- Sim, mas o pai apanhou gelatina.
- Escarlatina - sussurrou a mãe, numa tradução disfarçada, a ver se não feria novamente a suscetibilidade do primogénito.
- Ah, que pena, e o menino não apanhou?
- Não, eu apanhei laranjas...
- Ah... - que conversa que para aqui vai, valha-me Santo António dos peixes - e como é que foi isso?
- Não conseguia falar.
- Ah, doutora, ele está a dizer que apanhou uma laringite. Diga-lá, Vasquinho, à doutora, como é que se chama aquela coisa na garganta que nós temos para conseguir falar?
- São as cordas musicais!
- Não, Vasquinho - repreendeu a mãe.
- Não o corrija, por favor! - Pedi à mãe, ao mesmo tempo que não conseguia evitar uma gargalhada - Ele é uma delícia a falar! Tive um colega de Faculdade que também era assim, derivava palavras da anatomia com uma graça... Era o nosso Vasquinho da Anatomia, como o da canção de Lisboa.
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
[outras palavras] breve história de um desnutrido
Mais uma crónica da minha amiga Maria, voluntária pela minha ONG no Niassa, a província mais longínqua e abandonada de Moçambique. Tudo quanto ela escreve me faz vir à mente sons e cheiros longínquos. E só não me faz chorar porque agora tenho várias razões fortes e lindas para permanecer aqui e não fugir mais uma vez para essa terra miraculosa e cheia de vida!
"Recordo a primeira vez que ouvi o Bento. Era de manhãzinha, aproximava-me da maternidade para iniciar mais um dia de trabalho quando ouvi um choro demasiado alto para ser o primeiro grito de um ser humano, demasiado sofrido também.
Não me enganei. Tratava-se de uma criança, dos seus 18 meses, que encarnava o dito popular “deve à pele a obrigação de lhe segurar os ossos”. A avó, sua cuidadora, a acrescentar a um discurso nada coerente, sofria de disfemia [gaguez], o que tornava o cenário no mínimo bizarro. Conseguimos convencê-la com muito custo que era mais importante internar a criança no Centro Nutricional do que afastar os macacos que teimavam em roubar-lhe a maçaroca: a sua principal preocupação naquele momento.
O Bento, que tivera a (in)felicidade de ter uma irmãzinha, agora de 5 meses, que lhe tirara cedo de mais o leite e o amor materno, surpreendeu logo nos primeiros dias de internamento por aliar uma teimosia deliciosa a uma inteligência incomum. Sabia perfeitamente qual era a colher em que estavam os medicamentos e não ingeria nada que a avó não colocasse primeiro na boca. O medo que demonstrava antes de provar qualquer alimento levou-me a suspeitar de longos tratamentos tradicionais impalatáveis. Exigia o seu espaço de mais de um metro e meio de raio, impenetrável para alguém que não fosse a avó, espaço este que consegui aos poucos diminuir seguindo à letra os conselhos que a raposa ensinou ao Principezinho na fantástica obra de Saint Exupéry: “É preciso ter muita paciência. Primeiro, sentas--te um bocadinho afastado de mim, assim, na [esteira]. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não me dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas, de dia para dia, podes sentar-te cada vez mais perto….”
Cada dia me sentei mais perto e ao final de um mês tinha-o cativado. Bastava alguém dizer “a Fátima vem lá” para ele colocar um sorriso de orelha a orelha e espreitar… é certo que não fui só eu que o cativei, mas sobretudo as papas deliciosas com sabor a amendoim que lhe preparava.
Hoje, após 10 semanas de tratamento, teve alta… saiu já ao entardecer, às costas da mãe. No lusco-fusco de um anoitecer colorido, dava gargalhadas ruidosas, brincando ao txipi-txipi (esconde-esconde) na capulana da mãe.
O Bento foi, mas o trabalho continua, e agora devo dar toda a atenção à Vitória, uma bebé adorável cuja cara desnutrida se resume a uns grandes olhos negros e um sorriso desdentado de orelha a orelha, com peso aos 8 meses inferior ao meu peso de nascimento, consequência de falta de produção de leite materno tardiamente identificada. Há crianças que não podiam ter nomes mais adequados…
Em meu nome, por me permitirem ser agente ativa nestes milagres diários, em nome do Bento, da Vitória e de todas as “Vitórias” de África que sobrevivem graças às ajudas generosas dos benfeitores da APARF, deixo uma mensagem de sinceros agradecimentos e termino parafraseando Raoul Follereau “não sabe o bem que faz quem faz o bem.”
Obrigada, eu, Maria, por me trazeres, a cada crónica, mais um pouco do cheiro de África!
O Bento, o menino protagonista desta história...
Mitande, Niassa
"Recordo a primeira vez que ouvi o Bento. Era de manhãzinha, aproximava-me da maternidade para iniciar mais um dia de trabalho quando ouvi um choro demasiado alto para ser o primeiro grito de um ser humano, demasiado sofrido também.
Não me enganei. Tratava-se de uma criança, dos seus 18 meses, que encarnava o dito popular “deve à pele a obrigação de lhe segurar os ossos”. A avó, sua cuidadora, a acrescentar a um discurso nada coerente, sofria de disfemia [gaguez], o que tornava o cenário no mínimo bizarro. Conseguimos convencê-la com muito custo que era mais importante internar a criança no Centro Nutricional do que afastar os macacos que teimavam em roubar-lhe a maçaroca: a sua principal preocupação naquele momento.
