domingo, 19 de agosto de 2012

[outras palavras] confissão de nãozinha, a feiticeira


Mulher curandeira...
(Malema, Nampula)

Sou Nãozinha, a feiticeira. Minhas lembranças são custosas de chamar. Não me peça para desenterrar passados. A serpente engole a própria saliva? Tenho que falar, por sua obrigação? Está certo. Mas fica a saber, senhor. Ninguém obedece senão em fingimento. Não destine ordem em minha alma. Senão quem vai falar é só o meu corpo.
Primeiro, lhe digo: não devíamos falar assim de noite. Quando se contam coisas no escuro é que nascem mochos. Quando terminar a minha história todos os mochos do mundo estarão suspensos sobre essa árvore onde o senhor se encosta. Não tem medo? Eu sei, você mesmo, sendo preto, é lá da cidade. Não sabe nem respeita.
Vamos então escavar nesse cemitério. Digo certo: cemitério. Todos os que eu amei estão mortos. Minha memória é uma campa onde eu me vou enterrando a mim mesmo. As minhas lembranças são seres morridos, sepultados não em terra mas em água. Remexo nessa água e tudo se avermelha. Lhe inspiro medo? Por essa mesma razão, o medo, eu fui expulsa de casa. Me acusaram de feitiçaria. Na tradição, lá nas nossas aldeias, uma velha sempre arrisca a ser olhada como feiticeira. Fui também acusada, injustamente. Me culparam de mortes que sucediam em nossa família. Fui expulsa. Sofri. Nós, mulheres, estamos sempre sob a sombra da lâmina: impedidas de viver enquanto novas; acusadas de não morrer quando já velhas. Mas hoje me aproveito dessa acusação. Me dá jeito pensarem que sou feiticeira. Está ver? Meus poderes nascem da mentira. 
Mia Couto in A Varanda do Frangipani

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