terça-feira, 2 de agosto de 2011

[subitamente, em xipamanine] try walking in my shoes




Se um dia fosses às compras a Xipamanine e te oferecessem laranjas cor-de-rosa, reconhecê-las-ias? E será que lhes conseguirias chamar laranjas? E saberiam a laranja? Obviamente que uma laranja cor-de-rosa não pode cheirar a laranja... Nem uma laranja roxa. Ou será que pode?
(Mercado de Xipamanine, Maputo)

Serve esta imagem para vos contar o que me aconteceu na semana passada. Era fim de tarde, depois de muitas consultas e estava finalmente num momento de boa disposição com uns amigos no ensaio do coro para o casamento de uma amiga minha. Entre duas músicas, no meio de muita conversa e galhofa, distraí-me e comecei a tocar o Jesu bleibet meine Freude, uma das poucas músicas que sei de cor, sem precisar de olhar para a partitura... É quase um automatismo quando estou com a guitarra sem nada para tocar. 

Ao meu lado, um amigo meu, um músico fantástico, olhou para mim e sorriu. Quando terminei, perguntou-me: "Que música é essa? Estavas a improvisar?" Ri-me às gargalhadas. Não porque tivesse graça, mas porque ele tinha conseguido manter de tal forma a entoação, que parecia mesmo não ter reconhecido a música. Era como se eu tivesse comentado Deus quer, o homem sonha, a obra nasce com um estudante de literatura brilhante e ele me tivesse perguntado a sorrir: "Ai que frase tão bonita, é sua?" O cómico vem apenas do eu-sei-que-tu-sabes-que-eu-sei.

Mas, no mesmo momento, o olhar dele não se cruzou com o meu: ele tinha ficado confuso. Eu também fiquei confusa. Como era? Um fervoroso admirador de Bach, a quem eu já tinha ouvido tocar várias cantatas inteiras de memória, agora não reconhecia esta? Sorri:

- Estás a ter uma branca... É o Jesu bleibet meine Freude.
Ele ficou ainda mais confuso. Quase me parecia agitado...
- Não, isso não é o Jesu bleibet! De maneira nenhuma!
Pareceu-me que de repente tinha ficado com o olhar vago, pálido, como se o tivessem ferido...
- Miguel, o que é que se passa contigo?!

E foi só naquele instante que ambos percebemos ao mesmo tempo o que se tinha passado. Que momento de imbecilidade, Santo Deus! O Miguel tem ouvido absoluto e eu tinha tido preguiça de tirar o transpositor da guitarra e portanto tinha tocado a música meio-tom acima. Foi o suficiente para ele não a reconhecer... É incrivel como o nosso cérebro às vezes nos prega partidas destas com coisas tão básicas!

Adenda: Ao contrário do post sobre a televisão, este contém uma moral. E tem um motivo. [Eu sou como a Duquesa do País das Maravilhas: "Tut, tut, child! Everything's got a moral, if only you can find it..."] Se isto acontece com coisas básicas como cores e meios-tons de uma escala, que dizer de emoções e sentimentos e seus significados para cada um? Às vezes para compreender alguém e nos colocarmos na pele do outro, temos de sair de todo um referencial de ideias e valores e não aceitar a imagem em espelho que à primeira vista nos pode parecer que vemos... Pronto era só isto. Isto e laranjas cor-de-rosa. E roxas. Voltamos para o mato já a seguir.

3 comentários:

  1. O assunto das laranjas cor-de-rosa não tem nadinha a ver com Photoshop? Referenciais, crenças, preconceitos, estereótipos,... fora isto, quem somos? Magnificamente bem escrito, como sempre.

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  2. Photoshop, claro! E sim, é precisamente isso. Não somos muito mais do que isso. O problema é que somos todos diferentes... Obrigada por vires aqui e partilhares das minhas dificuldades... ;)

    (um) beijo de mulata

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  3. Por vezes penso que "viemos ao mundo" para revelarmos a nossa individualidade, descobrir e viver a nossa genialidade. Por isso somos todos diferentes e todos geniais!

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