O Bento, que tivera a (in)felicidade de ter uma irmãzinha, agora de 5 meses, que lhe tirara cedo de mais o leite e o amor materno, surpreendeu logo nos primeiros dias de internamento por aliar uma teimosia deliciosa a uma inteligência incomum. Sabia perfeitamente qual era a colher em que estavam os medicamentos e não ingeria nada que a avó não colocasse primeiro na boca. O medo que demonstrava antes de provar qualquer alimento levou-me a suspeitar de longos tratamentos tradicionais impalatáveis. Exigia o seu espaço de mais de um metro e meio de raio, impenetrável para alguém que não fosse a avó, espaço este que consegui aos poucos diminuir seguindo à letra os conselhos que a raposa ensinou ao Principezinho na fantástica obra de Saint Exupéry: “É preciso ter muita paciência. Primeiro, sentas--te um bocadinho afastado de mim, assim, na [esteira]. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não me dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas, de dia para dia, podes sentar-te cada vez mais perto….”
Cada dia me sentei mais perto e ao final de um mês tinha-o cativado. Bastava alguém dizer “a Fátima vem lá” para ele colocar um sorriso de orelha a orelha e espreitar… é certo que não fui só eu que o cativei, mas sobretudo as papas deliciosas com sabor a amendoim que lhe preparava.
Hoje, após 10 semanas de tratamento, teve alta… saiu já ao entardecer, às costas da mãe. No lusco-fusco de um anoitecer colorido, dava gargalhadas ruidosas, brincando ao txipi-txipi (esconde-esconde) na capulana da mãe.
O Bento foi, mas o trabalho continua, e agora devo dar toda a atenção à Vitória, uma bebé adorável cuja cara desnutrida se resume a uns grandes olhos negros e um sorriso desdentado de orelha a orelha, com peso aos 8 meses inferior ao meu peso de nascimento, consequência de falta de produção de leite materno tardiamente identificada. Há crianças que não podiam ter nomes mais adequados…
Em meu nome, por me permitirem ser agente ativa nestes milagres diários, em nome do Bento, da Vitória e de todas as “Vitórias” de África que sobrevivem graças às ajudas generosas dos benfeitores da APARF, deixo uma mensagem de sinceros agradecimentos e termino parafraseando Raoul Follereau “não sabe o bem que faz quem faz o bem.”
Obrigada, eu, Maria, por me trazeres, a cada crónica, mais um pouco do cheiro de África!
quinta-feira, 17 de julho de 2014
[as melhores do serviço de urgência] obstinação
No serviço de urgência, a mãe de uma criança responde-me à pergunta: "Ela tem sido saudável?"
- Não, doutora, é obstripada desde que nasceu.
- Como? - genuinamente não percebi...
- Obstripada, doutora, é muito presa das tripas...
sábado, 12 de julho de 2014
[as melhores do serviço de urgência] resistência à frustração
Há dias um colega de curso postou no seu mural do facebook uma pérola que não resisto a partilhar convosco. Nas suas palavras: "o equivalente à carta do monopólio para não ir para a prisão":
O meu colega, sobre os antecedentes pessoais da senhora:
- Dona Maria, diga-me então, por favor, que doenças tem ou já teve.
- Ai, xotor, sou muito doente... sofro muito dos nervos, sou muito nervosa...
- Então?...
- Sim, xotôr, sou mesmo muito nervosa, qualquer coisinha me faz disparar o coração, fico desnorteada e não vejo mais nada à minha frente. E então às vezes caio para o chão e outras vezes faço asneiras...
- Que tipo de asneiras?
- Parto coisas, atiro tudo ao chão. E às vezes no fim também caio...
- E chega a magoar-se quando cai?
- Não, felizmente, xotôr, em trinta anos que isto me dá nunca me aleijei. Até estava ali a pensar na sala de espera... será que o xotôr me podia passar uma declaração médica para andar na carteira a dizer que não posso ser contrariada?
quinta-feira, 10 de julho de 2014
[vozes brancas] homem prevenido...
Na semana passada eu estava de urgência no meu hospital e portanto quem se encarregou do complexo ritual de adormecer Dom baby-de-mulata foi Mr. Shaka.
E, depois de fazer uma cama no chão, o número do táxi, o número do café, a fantasia dos animais da selva, o baby finalmente acedeu a ir para a cama, rodeado por todos os seus objetos de transição, e dispôs-se a ouvir uma última canção.
Geralmente pede um Magnificat que eu e Mr. Shaka costumamos cantar a duas vozes. [Sim, que baby-de-mulata é um pequeno gentil-homem, requintado e com gostos eruditos. Um menino que do alto dos seus três anos já tem os seus pergaminhos e os seus cânones.] Ou isso ou "O carro do meu chefe teve um furo no pneu", que a seu ver é também uma música com elevado valor harmónico-melódico, e com efeito hipnótico equivalente.
De repente, a propósito de nada, já depois da última canção, do beijinho, de mais um beijinho, de um último beijinho, depois do "vou sonhar contigo", depois do exercício africano "não deixes que os mosquitos te piquem", o baby-de-mulata perguntou a Mr. Shaka:
- Papá, podes cantar o Magnificat no meu casamento?
[Querem ver que me saiu um organizado?! O único da família mais caótico-catastrófica da história da humanidade? O menino ainda não tem namorada, ainda não tem os estudos concluídos nem um emprego estável, mas já começou a tratar do que se podia ir adiantando "para não deixar tudo para a última da hora".]
E, depois de fazer uma cama no chão, o número do táxi, o número do café, a fantasia dos animais da selva, o baby finalmente acedeu a ir para a cama, rodeado por todos os seus objetos de transição, e dispôs-se a ouvir uma última canção.
Geralmente pede um Magnificat que eu e Mr. Shaka costumamos cantar a duas vozes. [Sim, que baby-de-mulata é um pequeno gentil-homem, requintado e com gostos eruditos. Um menino que do alto dos seus três anos já tem os seus pergaminhos e os seus cânones.] Ou isso ou "O carro do meu chefe teve um furo no pneu", que a seu ver é também uma música com elevado valor harmónico-melódico, e com efeito hipnótico equivalente.
De repente, a propósito de nada, já depois da última canção, do beijinho, de mais um beijinho, de um último beijinho, depois do "vou sonhar contigo", depois do exercício africano "não deixes que os mosquitos te piquem", o baby-de-mulata perguntou a Mr. Shaka:
- Papá, podes cantar o Magnificat no meu casamento?
