No outro dia, na consulta, vi um menino com quatro anos, um talibanzinho de primeira água, que vinha por atraso de desenvolvimento da linguagem.
A mãe tinha um primeiro impacto absolutamente desconcertante. Metade do cabelo rapado e a outra metade curta e espetada, pintada de loiro, com dois piercings por cada prega facial, o olhar pueril e espantado de quem tenta não olhar para si própria para não ver o corpo de mulher, as marcas da maternidade, nem as finas rugas em torno dos olhos, por culpa dos anos que lhe arranhavam o rosto e lhe roubavam o olhar de menina. Porque, intimamente, a adolescência ainda não estava resolvida.
Era uma mãe eternamente espantada por aquele menino lhe chamar mãe, por aquele menino que lhe chamava mãe se comportar como um terrorista e não lhe obedecer prontamente como ser racional que deveria ser, por aquele menino não ser o companheiro de brincadeiras que idealizara. Todos os dias surpreendida por ser chamada de mãe. Por ser chamada à razão por um ser de quatro anos que lhe começava a ensinar que as crianças precisam de regras e limites, prémios e castigos tanto quanto do amor que sempre se dispusera a dar-lhe. E lhe dava todos os dias, apesar de todas as patifarias que lhe aprontava. A começar pelo facto de ter aparecido dentro dela sem aviso e sem planeamento prévio.
Passado o primeiro impacto, aquela mãe era um amor, bem disposta, muito afetuosa, numa relação de quase fusão com o menino, simbiótica, como são as relações de muitas mães que, por força das circunstâncias, ficaram frágeis e sozinhas a cuidar dos filhos. E esta mãe tinha ficado sozinha por sido vítima de violência doméstica, uma situação muito grave e muito prolongada.
Passado o primeiro impacto, esta mãe é mais uma das minhas heroínas.
À pergunta: "Tem alguém na família com doença psiquiátrica?", o novelo emaranhado que é a história deste menino desenrola-se à minha frente. Uma história de violência que já começara duas gerações antes:
- Bem, doutora, alguém na família com doença psiquiátrica... O pai também conta?
- Claro!
- Era toxicodependente, alcoólico e de vez em quando tinha explosões de fúria em que destruía tudo o que lhe aparecia à frente, e era violento para as pessoas de quem gostava.
- E o menino assistiu a essas cenas?
- Não, a violência física nunca assistiu propriamente, mas ouviu muitas discussões e tive momentos de me barricar com ele no quarto, com o pai aos pontapés à porta.
- Bem, mas então sentiu a sua tensão, a sua angústia...
- Sim, é verdade, viu-me chorar muitas vezes, viu-me desmoronar, ouviu discussões.
- E quais eram os principais motivos de discussão?
- Ciúmes. Ciúmes horríveis. Delirava com todos os homens que se aproximassem de mim menos de 20 metros.
- Mas, daquilo que se apercebeu, era uma pessoa que estivesse sempre dentro da realidade? Ou tinha ideias delirantes assim que não fizessem sentido ou pensamentos bizarros?
- Não, era uma pessoa que estava na realidade. Quer dizer... Se "metesse um ácido" é claro que saía da realidade, nas era só nessas circunstâncias.
- [Valha-me Nossa Senhora das Substâncias de Abuso!] Ok, já percebi...
Contou-me que nos últimos tempos, antes de ser obrigada a fugir com o filho, levando apenas a roupa que tinha vestida, andava sempre com uma bolsa dentro da roupa, encostada ao peito, com os documentos dela e do filho e dinheiro para as passagens de avião para Lisboa, para o caso de ser obrigada a fugir de repente.
A mãe ia falando do nascimento do menino, do pai que a controlava constantemente, revia-lhe todas as mensagens no telemóvel, lia todos os mails, toda a correspondência, ia busca-la ao trabalho, aparecia de surpresa sob qualquer pretexto. Seguia-lhe os passos ao minuto!
Ela e o filho escaparam com vida, com mais sorte que habitualmente, porque após a fuga não foram perseguidos nem tiveram ameaças por parte do pai. Mas as sequelas eram visíveis, na fragilidade da mãe e no comportamento disruptivo do menino. Não parava, não falava, não tinha um jogo construtivo ou organizado, piorava a olhos vistos se a mãe se afastasse ou mesmo se voltasse costas. E se lhe mandassem fazer o que quer que fosse, chorava, ficava aflito, tudo lhe doía, amuava, gritava.
Ai, valesse-me Nossa Senhora dos Aflitos. Como é que eu ia conseguir explicar àquela mãe que o menino precisava mesmo de regras e de pulso forte, porque o problema não era genético, como ela alvitrava e assumira desde o princípio: "Ele sai ao pai, doutora! O pai era igual em criança.".
- Não, mãe! O que ele sofre é de falta de fé!
- Falta de fé?! Como assim, falta de fé?
- A sua falta de fé nele e nas suas capacidades de se fazer obedecer como mãe. Ele não tem problema nenhum. Vai falar quando conseguir sair desta agitação tão grave. E para isso tem de ser firme com ele para lhe dar segurança sobre o que pode ou não pode fazer.
- Mas ele não me obedece em nada!
- Mas vai obedecer! Vamos fazer um plano, ok.
Entretanto uma colega minha afadigava-se em volta dele para o fazer sentar e começar a pegar nos lápis para um desenho.
- Queres desenhar a tua família, Rodrigo?
- Tim, 'tá bem!
- Então vá, podes escolher as cores.
Em três segundos o desenho estava acabado e o menino novamente aos saltos pelo gabinete de consulta.
- Então, Rodrigo, a tua família já está? - perguntei, meio zangada.
- Tim, tá.
- Rodrigo - chamou a mãe, suavemente -, só vejo ali três bolas. O que é aquilo?
- Tou eu, a mãe e a vó [esta eu percebi: "Sou eu, a mãe e a avó."]
- Não são, não, Rodrigo, são só três bolas.
- Não - respondeu o Rodrigo, como se nada fosse -, tomo tó de tima da tonte.
A mãe desatou a rir e traduziu:
- Somos nós de cima da ponte. É como se estivéssemos representados em perspetiva! Este miúdo não existe! Tem resposta para tudo e é preguiçoso como o caraças, Doutora! Sai ao pai, é o que eu digo, a doutora não me acredita.
- Não torne a vir com essa conversa, o que ele tem é que não se concentra dois segundos! E a mãe tem de ouvir o que eu tenho para lhe dizer ou ele não vai melhorar.
[Voltei a vê-lo há duas semanas. Não parecia o mesmo! E já falava muito melhor.]
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