quinta-feira, 6 de setembro de 2012

[welcome to mozambique] laços de família


Uma casa de família no Gilé, com panela, pilão e lenha à porta.
(Gilé, Zambézia)


Há dois dias, o comentador honoris causa deste mato (o lendário leitor que conseguiu provar-me, com provas de site meter, que era possível vir dar aqui, ao beijo-de-mulata, sem ser à procura de "mulatas nuas ou mulatas selvagens") colocou uma pergunta colectiva no facebook: Como seria que se dizia "irmã" em Changana*, alguém sabia?

Esta pergunta, aparentemente tão banal para um europeu, lançou o caos. Qualquer língua que se preze tem uma palavra para designar um filho da mesma mãe e do mesmo pai. Por vezes acrescenta-se uma expressão, mais ou menos sofisticada, para denotar um irmão que o seja apenas por parte do pai ou da mãe, como em Português**. E também não me choca que existam línguas em que a palavra irmão e irmã sejam a mesma, acrescentando-se em seguida uma partícula que defina o género, tal como em algumas línguas africanas em que, deliciosamente, se especifica se é um irmão "com azagaia" ou um irmão "com cesto".
 
Mas as relações de parentesco em Moçambique são complexas. E a relações determinantes para se considerar uma pessoa como "família" numa determinada cultura dependem da estrutura da sociedade. Por exemplo, numa sociedade matrilinear, como a sociedade macua***, que é a única que conheço mais ou menos bem, os descendentes de uma matriarca consideram-se todos irmãos. De tal modo que não existe a palavra "primo" e muito menos "primo em segundo ou terceiro grau".
 
E imagino até que esta situação não seja exclusiva dos macuas: uma vez, no meu hospital, estava eu a assistir ao parto de um bebé filho de pais naturais da Guiné-Bissau e a fazer-lhes as perguntas da praxe (se eram saudáveis, que idade tinham, se pertenciam a famílias diferentes), quando uma resposta me deixou estarrecida: eram irmãos! Irmãos?! Ai, valesse-me Santa Rita de Cássia...
 
Devo ter feito uma cara tão desconcertada que os pais também ficaram assustados. Mas foi então que me lembrei que as relações familiares podiam ter designações diferentes das nossas e eles ainda não saberem disso porque só viviam em Portugal havia dois ou três meses. Decidi-me a fazer a árvore genealógica e percebi que afinal eram primos em terceiro grau! Consanguíneos, é certo, mas enfim... podia ser muito pior!
 
A este propósito, a minha amiga M., voluntária durante quase dois anos em Moçambique, conta muitas vezes que houve um aluno que certa vez lhe disse que o colega com quem estava a brincar era seu irmão. "Mas vocês não vivem na mesma casa, pois não?", intrigou-se. Ao que ele lhe respondeu prontamente: "É meu irmão, mas é da barriga da minha tia, por isso não vive na minha casa, vive em casa dela!"

* Dialecto do sul de Moçambique.
** Os clássicos irmãos uterinos, irmãos consanguíneos ou irmãos germanos.
*** Etnia que habita as províncias do norte de Moçambique.

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