[Querem ver que me saiu um organizado?! O único da família mais caótico-catastrófica da história da humanidade? O menino ainda não tem namorada, ainda não tem os estudos concluídos nem um emprego estável, mas já começou a tratar do que se podia ir adiantando "para não deixar tudo para a última da hora".]
terça-feira, 8 de julho de 2014
[vozes brancas] aprender a andar de bicicleta...
Na urgência, no outro dia, ao meu lado, um miúdo muito bem disposto explicava a uma colega minha como aprendera a andar de bicicleta uma semana antes, na marina do Parque das Nações:
- O meu pai empurrou-me como das outras vezes mas, dessa vez, em vez de cair como sempre, olhei para a frente e comecei a pedalar. E o meu primeiro travão foi um senhor idoso que ia a atravessar à minha frente. Ele agarrou a bicicleta e eu atirei-me para a relva, que foi o meu para-choques.
- O meu pai empurrou-me como das outras vezes mas, dessa vez, em vez de cair como sempre, olhei para a frente e comecei a pedalar. E o meu primeiro travão foi um senhor idoso que ia a atravessar à minha frente. Ele agarrou a bicicleta e eu atirei-me para a relva, que foi o meu para-choques.
domingo, 6 de julho de 2014
[as melhores do serviço de urgência] a minha vida dava um filme cigano
Ontem, na urgência, um casal bem meu conhecido (aliás, conhecido de todos nós, que fazemos urgências de pediatria) vinha com o filho de dois anos e meio, bem disposto, cheio de vitalidade apesar da febre. Olho para o histórico enquanto o chamo pelo intercomunicador do meu gabinete: é a quarta vinda ao serviço de urgência no período de 24 horas (suspiro).
Mais de 60 vindas ao serviço de urgência no último ano. Motivo da presente vinda à urgência: febre. Das outras vezes também. Uma febre que não baixa, "tem tido 38, doutora, às vezes vai mesmo aos 38 e meio!" Replico, numa voz que pretende tranquilizar, que se trata de uma febre baixa. O pai responde-me, de súbito muito exaltado, que a temperatura normal dele é 35,9ºC, pelo que os 38 valem por quase 40, e com 37,8ºC já começa a ficar completamente de rastos e a tremer. (Suspiro) Enfim, um clássico. Vejo no processo que o menino tem história de convulsões febris. Daí o pânico dos pais, concluo.
Vejo também que já teve consultas de Neurologia por causa das convulsões, já fez exames que excluíram doenças graves e epilepsia. Que o pai também teve convulsões febris na infância. Está tudo escrito em todos os registos.
Tentei explicar que as convulsões febris são situações benignas, que o menino já estava medicado, que inclusivamente tinha mudado o antibiótico horas antes, da última vez que viera à urgência (certamente tinha feito a cabeça em água à minha antecessora) e que agora era preciso dar tempo ao tempo.
Nada feito. Do alto do seu metro e oitenta e muitos, o pai declarava-me que podia ser cigano, mas que também era médico de medicina chinesa, eu que não me atrevesse a contestar o que ele dizia. Que ele é que conhecia o menino. E sabia muito bem que quando o menino passava dos 38,2ºC, a parte do corpo do umbigo para baixo gelava, ao passo que a parte do corpo do umbigo para cima aquecia, e o cérebro ficava baralhado, sem saber se haveria de arrefecer a parte de cima ou aquecer a parte de baixo. E vai daí, pifava e fazia uma convulsão, capaz de o matar em dois minutos!
- Mas não adianta tentar evitar as convulsões, e as convulsões do seu menino são benignas e não deixam sequelas.
- Não são nada benignas, doutora, eu também as tive e chegaram a dizer à minha mãe que eu tinha morrido.
- Pois, mais me ajuda! E aqui está o senhor, saudável e sem problemas nenhuns. [Desta última parte não tenho tanta certeza, mas ficava bem na argumentação!]
Nada feito. O pai exigia que eu fizesse como os meus colegas costumavam fazer e que desse um medicamento na veia ao menino para lhe baixar a febre.
Mas eu, talvez por ter a parte do corpo acima do umbigo à mesma temperatura que a parte de baixo, não me deixei baralhar e afirmei-lhe que não iria agredir o menino com medicação na veia coisa nenhuma, que não havia razão para isso.
Levanta-se o pai e aproxima-se, com cara de quem me vai bater nos próximos segundos:
- Eu sou médico de medicina chinesa, mas também sou cigano, ouviu? Tenho a minha família ali fora! Vai ou não vai fazer o que eu lhe estou a pedir?
- Escute, o seu menino está bem, não há necessidade de o picar! E não nos resolve o problema, que daqui a quatro horas temos outra vez a febre a subir! Se calhar os senhores deviam ir novamente à consulta de Neurologia para se tranquilizarem. Temos centenas de meninos com convulsões febris e nenhuma família faz o que os senhores fazem. Não é normal, acreditem! [Oh, valha-me Santa Rita de Cássia, estou mesmo a pedi-las, é desta que vou levar porrada dentro do hospital!]
- Está bem, doutora. Mas enquanto a febre não baixar não vamos embora daqui.
- Pronto, é convosco [Ufa...], mas então vão para o jardim, não fiquem na sala de espera que ainda levam daqui outro bicho. [Desisto, se ficarem à porta da sala de reanimação também é com eles...]
Ao fim do dia saíram dali com indicação para procurarem um psicólogo...
Mais de 60 vindas ao serviço de urgência no último ano. Motivo da presente vinda à urgência: febre. Das outras vezes também. Uma febre que não baixa, "tem tido 38, doutora, às vezes vai mesmo aos 38 e meio!" Replico, numa voz que pretende tranquilizar, que se trata de uma febre baixa. O pai responde-me, de súbito muito exaltado, que a temperatura normal dele é 35,9ºC, pelo que os 38 valem por quase 40, e com 37,8ºC já começa a ficar completamente de rastos e a tremer. (Suspiro) Enfim, um clássico. Vejo no processo que o menino tem história de convulsões febris. Daí o pânico dos pais, concluo.
