No outro dia, na consulta de uma criança de 4 anos que vinha por um atraso de desenvolvimento da linguagem, o pai do menino, juiz de profissão, perguntou-me assim, casualmente, enquanto eu o mandava despir e palpava a barriga, o que é que eu achava sobre a adoção por casais homossexuais e sobre a lei da co-adoção... Fiquei siderada! Era bom que a pergunta não resultasse de uma qualquer associação de ideias perversa, iniciada quando o mandei tirar a roupa do menino. Fiquei desconfortável e devolvi a pergunta com um ligeiro sorriso:
- Por que me faz essa pergunta?
A última coisa que eu queria naquele fim de dia era discutir questões de princípios, argumentar e contrargumentar com alguém que não conhecia bem, sobretudo sobre assuntos que para mim são óbvios e simples. Tanto mais que a criança tinha vários problemas muito mais urgentes de discutir do que o sexo dos anjos (ou, com maior propriedade, o sexo de seus pais). Mas quem é que no seu perfeito juízo tenta discutir questões deste calibre em plena consulta do próprio filho, valha-me Nossa Senhora do Bom-Senso!
- Ah, Doutora, desculpe, eu sei que a consulta é do meu filho, mas ando há que séculos para lhe perguntar isto porque no outro dia tomei uma decisão e não fiquei totalmente convencido... Tinha um menino que foi vítima de maus tratos por parte da mãe. Quando houve a denúncia foi hospitalizado e depois era preciso tomar uma decisão: ou bem que era institucionalizado ou ficava a viver com um tio que era homossexual e vivia com um companheiro.
- E que decisão tomou que o ficou a atormentar?
- Decidi entregá-lo ao tio.
- Mas esse tio não foi avaliado por um psicólogo ou um psiquiatra? Ou pelo menos um assistente social? O mais importante é saber se a pessoa a quem se entrega a criança é organizada do ponto de vista mental, se está disponível para acolher a criança e se tem capacidade para estabelecer uma boa relação com o menino.
- Foi isso tudo. E a assistente social e a psicóloga garantiram-me que ele tinha uma boa relação com o miúdo e o miúdo com ele.
- E então, que dúvidas teve?
- E a Doutora não teria dúvidas?
- Não, não estou a ver a razão da sua preocupação, de facto...
- Ok, doutora. Eu era contra, totalmente contra o direito de casais homossexuais adotarem crianças. Mas é curioso que neste caso eu também não tive dúvidas... Mas custou-me imenso tomar esta decisão. A doutora concorda?
- Claro! Ainda bem que conseguiu distanciar-se da sua própria opinião pessoal!
- Pois foi, doutora! Mas o que era a minha opinião comparada com a felicidade daquele menino?
Ah, grande homem! Dizem que só os fracos não mudam de opinião e este, apesar de pouco esclarecido nesta matéria, soube tomar uma decisão tendo em conta o superior interesse da criança! Dei-lhe os parabéns pela decisão difícil e descansei-o quanto ao facto de as crianças criadas por casais homossexuais não terem mais problemas psicológicos ou de desenvolvimento que as outras. E por ali ficámos, que ainda tínhamos entre mãos um caso igualmente difícil...
Que bom ler este episódio. Faz-me ter esperança na humanidade deste país.
ResponderEliminarNesta discussão da co-adopção é dito muito disparate. E um dos disparates é o de que, no caso de um progenitor morrer as crianças são institucionalizadas.
ResponderEliminarEu colaborei com uma CPCJ e sei bem o desespero que era encontrar alguém que quisesse assumir a responsabilidade de educar uma criança mal tratada. Uma instituição era SEMPRE o ÚLTIMO recurso. Não me esqueço de 3 irmãos que tinham inúmeros tios de alguma posição social e nenhum aceitou acolher aqueles meninos. Foi de partir o coração. E o esforço de sensibilização que foi feito...
Claro que estas decisões não devem ficar ao sabor das convicções de cada um. Mas, para mim, este é o exemplo do que eu conheci. O do bom senso.
Achei interessante a forma como o juiz analisou a questão, bem como, a sua decisão. De facto, o tema permite variados pontos de vista e, neste caso, numa mesma pessoa, formaram-se pelo menos dois. Terá prevalecido, quanto a mim o mais acertado. Porque o importa, acima de tudo, conforme acima escrito "...é saber se a pessoa a quem se entrega a criança é organizada do ponto de vista mental, se está disponível para acolher a criança e se tem capacidade para estabelecer uma boa relação com o menino ".
ResponderEliminarP.S. Todavia, também acho estranho que o próprio pai faça uma conversa destas na consulta do seu filho de 4 anos. Pontos de vista :-)
que bom. fico mesmo feliz por este homem que se superou, pelo menino que espero que seja feliz com o tio. ninguém, nenhuma criança merece ser mal tratada.
ResponderEliminarIndependentemente de eu concordar em absoluto, fico feliz por ver que há pessoas que ainda com duvidas, se deixam levar por boas Intuiçoes. Tenho amigos homossexuais e a mais plena certeza que dariam excelentes pais!
ResponderEliminarPara tudo e preciso bom senso, ultrapassando as regras legais... Muito bom!
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