domingo, 9 de março de 2014

[atualidades] parentalidades

No outro dia, na consulta de uma criança de 4 anos que vinha por um atraso de desenvolvimento da linguagem, o pai do menino, juiz de profissão, perguntou-me assim, casualmente, enquanto eu o mandava despir e palpava a barriga, o que é que eu achava sobre a adoção por casais homossexuais e sobre a lei da co-adoção... Fiquei siderada! Era bom que a pergunta não resultasse de uma qualquer associação de ideias perversa, iniciada quando o mandei tirar a roupa do menino. Fiquei desconfortável e devolvi a pergunta com um ligeiro sorriso:

- Por que me faz essa pergunta?

A última coisa que eu queria naquele fim de dia era discutir questões de princípios, argumentar e contrargumentar com alguém que não conhecia bem, sobretudo sobre assuntos que para mim são óbvios e simples. Tanto mais que a criança tinha vários problemas muito mais urgentes de discutir do que o sexo dos anjos (ou, com maior propriedade, o sexo de seus pais). Mas quem é que no seu perfeito juízo tenta discutir questões deste calibre em plena consulta do próprio filho, valha-me Nossa Senhora do Bom-Senso!

- Ah, Doutora, desculpe, eu sei que a consulta é do meu filho, mas ando há que séculos para lhe perguntar isto porque no outro dia tomei uma decisão e não fiquei totalmente convencido... Tinha um menino que foi vítima de maus tratos por parte da mãe. Quando houve a denúncia foi hospitalizado e depois era preciso tomar uma decisão: ou bem que era institucionalizado ou ficava a viver com um tio que era homossexual e vivia com um companheiro.

- E que decisão tomou que o ficou a atormentar?

- Decidi entregá-lo ao tio.

- Mas esse tio não foi avaliado por um psicólogo ou um psiquiatra? Ou pelo menos um assistente social? O mais importante é saber se a pessoa a quem se entrega a criança é organizada do ponto de vista mental, se está disponível para acolher a criança e se tem capacidade para estabelecer uma boa relação com o menino.

- Foi isso tudo. E a assistente social e a psicóloga garantiram-me que ele tinha uma boa relação com o miúdo e o miúdo com ele.

- E então, que dúvidas teve?

- E a Doutora não teria dúvidas?

- Não, não estou a ver a razão da sua preocupação, de facto...

- Ok, doutora. Eu era contra, totalmente contra o direito de casais homossexuais adotarem crianças. Mas é curioso que neste caso eu também não tive dúvidas... Mas custou-me imenso tomar esta decisão. A doutora concorda?

- Claro! Ainda bem que conseguiu distanciar-se da sua própria opinião pessoal!

- Pois foi, doutora! Mas o que era a minha opinião comparada com a felicidade daquele menino?

Ah, grande homem! Dizem que só os fracos não mudam de opinião e este, apesar de pouco esclarecido nesta matéria, soube tomar uma decisão tendo em conta o superior interesse da criança! Dei-lhe os parabéns pela decisão difícil e descansei-o quanto ao facto de as crianças criadas por casais homossexuais não terem mais problemas psicológicos ou de desenvolvimento que as outras. E por ali ficámos, que ainda tínhamos entre mãos um caso igualmente difícil...

6 comentários:

  1. Que bom ler este episódio. Faz-me ter esperança na humanidade deste país.

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  2. Nesta discussão da co-adopção é dito muito disparate. E um dos disparates é o de que, no caso de um progenitor morrer as crianças são institucionalizadas.
    Eu colaborei com uma CPCJ e sei bem o desespero que era encontrar alguém que quisesse assumir a responsabilidade de educar uma criança mal tratada. Uma instituição era SEMPRE o ÚLTIMO recurso. Não me esqueço de 3 irmãos que tinham inúmeros tios de alguma posição social e nenhum aceitou acolher aqueles meninos. Foi de partir o coração. E o esforço de sensibilização que foi feito...
    Claro que estas decisões não devem ficar ao sabor das convicções de cada um. Mas, para mim, este é o exemplo do que eu conheci. O do bom senso.

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  3. Achei interessante a forma como o juiz analisou a questão, bem como, a sua decisão. De facto, o tema permite variados pontos de vista e, neste caso, numa mesma pessoa, formaram-se pelo menos dois. Terá prevalecido, quanto a mim o mais acertado. Porque o importa, acima de tudo, conforme acima escrito "...é saber se a pessoa a quem se entrega a criança é organizada do ponto de vista mental, se está disponível para acolher a criança e se tem capacidade para estabelecer uma boa relação com o menino ".

    P.S. Todavia, também acho estranho que o próprio pai faça uma conversa destas na consulta do seu filho de 4 anos. Pontos de vista :-)

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  4. que bom. fico mesmo feliz por este homem que se superou, pelo menino que espero que seja feliz com o tio. ninguém, nenhuma criança merece ser mal tratada.

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  5. Independentemente de eu concordar em absoluto, fico feliz por ver que há pessoas que ainda com duvidas, se deixam levar por boas Intuiçoes. Tenho amigos homossexuais e a mais plena certeza que dariam excelentes pais!

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  6. Para tudo e preciso bom senso, ultrapassando as regras legais... Muito bom!

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