Vejo também que já teve consultas de Neurologia por causa das convulsões, já fez exames que excluíram doenças graves e epilepsia. Que o pai também teve convulsões febris na infância. Está tudo escrito em todos os registos.
Tentei explicar que as convulsões febris são situações benignas, que o menino já estava medicado, que inclusivamente tinha mudado o antibiótico horas antes, da última vez que viera à urgência (certamente tinha feito a cabeça em água à minha antecessora) e que agora era preciso dar tempo ao tempo.
Nada feito. Do alto do seu metro e oitenta e muitos, o pai declarava-me que podia ser cigano, mas que também era médico de medicina chinesa, eu que não me atrevesse a contestar o que ele dizia. Que ele é que conhecia o menino. E sabia muito bem que quando o menino passava dos 38,2ºC, a parte do corpo do umbigo para baixo gelava, ao passo que a parte do corpo do umbigo para cima aquecia, e o cérebro ficava baralhado, sem saber se haveria de arrefecer a parte de cima ou aquecer a parte de baixo. E vai daí, pifava e fazia uma convulsão, capaz de o matar em dois minutos!
- Mas não adianta tentar evitar as convulsões, e as convulsões do seu menino são benignas e não deixam sequelas.
- Não são nada benignas, doutora, eu também as tive e chegaram a dizer à minha mãe que eu tinha morrido.
- Pois, mais me ajuda! E aqui está o senhor, saudável e sem problemas nenhuns. [Desta última parte não tenho tanta certeza, mas ficava bem na argumentação!]
Nada feito. O pai exigia que eu fizesse como os meus colegas costumavam fazer e que desse um medicamento na veia ao menino para lhe baixar a febre.
Mas eu, talvez por ter a parte do corpo acima do umbigo à mesma temperatura que a parte de baixo, não me deixei baralhar e afirmei-lhe que não iria agredir o menino com medicação na veia coisa nenhuma, que não havia razão para isso.
Levanta-se o pai e aproxima-se, com cara de quem me vai bater nos próximos segundos:
- Eu sou médico de medicina chinesa, mas também sou cigano, ouviu? Tenho a minha família ali fora! Vai ou não vai fazer o que eu lhe estou a pedir?
- Escute, o seu menino está bem, não há necessidade de o picar! E não nos resolve o problema, que daqui a quatro horas temos outra vez a febre a subir! Se calhar os senhores deviam ir novamente à consulta de Neurologia para se tranquilizarem. Temos centenas de meninos com convulsões febris e nenhuma família faz o que os senhores fazem. Não é normal, acreditem! [Oh, valha-me Santa Rita de Cássia, estou mesmo a pedi-las, é desta que vou levar porrada dentro do hospital!]
- Está bem, doutora. Mas enquanto a febre não baixar não vamos embora daqui.
- Pronto, é convosco [Ufa...], mas então vão para o jardim, não fiquem na sala de espera que ainda levam daqui outro bicho. [Desisto, se ficarem à porta da sala de reanimação também é com eles...]
Ao fim do dia saíram dali com indicação para procurarem um psicólogo...
sábado, 5 de julho de 2014
[vozes brancas] as melhores do serviço de urgência
Esta noite, no serviço de urgência, um menino de 9 anos, regressava do serviço de imagiologia, onde fora fazer uma TAC por uma dor de cabeça que o fazia vomitar todas as manhãs desde há mais de uma semana. Vinha nitidamente mais bem disposto, depois da medicação de choque que eu lhe dera logo à chegada.
- Então, querido, já vens com outra cara! Estás melhor?
- Assim, assim...
- Olha, mas se não estás, pareces! Há bocado até estavas aflito com as dores.
- Não, não era com as dores, eu estava aflito porque ouvi que ia fazer um "ataque" e fiquei com medo, mas afinal não custou nada!
- Então, querido, já vens com outra cara! Estás melhor?
- Assim, assim...
- Olha, mas se não estás, pareces! Há bocado até estavas aflito com as dores.
- Não, não era com as dores, eu estava aflito porque ouvi que ia fazer um "ataque" e fiquei com medo, mas afinal não custou nada!
quinta-feira, 3 de julho de 2014
[as melhores do serviço de urgência] cuidado com o sol!
Imagem daqui.
Na urgência da semana passada vi um menino que vinha por um ataque de urticária de partir o coração, de tal forma o menino estava aflito e se arranhava, como se a dor pudesse aliviar aquela sensação de ardor e comichão que o desesperava.
A avó vinha a resmungar que vários meninos tinham passado à frente do neto "e tinham só febre", ao passo que o dela estava "mesmo" doente, capaz de ter um choque da filoxera.
Engoli em seco e não ripostei, que se a dor de uma mãe que não consegue aliviar a dor de um filho é indizível, a aflição de uma avó deve ser pelo menos duas vezes pior, que sofre pela filha e pelo neto...
- Não se preocupe, pelo menos um choque anafilático não pode ser, ou ele estava agora aqui com falta de ar.
- Ai, doutora, mas não vê como ele está aflito? Já passa, meu amor, já passa, não coça, não coça, filho, já passa, deixa a avó pôr mais água fria...
E continuava naquela lengalenga, enquanto abanava o neto, lhe esfregava a pele com água fresca e o tentava consolar.
- O menino tem alguma alergia?
- Não doutora, eu estou é desconfiada que isto foi do sol, que ele de manhã foi à praia com a escola e se calhar não lhe puseram o protetor ou então tiraram-lhe a roupa e ele não pode.
- Ele já tinha tido esta reação antes ao sol?
