sexta-feira, 8 de junho de 2012

[as melhores do serviço de urgência] vómitos persistentes

A propósito do post anterior, em que se fala da minha experiência de encontro imediato com a língua de Camões em momentos de estômago revolto, lembrei-me de outro encontro aqui há atrasado, desta feita com uma entidade nosológica da nossa cultura... Uma doença em que os meninos também "gomitam" e não comem de maneira nenhuma.

Ora, estava eu no serviço de urgência, quando chamei uma menina de 15 meses com um ar de quem tinha estado a chorar desesperadamente pouco tempo antes e a deitar pus e sangue dos dois ouvidos. Estava relativamente calma, mas os pais, jovens e cuidadosos, vinham absolutamente transtornados. Que a filha há vários dias que não comia, tinha náuseas quando lhe ofereciam comida, vomitava se a forçassem a comer, não dormia e passava as noites a chorar.

E mais alguma coisa que tivessem notado na menina?, perguntava eu. Que não, que mais nada, mas que esta tarde tinha tido uma crise de choro inconsolável e depois começara a sangrar dos ouvidos. Que tinham era de ir à bruxa, desabafava a mãe...

E eu lá ia respondendo, calma, então, que não era caso para isso, que havia doenças muito piores...

Pedi para despirem a menina. Olharam um para o outro, meio comprometidos, meio cúmplices, como quem se pergunta: "E agora, como é que vamos sair desta?" A mãe, envergonhada, lá começou literalmente a descalçar a bota... Por dentro da roupa, a menina tinha uma fralda enrolada na cintura, bem presa por um alfinete-de-ama que me custou a desapertar. "Mãe, porque é que lhe pôs esta fralda tão apertada? Olhe que isto não faz bem." E eis que, por dentro da fralda, me deparo com uma couve nauseabunda e cheia de gordura de azeite e óleo a toda a volta da barriga. Mas o que era aquilo, senhores, valesse-me São Gregório?!

 - Sabe, doutora, nós estávamos preocupados porque ela não comia e só vomitava e a minha sogra não parava de nos moer o juízo a dizer que o que a menina tinha era o "bucho virado", que é uma doença das crianças, a doutora já ouviu falar?
- Ah, e então?
- Então levámo-la a uma senhora em Caneças para lhe fazer umas rezas e "desvirar o bucho" com azeite na barriga e no fim ela enrolou-lhe esta couve "para o bucho não fugir". Mas a reza deve ter corrido mal, porque a menina agora começou a sangrar dos ouvidos.
- Está bem, está bem, vamos lá ver o que tem a menina. Mas olhe, o mais provável é que a menina não tivesse o "bucho virado", o que deve ter acontecido é que a menina já estava com uma infecção nos ouvidos há mais dias e por isso é que chorava tanto, vomitava e não queria comer.
Os pais entreolharam-se, genuinamente aliviados, como se tivessem visto Deus!

Afinal não é só em Moçambique que existem doenças tradicionais!

2 comentários:

  1. Bucho virado, mau olhado ou quebranto,a zona...
    Há para tudo, para o menino e para a menina!

    Beijo da cidade das acácias

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