terça-feira, 28 de setembro de 2010

[lamúria em dó de mim] estou com a cabeça em áfrica



Sinto-me estranha de cada vez que tomo um banho de água quente... Comovo-me com a água nas torneiras. O próprio facto de existirem duas torneiras gémeas na banheira me emociona profundamente. Inspecciono o chão e as paredes da casa-de-banho quando me estou a despir porque ainda não me passou a imagem de todos os bichos que se cruzaram comigo nessas circunstâncias e me fizeram brotar várias vezes, das profundezas da alma, um quase dó sobreagudo. Num vibrato aflitivo. É em momentos como estes que se descobrem profundidades de carácter nunca antes suspeitadas... Ofendo-me visceralmente se não me colocarem doce de manga na mesa do pequeno-almoço. A própria expressão pequeno-almoço me soa despropositada (para quê tomar um cinzentão de um pequeno-amoço quando o verbo mata-bichar nos pode fazer sorrir gratuitamente?). Só entro no carro pelo lado certo porque era quase sempre a R. a conduzir. Ou a Irmã Lurdes. Mas, mesmo assim, a disposição do carro e das estradas está profundamente errada...  Ainda tenho o gesto automático de tentar matar todos os mosquitos que me passam pelos olhos e lembro-me de procurar o repelente sempre que anoitece. Fico confusa quando oiço carros a passar durante a noite ("Quem será a chegar a esta hora?!"). Sobretudo angustia-me a perspectiva de os dias, as horas, a vida terem menos sentido deste lado do mundo...

domingo, 26 de setembro de 2010

[áfrica, meu amor impossível]



(Gilé, Zambézia)

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto in Raiz de Orvalho e Outros Poemas

[estado em que se encontra este blog] com a cabeça em áfrica

Ainda sem crer que já regressou...
(Nascer do sol no Índico)