- Sim, doutora, e eu já tinha avisado lá na escola que era preciso terem-me muito cuidado com o sol no menino, e o médico também já tinha dito à minha filha que ele no verão faz fotossíntese.
domingo, 29 de junho de 2014
[SNS we can!] ranking hospitalar
No serviço de urgência do meu hospital:
- O menino tem sido saudável?
- Não, Doutora, o meu filho está a ser seguido na consulta de Dermatologia dos Cachuchos porque tem uma dermosite.
- Uma dermatite?
- Isso, um "equizema", doutora. Mas já me disseram que para estas coisas o melhor é o Hospital do Rego e não os Cachuchos.
- São os dois muito bons, não tem de se preocupar.
- Ai preocupo sim, doutora, que há uns anos o meu marido fez um "clister ao pato" nos Cachuchos, que lhe custou muito a fazer, e nem sequer ficou bem feito, e afinal no hospital Polivalente faziam lá clisteres com "sedução". Por isso é que fiquei sempre de pé atrás com os Cachuchos.
- Mas é um bom sítio para tratar o menino, esteja descansada!
- O menino tem sido saudável?
- Não, Doutora, o meu filho está a ser seguido na consulta de Dermatologia dos Cachuchos porque tem uma dermosite.
- Uma dermatite?
- Isso, um "equizema", doutora. Mas já me disseram que para estas coisas o melhor é o Hospital do Rego e não os Cachuchos.
- São os dois muito bons, não tem de se preocupar.
- Ai preocupo sim, doutora, que há uns anos o meu marido fez um "clister ao pato" nos Cachuchos, que lhe custou muito a fazer, e nem sequer ficou bem feito, e afinal no hospital Polivalente faziam lá clisteres com "sedução". Por isso é que fiquei sempre de pé atrás com os Cachuchos.
- Mas é um bom sítio para tratar o menino, esteja descansada!
sexta-feira, 27 de junho de 2014
[vozes brancas] desenho figurativo
No outro dia, na consulta, vi um menino com quatro anos, um talibanzinho de primeira água, que vinha por atraso de desenvolvimento da linguagem.
A mãe tinha um primeiro impacto absolutamente desconcertante. Metade do cabelo rapado e a outra metade curta e espetada, pintada de loiro, com dois piercings por cada prega facial, o olhar pueril e espantado de quem tenta não olhar para si própria para não ver o corpo de mulher, as marcas da maternidade, nem as finas rugas em torno dos olhos, por culpa dos anos que lhe arranhavam o rosto e lhe roubavam o olhar de menina. Porque, intimamente, a adolescência ainda não estava resolvida.
Era uma mãe eternamente espantada por aquele menino lhe chamar mãe, por aquele menino que lhe chamava mãe se comportar como um terrorista e não lhe obedecer prontamente como ser racional que deveria ser, por aquele menino não ser o companheiro de brincadeiras que idealizara. Todos os dias surpreendida por ser chamada de mãe. Por ser chamada à razão por um ser de quatro anos que lhe começava a ensinar que as crianças precisam de regras e limites, prémios e castigos tanto quanto do amor que sempre se dispusera a dar-lhe. E lhe dava todos os dias, apesar de todas as patifarias que lhe aprontava. A começar pelo facto de ter aparecido dentro dela sem aviso e sem planeamento prévio.
Passado o primeiro impacto, aquela mãe era um amor, bem disposta, muito afetuosa, numa relação de quase fusão com o menino, simbiótica, como são as relações de muitas mães que, por força das circunstâncias, ficaram frágeis e sozinhas a cuidar dos filhos. E esta mãe tinha ficado sozinha por sido vítima de violência doméstica, uma situação muito grave e muito prolongada.
Passado o primeiro impacto, esta mãe é mais uma das minhas heroínas.
À pergunta: "Tem alguém na família com doença psiquiátrica?", o novelo emaranhado que é a história deste menino desenrola-se à minha frente. Uma história de violência que já começara duas gerações antes:
- Bem, doutora, alguém na família com doença psiquiátrica... O pai também conta?
- Claro!
- Era toxicodependente, alcoólico e de vez em quando tinha explosões de fúria em que destruía tudo o que lhe aparecia à frente, e era violento para as pessoas de quem gostava.
- E o menino assistiu a essas cenas?
- Não, a violência física nunca assistiu propriamente, mas ouviu muitas discussões e tive momentos de me barricar com ele no quarto, com o pai aos pontapés à porta.
- Bem, mas então sentiu a sua tensão, a sua angústia...
- Sim, é verdade, viu-me chorar muitas vezes, viu-me desmoronar, ouviu discussões.
- E quais eram os principais motivos de discussão?
- Ciúmes. Ciúmes horríveis. Delirava com todos os homens que se aproximassem de mim menos de 20 metros.
- Mas, daquilo que se apercebeu, era uma pessoa que estivesse sempre dentro da realidade? Ou tinha ideias delirantes assim que não fizessem sentido ou pensamentos bizarros?
- Não, era uma pessoa que estava na realidade. Quer dizer... Se "metesse um ácido" é claro que saía da realidade, nas era só nessas circunstâncias.
- [Valha-me Nossa Senhora das Substâncias de Abuso!] Ok, já percebi...
Contou-me que nos últimos tempos, antes de ser obrigada a fugir com o filho, levando apenas a roupa que tinha vestida, andava sempre com uma bolsa dentro da roupa, encostada ao peito, com os documentos dela e do filho e dinheiro para as passagens de avião para Lisboa, para o caso de ser obrigada a fugir de repente.
A mãe ia falando do nascimento do menino, do pai que a controlava constantemente, revia-lhe todas as mensagens no telemóvel, lia todos os mails, toda a correspondência, ia busca-la ao trabalho, aparecia de surpresa sob qualquer pretexto. Seguia-lhe os passos ao minuto!
