Ontem, na urgência, um casal bem meu conhecido (aliás, conhecido de todos nós, que fazemos urgências de pediatria) vinha com o filho de dois anos e meio, bem disposto, cheio de vitalidade apesar da febre. Olho para o histórico enquanto o chamo pelo intercomunicador do meu gabinete: é a quarta vinda ao serviço de urgência no período de 24 horas (suspiro).
Mais de 60 vindas ao serviço de urgência no último ano. Motivo da presente vinda à urgência: febre. Das outras vezes também. Uma febre que não baixa, "tem tido 38, doutora, às vezes vai mesmo aos 38 e meio!" Replico, numa voz que pretende tranquilizar, que se trata de uma febre baixa. O pai responde-me, de súbito muito exaltado, que a temperatura normal dele é 35,9ºC, pelo que os 38 valem por quase 40, e com 37,8ºC já começa a ficar completamente de rastos e a tremer. (Suspiro) Enfim, um clássico. Vejo no processo que o menino tem história de convulsões febris. Daí o pânico dos pais, concluo.
Vejo também que já teve consultas de Neurologia por causa das convulsões, já fez exames que excluíram doenças graves e epilepsia. Que o pai também teve convulsões febris na infância. Está tudo escrito em todos os registos.
Tentei explicar que as convulsões febris são situações benignas, que o menino já estava medicado, que inclusivamente tinha mudado o antibiótico horas antes, da última vez que viera à urgência (certamente tinha feito a cabeça em água à minha antecessora) e que agora era preciso dar tempo ao tempo.
Nada feito. Do alto do seu metro e oitenta e muitos, o pai declarava-me que podia ser cigano, mas que também era médico de medicina chinesa, eu que não me atrevesse a contestar o que ele dizia. Que ele é que conhecia o menino. E sabia muito bem que quando o menino passava dos 38,2ºC, a parte do corpo do umbigo para baixo gelava, ao passo que a parte do corpo do umbigo para cima aquecia, e o cérebro ficava baralhado, sem saber se haveria de arrefecer a parte de cima ou aquecer a parte de baixo. E vai daí, pifava e fazia uma convulsão, capaz de o matar em dois minutos!
- Mas não adianta tentar evitar as convulsões, e as convulsões do seu menino são benignas e não deixam sequelas.
- Não são nada benignas, doutora, eu também as tive e chegaram a dizer à minha mãe que eu tinha morrido.
- Pois, mais me ajuda! E aqui está o senhor, saudável e sem problemas nenhuns. [Desta última parte não tenho tanta certeza, mas ficava bem na argumentação!]
Nada feito. O pai exigia que eu fizesse como os meus colegas costumavam fazer e que desse um medicamento na veia ao menino para lhe baixar a febre.
Mas eu, talvez por ter a parte do corpo acima do umbigo à mesma temperatura que a parte de baixo, não me deixei baralhar e afirmei-lhe que não iria agredir o menino com medicação na veia coisa nenhuma, que não havia razão para isso.
Levanta-se o pai e aproxima-se, com cara de quem me vai bater nos próximos segundos:
- Eu sou médico de medicina chinesa, mas também sou cigano, ouviu? Tenho a minha família ali fora! Vai ou não vai fazer o que eu lhe estou a pedir?
- Escute, o seu menino está bem, não há necessidade de o picar! E não nos resolve o problema, que daqui a quatro horas temos outra vez a febre a subir! Se calhar os senhores deviam ir novamente à consulta de Neurologia para se tranquilizarem. Temos centenas de meninos com convulsões febris e nenhuma família faz o que os senhores fazem. Não é normal, acreditem! [Oh, valha-me Santa Rita de Cássia, estou mesmo a pedi-las, é desta que vou levar porrada dentro do hospital!]
- Está bem, doutora. Mas enquanto a febre não baixar não vamos embora daqui.
- Pronto, é convosco [Ufa...], mas então vão para o jardim, não fiquem na sala de espera que ainda levam daqui outro bicho. [Desisto, se ficarem à porta da sala de reanimação também é com eles...]
Ao fim do dia saíram dali com indicação para procurarem um psicólogo...
... ou uma Ópera de Pequim :-D
ResponderEliminarCom um ramo de :-)
Parece um filme de terror, de facto...
ResponderEliminarA verdade é que para uns pais lidar com convulsões febris é mesmo assustador.
Falo como mãe de uma menina que teve três episódios de convulsões e claro que nunca cheguei a essas figuras mas que é duro é.
Sandra
É duro sem duvida alguma. O meu filhote também as teve até aos três anos. Calharam sempre quando estava sozinha, em casa, com ele. O pânico e o terror de alguém como eu que tinha um irmão com epilepsia e que, aos 27 anos, acabou por falecer durante um ataque. Voltar a ver o meu irmão a espernear no corpo do meu filho foi uma prova de fogo. Felizmente tive gente por perto que me explicou tão bem o benefício de uma convulsão que hoje aceito-a. No entanto o pânico da febre permanece. Hoje tem 6 anos e nunca mais fez nenhuma. O Universo deu-me cá uma dose Uff. Obrigada.
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