terça-feira, 9 de setembro de 2014

[vozes brancas] o vasquinho da anatomia...

Ontem, na consulta, um menino adorável de três anos e meio acompanhava o irmãozinho recém-nascido à primeira consulta. Abri a porta, sorri para os pais e dirigi-me a ele em primeiro lugar. Dei-lhe um beijinho, admirei-me muito e em voz bem alta por ele estar tão crescido, perguntei-lhe pelas novidades e ele disse-me que tinha tido um irmão bebé, que gostava muito dele mas que preferia que já viesse a saber jogar à bola. Dei-lhe uns entusiásticos parabéns e que agora compreendia por que é que ele estava tão crescido, que isto de se ser o irmão mais velho faz crescer muito!

- Entre, Vasquinho, apresenta-me o seu mano? Ele porta-se bem, ou chora muito?
- Porta-se bem, só que às vezes chora muito e não quer mamar. Eu acho que ele chora muito quando quer ir para casa dele...
- Ah, mas a casa dele agora é a vossa casa... [Ups... Que parte disto é que ele não tinha percebido?]

O Vasquinho fulminou-me com o olhar, ante a cara de "eu-já-lhe-tinha-dito-isto-mil-vezes-não-adiantava-atirar-o-barro-à-parede-ainda-mais-uma-vez,-envergonhando-a-sua-família" de sua mãe e virou-me costas para ir para a mesa das brincadeiras. Os pais encolheram os ombros e tentaram começar a consulta. Erro crasso... O Vasquinho começou a atirar todos os objetos que tinha à mão contra a parede com estrondo, sinal sonoro de que estava zangado e a reivindicar a atenção que lhe cabia por direito sucessório. Tentei mudar de estratégia:

- Vasquinho, precisava aqui da sua ajuda, pode vir aqui lembrar-me para que serve o otoscópio?

E o Vasquinho, orgulhoso da sua função de ajudante, apressou-se a vir para o meu colo para me ensinar a trabalhar com o aparelho que descobria sempre, como por magia, coisas interessantíssimas dentro dos seus ouvidos.

- Lembra-se, Vasquinho, de quando foi operado aos ouvidos? - perguntou a mãe.
- Sim, claro, foi com este operoscópio! - respondeu o Vasquinho, com um ar de "dãh" de pré-adolescente.
- Ah, ele sabe! E o que é que tiraram de lá? - perguntei.
- Foi o Pateta!
- Isso mesmo! E o que é que lá meteram?
- Foi um túnel.
- Um túnel?
- Sim, um túnel azul para eu ouvir melhor a televisão e os meus pais a chamar.
- Pois, os seus tubinhos são azuis, sim. Olhe, e onde é que foi nestas férias?
- Fui para a casa da piscina.
- Ah, que bom e gostou de lá estar?
- Sim, mas o pai apanhou gelatina.
- Escarlatina - sussurrou a mãe, numa tradução disfarçada, a ver se não feria novamente a suscetibilidade do primogénito.
- Ah, que pena, e o menino não apanhou?
- Não, eu apanhei laranjas...
- Ah... - que conversa que para aqui vai, valha-me Santo António dos peixes - e como é que foi isso?
- Não conseguia falar.
- Ah, doutora, ele está a dizer que apanhou uma laringite. Diga-lá, Vasquinho, à doutora, como é que se chama aquela coisa na garganta que nós temos para conseguir falar?
- São as cordas musicais!
- Não, Vasquinho - repreendeu a mãe.
- Não o corrija, por favor! - Pedi à mãe, ao mesmo tempo que não conseguia evitar uma gargalhada - Ele é uma delícia a falar! Tive um colega de Faculdade que também era assim, derivava palavras da anatomia com uma graça... Era o nosso Vasquinho da Anatomia, como o da canção de Lisboa.

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