Ela e o filho escaparam com vida, com mais sorte que habitualmente, porque após a fuga não foram perseguidos nem tiveram ameaças por parte do pai. Mas as sequelas eram visíveis, na fragilidade da mãe e no comportamento disruptivo do menino. Não parava, não falava, não tinha um jogo construtivo ou organizado, piorava a olhos vistos se a mãe se afastasse ou mesmo se voltasse costas. E se lhe mandassem fazer o que quer que fosse, chorava, ficava aflito, tudo lhe doía, amuava, gritava.
Ai, valesse-me Nossa Senhora dos Aflitos. Como é que eu ia conseguir explicar àquela mãe que o menino precisava mesmo de regras e de pulso forte, porque o problema não era genético, como ela alvitrava e assumira desde o princípio: "Ele sai ao pai, doutora! O pai era igual em criança.".
- Não, mãe! O que ele sofre é de falta de fé!
- Falta de fé?! Como assim, falta de fé?
- A sua falta de fé nele e nas suas capacidades de se fazer obedecer como mãe. Ele não tem problema nenhum. Vai falar quando conseguir sair desta agitação tão grave. E para isso tem de ser firme com ele para lhe dar segurança sobre o que pode ou não pode fazer.
- Mas ele não me obedece em nada!
- Mas vai obedecer! Vamos fazer um plano, ok.
Entretanto uma colega minha afadigava-se em volta dele para o fazer sentar e começar a pegar nos lápis para um desenho.
- Queres desenhar a tua família, Rodrigo?
- Tim, 'tá bem!
- Então vá, podes escolher as cores.
Em três segundos o desenho estava acabado e o menino novamente aos saltos pelo gabinete de consulta.
- Então, Rodrigo, a tua família já está? - perguntei, meio zangada.
- Tim, tá.
- Rodrigo - chamou a mãe, suavemente -, só vejo ali três bolas. O que é aquilo?
- Tou eu, a mãe e a vó [esta eu percebi: "Sou eu, a mãe e a avó."]
- Não são, não, Rodrigo, são só três bolas.
- Não - respondeu o Rodrigo, como se nada fosse -, tomo tó de tima da tonte.
A mãe desatou a rir e traduziu:
- Somos nós de cima da ponte. É como se estivéssemos representados em perspetiva! Este miúdo não existe! Tem resposta para tudo e é preguiçoso como o caraças, Doutora! Sai ao pai, é o que eu digo, a doutora não me acredita.
- Não torne a vir com essa conversa, o que ele tem é que não se concentra dois segundos! E a mãe tem de ouvir o que eu tenho para lhe dizer ou ele não vai melhorar.
[Voltei a vê-lo há duas semanas. Não parecia o mesmo! E já falava muito melhor.]
A mãe tinha um primeiro impacto absolutamente desconcertante. Metade do cabelo rapado e a outra metade curta e espetada, pintada de loiro, com dois piercings por cada prega facial, o olhar pueril e espantado de quem tenta não olhar para si própria para não ver o corpo de mulher, as marcas da maternidade, nem as finas rugas em torno dos olhos, por culpa dos anos que lhe arranhavam o rosto e lhe roubavam o olhar de menina. Porque, intimamente, a adolescência ainda não estava resolvida.
Era uma mãe eternamente espantada por aquele menino lhe chamar mãe, por aquele menino que lhe chamava mãe se comportar como um terrorista e não lhe obedecer prontamente como ser racional que deveria ser, por aquele menino não ser o companheiro de brincadeiras que idealizara. Todos os dias surpreendida por ser chamada de mãe. Por ser chamada à razão por um ser de quatro anos que lhe começava a ensinar que as crianças precisam de regras e limites, prémios e castigos tanto quanto do amor que sempre se dispusera a dar-lhe. E lhe dava todos os dias, apesar de todas as patifarias que lhe aprontava. A começar pelo facto de ter aparecido dentro dela sem aviso e sem planeamento prévio.
Passado o primeiro impacto, aquela mãe era um amor, bem disposta, muito afetuosa, numa relação de quase fusão com o menino, simbiótica, como são as relações de muitas mães que, por força das circunstâncias, ficaram frágeis e sozinhas a cuidar dos filhos. E esta mãe tinha ficado sozinha por sido vítima de violência doméstica, uma situação muito grave e muito prolongada.
Passado o primeiro impacto, esta mãe é mais uma das minhas heroínas.
À pergunta: "Tem alguém na família com doença psiquiátrica?", o novelo emaranhado que é a história deste menino desenrola-se à minha frente. Uma história de violência que já começara duas gerações antes:
- Bem, doutora, alguém na família com doença psiquiátrica... O pai também conta?
- Claro!
- Era toxicodependente, alcoólico e de vez em quando tinha explosões de fúria em que destruía tudo o que lhe aparecia à frente, e era violento para as pessoas de quem gostava.
- E o menino assistiu a essas cenas?
- Não, a violência física nunca assistiu propriamente, mas ouviu muitas discussões e tive momentos de me barricar com ele no quarto, com o pai aos pontapés à porta.
- Bem, mas então sentiu a sua tensão, a sua angústia...
- Sim, é verdade, viu-me chorar muitas vezes, viu-me desmoronar, ouviu discussões.
- E quais eram os principais motivos de discussão?
- Ciúmes. Ciúmes horríveis. Delirava com todos os homens que se aproximassem de mim menos de 20 metros.
- Mas, daquilo que se apercebeu, era uma pessoa que estivesse sempre dentro da realidade? Ou tinha ideias delirantes assim que não fizessem sentido ou pensamentos bizarros?
- Não, era uma pessoa que estava na realidade. Quer dizer... Se "metesse um ácido" é claro que saía da realidade, nas era só nessas circunstâncias.
- [Valha-me Nossa Senhora das Substâncias de Abuso!] Ok, já percebi...
Contou-me que nos últimos tempos, antes de ser obrigada a fugir com o filho, levando apenas a roupa que tinha vestida, andava sempre com uma bolsa dentro da roupa, encostada ao peito, com os documentos dela e do filho e dinheiro para as passagens de avião para Lisboa, para o caso de ser obrigada a fugir de repente.
