sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

[outras palavras] na procura de uma resposta...



Todos nós andamos a aprender a ser felizes. Acredito que andaremos toda a vida a fazer ensaios e experiências para encontrarmos verdadeiramente a felicidade. Um dia deste, numa das minhas visitas às comunidades, encontrei um ancião que me perguntou: “olhe para este povo como é pobre e feliz, o seu povo também é assim?” eu fiquei a olhar para aquele velho maconde. Não, porque não tivesse entendido a pergunta, mas o porquê de a ter feito a mim, que acabava de chegar àquela aldeia e pouco ou nada ainda tinha visto. Fiquei calado durante bastante tempo, a olhar para tudo e para todos. Depois de alguns minutos, de conversa comigo mesmo, respondi: “por agora não poderei dar uma resposta, talvez no fim da minha visita.” A visita durou três dias.

Alguém me tinha dito na sede da missão, para ter muito cuidado com as minhas respostas, de um modo especial, aos mais velhos das comunidades. Porque são pessoas que se preocupam com a grandeza dos corações que os visitam. Por isso, fazem muitas perguntas e analisam ao pormenor as respostas. Não se pode falar de qualquer maneira. Eles estão fartos de gente que lhes rouba os segredos, como os sociólogos, os antropólogos e os historiadores. Para eles, esses não sabem, nem entendem a sua forma de viver. Só vêm a realidade com a cabeça, sem o coração. Vão muito preocupados, em querer entender tudo, mas não sentem nada. Deixam o coração em casa, dizia um animador zonal, a propósito da pergunta que me tinha sido feita. Certamente, que aquele ancião olhou para mim como um possível ladrão de segredos. Ele queria que eu visse a cor das coisas não por fora, mas por dentro.

Aqui, o pulsar da vida é muito diferente do nosso. Nesta terra vermelha somos convidados a partilhar gestos simples: como um sorriso, um aperto de mão, um parar para escutar o que o outro tem para dizer... realidades que no nosso mundo ocidental já perderam alguma cor e encanto.

A vida deste povo tem muitos segredos. Ela manifesta-se como vêm as coisas; como as sentem; como as usam e apreciam; como vivem o dia-a-dia; como olham para a natureza, para a vida e para a morte; como se relacionam com os outros e com o mundo; como festejam as suas vitórias, nascimentos, derrotas, tristezas e mortes.

Durante aqueles dias, em que fui um deles, observei que ninguém estava triste, apesar de terem muitos motivos, para estarem aborrecidos com a vida. Muita gente, dias antes, tinha perdido familiares, que morreram de malária e de sida. A chuva caiu tão forte que destruiu as sementeiras, o que fazia prever mais fome, mais miséria e mais morte... Nenhum daqueles rostos tinha uma boa casa, uma mesa farta, automóvel na garagem, trabalho certo, ordenado ao fim do mês... mas mesmo assim, eu via nos seus olhos o brilho da vida, a esperança, a alegria de estarem vivos.

Este povo é rico em humanidade, porque sabem olhar sem protectores de luz, sabem comer sem talheres, sabem dançar sem sapatos, sabem falar com os outros que vivem longe sem necessitar de telemóvel, sabem dormir sem a preocupação do que vão vestir e comer no dia seguinte e sabem falar sem dizer palavras...

A sua forma de estar no mundo permite captar, sentir e viver uma felicidade, que os bens não nos permite ver, sentir nem viver. Por isso, observam mais com o coração do que com a cabeça. Acho que o grande segredo deles é esse. Não fazem muitos cálculos sobre o que têm ou o que podem vir a ter. Vivem o presente com intensidade e com muita humanidade.

Cada um vale por aquilo que é e não por aquilo que tem. Talvez essa seja a grande diferença que existe entre os nossos mundos. Estou a ver algumas pessoas, do nosso denominado primeiro mundo, que em humanidade deixam muito a desejar, mas porque têm muito dinheiro, são muitas vezes, apresentadas como modelos a seguir. Afinal a nossa pobreza é outra e a nossa felicidade é muitas vezes aparente.

Durante aqueles três dias em Bilibiza, uma aldeia no norte de Moçambique, vi como este povo sabe angariar tesouros como a gratuidade do encontro, a partilha do pouco que têm, os laços familiares que os unem e a ligação com o sagrado e a natureza. Tudo é misterioso.

Não quero generalizar raciocínios, nem muito menos dizer, que este mundo em que estou, é melhor do que aquele onde nasci. Já deve estar farto de ler e ouvir este tipo de assuntos... não se zangue, estou apenas a conversar consigo...ajudá-lo a pensar e pedir-lhe que responda comigo aquele velho maconde. Quero que olhe para si e para a sua vida e veja se é feliz. Isto tudo, porque ainda não dei uma resposta aquele maconde de 70 anos.

Eu continuo a aprender verdadeiras lições de vida no silêncio dos olhares e no mastigar simples das palavras. O livro da vida escreve-se com gestos de amor e de partilha, porque esses tesouros ficam para sempre nos nossos corações.

Texto do Pe. J. Torres, Missionário que viveu em Cabo Delgado no meio de Macuas e Macondes e, felizmente, ficou a amá-los como poucos.

1 comentário:

  1. Gostei particularmente da frase: " Eles estão fartos de gente que lhes rouba os segredos..."

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