domingo, 29 de maio de 2011

[o meu hospital na zambézia] ah, mwanaka!

(continuando...)

Aproximo-me da cama de uma criança com insuficiência cardíaca e noto que está pior. A dificuldade respiratória acentuou-se. A mãe, como sempre, não arreda pé do seu lado, mas está apenas a assistir a tudo, impotente.

Antes desconcertava-me o olhar vago e a passividade (ou impassividade, não sabia dizer) com que presenciavam a doença até ao desenlace final. Arrepiava-me que nunca pedissem ajuda, que nunca me avisassem de que a criança estava pior, que ficassem apenas a assistir a tudo sem sequer tentar interferir. De tal forma isto era sistemático que uma tarde, acabada de chegar de uma saída para o mato, entrei na enfermaria e perguntei em voz alta em macua para todas as mães: "Está tudo bem com os meninos?" Ninguém respondera. Descansada porque, pelo menos naquele momento, não parecia haver nenhuma emergência fui buscar os processos para começar a ver os meninos. Nem dois minutos depois ouvi um grito: "Ah, mwanaka!" Uma criança tinha acabado de morrer mesmo nas minhas costas...

Quase me enfureci nessa altura. Era de desesperar! Como era possível?! Eu tinha estado ali. Eu tinha-me oferecido para ajudar. Qualquer mãe teria pedido ajuda... Será que lhe era indiferente a morte de um filho? Mas não. Não era assim tão simples... Nunca ninguém disse que era simples ser médico em África... E nunca ninguém disse que era simples resolver os problemas de saúde que assolam todo o continente... Se fosse simples a situação talvez não fosse tão catastrófica.

Depois, olhei bem mais no fundo dos olhos das mães das crianças em agonia e, para lá da passividade, do olhar que parecia imperturbável, para lá do eterno sorriso, vi um desespero, uma amargura, um quase abandono. Claro que não podia ser indiferença!

Esta mamã do menino com insuficiência cardíaca eu já conheço... De manhã perguntei-lhe:
- Quantos filhos tem, mamã?
- Quatro...
- E quantos estão vivos?
- Este só...

Que coração tão maltratado... Os olhares escurecem de vez em quando, mas são quase sempre impenetráveis...
 
(continua...)

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