A mãe ia falando do nascimento do menino, do pai que a controlava constantemente, revia-lhe todas as mensagens no telemóvel, lia todos os mails, toda a correspondência, ia busca-la ao trabalho, aparecia de surpresa sob qualquer pretexto. Seguia-lhe os passos ao minuto!
Ela e o filho escaparam com vida, com mais sorte que habitualmente, porque após a fuga não foram perseguidos nem tiveram ameaças por parte do pai. Mas as sequelas eram visíveis, na fragilidade da mãe e no comportamento disruptivo do menino. Não parava, não falava, não tinha um jogo construtivo ou organizado, piorava a olhos vistos se a mãe se afastasse ou mesmo se voltasse costas. E se lhe mandassem fazer o que quer que fosse, chorava, ficava aflito, tudo lhe doía, amuava, gritava.
Ai, valesse-me Nossa Senhora dos Aflitos. Como é que eu ia conseguir explicar àquela mãe que o menino precisava mesmo de regras e de pulso forte, porque o problema não era genético, como ela alvitrava e assumira desde o princípio: "Ele sai ao pai, doutora! O pai era igual em criança.".
- Não, mãe! O que ele sofre é de falta de fé!
- Falta de fé?! Como assim, falta de fé?
- A sua falta de fé nele e nas suas capacidades de se fazer obedecer como mãe. Ele não tem problema nenhum. Vai falar quando conseguir sair desta agitação tão grave. E para isso tem de ser firme com ele para lhe dar segurança sobre o que pode ou não pode fazer.
- Mas ele não me obedece em nada!
- Mas vai obedecer! Vamos fazer um plano, ok.
Entretanto uma colega minha afadigava-se em volta dele para o fazer sentar e começar a pegar nos lápis para um desenho.
- Queres desenhar a tua família, Rodrigo?
- Tim, 'tá bem!
- Então vá, podes escolher as cores.
Em três segundos o desenho estava acabado e o menino novamente aos saltos pelo gabinete de consulta.
- Então, Rodrigo, a tua família já está? - perguntei, meio zangada.
- Tim, tá.
- Rodrigo - chamou a mãe, suavemente -, só vejo ali três bolas. O que é aquilo?
- Tou eu, a mãe e a vó [esta eu percebi: "Sou eu, a mãe e a avó."]
- Não são, não, Rodrigo, são só três bolas.
- Não - respondeu o Rodrigo, como se nada fosse -, tomo tó de tima da tonte.
A mãe desatou a rir e traduziu:
- Somos nós de cima da ponte. É como se estivéssemos representados em perspetiva! Este miúdo não existe! Tem resposta para tudo e é preguiçoso como o caraças, Doutora! Sai ao pai, é o que eu digo, a doutora não me acredita.
- Não torne a vir com essa conversa, o que ele tem é que não se concentra dois segundos! E a mãe tem de ouvir o que eu tenho para lhe dizer ou ele não vai melhorar.
[Voltei a vê-lo há duas semanas. Não parecia o mesmo! E já falava muito melhor.]
sábado, 21 de junho de 2014
[uma vez loira...] sentido de orientação
Há dias, eu brincava animadamente com o baby-de-mulata pelo corredor acima, com ele montado numa capulana colorida, com animais estampados. Era "o táxi da nossa rua". "Para onde deseja ir, senhor baby-de-mulata?" "Pa'a o ja'dim da est'ela!" "E´ para já, senhor!"
Às tantas, baby-de-mulata apanhou novamente o táxi para voltar para casa: "Para onde deseja ir agora, senhor baby?" "Para a minha casa!"
Nisto fiz-me de parva para ver se ele sabia o caminho de memória. "E como se vai para lá, senhor baby?" "Vamos pela rua que sobe, mãe." "Mas como, baby, viramos à esquerda ou à direita?" "P'imei'o é à esque'da e depois sobe." "Mas como, baby, antes ou depois dos sinais?"
Nisto vejo o meu filho a dar o seu primeiro suspiro com cara de d'ah... Um revirar de olhos para cima. Uma cara de "não vale a pena, desisto":
- Mãe, pa'a ir pa'a casa é p'eciso um táxi a sé'io.
Às tantas, baby-de-mulata apanhou novamente o táxi para voltar para casa: "Para onde deseja ir agora, senhor baby?" "Para a minha casa!"
Nisto fiz-me de parva para ver se ele sabia o caminho de memória. "E como se vai para lá, senhor baby?" "Vamos pela rua que sobe, mãe." "Mas como, baby, viramos à esquerda ou à direita?" "P'imei'o é à esque'da e depois sobe." "Mas como, baby, antes ou depois dos sinais?"
Nisto vejo o meu filho a dar o seu primeiro suspiro com cara de d'ah... Um revirar de olhos para cima. Uma cara de "não vale a pena, desisto":
- Mãe, pa'a ir pa'a casa é p'eciso um táxi a sé'io.
sábado, 14 de junho de 2014
[vozes brancas*] consciência fonológica...
Ontem, na urgência, perto da meia-noite, chamei um Francisco de 4 anos. Segundos depois, pelo gabinete entrava-me um piratinha envergonhado, com a cara meio escondida no regaço da mãe, quase imóvel, com um dos ouvidos colado ao seu peito quente. Saltava aos olhos que tinha uma otite à direita. Estava o diagnóstico quase feito só pela posição do menino.
- Boa noite, então o que se passa com o seu príncipe?
- O Francisco estava a dormir e acordou há cerca de meia hora cheio de dores de ouvidos.
- Já lhe deu alguma coisa para as dores?
- Sim, dei-lhe Brufen assim que se queixou.
- Então já deve estar a fazer efeito. Meu querido, boa noite, vamos ver o teu dói-dói?
Desencostou-se da mãe a medo, mas rapidamente percebeu que já não estava a doer tanto, e animou-se ao perceber que tinha o Faísca no ouvido e o Jake na garganta.
- Doutora, estamos preocupados porque daqui a quatro dias vamos viajar... Será que vai ter problemas no avião?
- É capaz, sim, as diferenças de pressão são difíceis de suportar. Tem mesmo de ir?
- Sim, doutora, já está tudo marcado. Temos o casamento da minha irmã e ele é o menino das alianças.
- Bem, então não pode faltar. Temos de começar já o antibiótico e já lhe vou explicar os cuidados a ter... Tu vais para onde, meu amor?
- Vou pa'a a terra de onde vem o sal - respondeu com os olhos a brilhar! A mãe fez uma cara de espanto...
- Ai sim, vais para o Sal? Em Cabo Verde?
- Não, vou pa'a a terra de onde vem o sal!
- Ah, e de onde é que vem o sal?
- Vem do salmão!
- Ah, estou a ver! Então vais para a terra do salmão?
- Sim, doutora, vamos para a Noruega. Francisco, que ideia é essa? Deves estar a delirar...
- Lindo! Deixe estar, mãe, deixe-o fantasiar! Só prova que pensa nas coisas e que tem consciência dos sons das palavras.
[Que delícia de interpretação! Vai longe, este miúdo! E o que se perde em propriedade vocabular ganha-se em fantasia e consciência fonológica. Um excelente prognóstico quanto à capacidade de aprender a ler!]
* Timbre da voz das crianças antes da puberdade.
- Boa noite, então o que se passa com o seu príncipe?
- O Francisco estava a dormir e acordou há cerca de meia hora cheio de dores de ouvidos.
- Já lhe deu alguma coisa para as dores?
- Sim, dei-lhe Brufen assim que se queixou.
- Então já deve estar a fazer efeito. Meu querido, boa noite, vamos ver o teu dói-dói?
Desencostou-se da mãe a medo, mas rapidamente percebeu que já não estava a doer tanto, e animou-se ao perceber que tinha o Faísca no ouvido e o Jake na garganta.
- Doutora, estamos preocupados porque daqui a quatro dias vamos viajar... Será que vai ter problemas no avião?
- É capaz, sim, as diferenças de pressão são difíceis de suportar. Tem mesmo de ir?
- Sim, doutora, já está tudo marcado. Temos o casamento da minha irmã e ele é o menino das alianças.
- Bem, então não pode faltar. Temos de começar já o antibiótico e já lhe vou explicar os cuidados a ter... Tu vais para onde, meu amor?
- Vou pa'a a terra de onde vem o sal - respondeu com os olhos a brilhar! A mãe fez uma cara de espanto...
- Ai sim, vais para o Sal? Em Cabo Verde?
- Não, vou pa'a a terra de onde vem o sal!
- Ah, e de onde é que vem o sal?
- Vem do salmão!
- Ah, estou a ver! Então vais para a terra do salmão?
- Sim, doutora, vamos para a Noruega. Francisco, que ideia é essa? Deves estar a delirar...
- Lindo! Deixe estar, mãe, deixe-o fantasiar! Só prova que pensa nas coisas e que tem consciência dos sons das palavras.
[Que delícia de interpretação! Vai longe, este miúdo! E o que se perde em propriedade vocabular ganha-se em fantasia e consciência fonológica. Um excelente prognóstico quanto à capacidade de aprender a ler!]
* Timbre da voz das crianças antes da puberdade.
quarta-feira, 4 de junho de 2014
[ouvido por aí] psiquiatrices
Lido por aí...
"Eu não tenho uma conta no facebook, não tenho uma conta de Twitter nem do Instagram. Por isso vou pela rua e de vez em quando anuncio bem alto o que comi, o que estive a fazer e como é que as coisas vão lá em casa. Esta semana consegui três novos seguidores: dois polícias e um médico."
sábado, 31 de maio de 2014
[outras palavras] voluntariado em moçambique
Os adoráveis gémeos da Maria!
(Mitande, Niassa)
Já vos falei dela: a minha amiga Maria, enfermeira de formação e coração (e, se Deus quiser, quando regressar, também o será de profissão), que está há quase 18 meses em Mitande, uma terra mágica, na província mais longínqua e abandonada de Moçambique. Mulher de sete ofícios: médica, enfermeira, parteira, confidente, mecenas, psicóloga, personal coacher, orientadora vocacional. Há dias escreveu assim na sua página do face:
Já foram internados há quase um mês… como é possível ainda não ter escrito nada sobre os meninos dos meus olhos?, um casal de gémeos adoráveis, que conheci em Dezembro… na altura gordinhos, apenas era necessário um reforço na alimentação materna – afinal encontrávamo-nos na época da fome e eram duas crianças amamentadas por uma só mãe. Depois de três vindas ao nosso Centro de Recuperação Nutricional, a mãe não voltou mais…
Voltou agora, muito magra, com os pequenos a pesarem menos que em Dezembro. Pedia desculpas por não ter voltado, adoecera gravemente e “desconseguira” chegar na data marcada… tentara vir depois, mas as chuvas intensas elevaram o rio Lugenda [rico em fauna exótica – cobras, crocodilos, hipopótamos] acima da ponte, pelo que se resignou. Tornou a adoecer e só agora conseguira chegar.
Num desses períodos de pouca saúde, descreve que terá tido uma mastite, que lhe “secou” a mama direita. Então, era ver duas crianças-pele-e-osso, famintas, lutando por uma única mama que, de tão sugada, não é agora mais que um pedaço de tecido flácido.
Agora, já em recuperação – ela mais gordinha que ele, fruto da sua resistência a esses alimentos artificiais ricos em nutrientes [particularmente o maravilhoso pumply'nut - a maravilha da ciência, inpirada em Nutella], vão-me fazendo as delícias das minhas manhãs com os seus sorrisos marotos e caprichos típicos de crianças famintas…
Quem ousa dizer que não são uma delícia estes dois anjinhos?
A minha esperança é que o baby queira ir comigo um dia quando voltar!
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