Um quarto de bebé ao estilo Montessori. Daqui.
(Continuando a história da longa caminhada que me levou o baby-de-mulata para casa... Interrompemos por causa do 25 de abril, de um surto de sarampo em Moçambique e outro em Portugal, de um devaneio literário por terras da Zambézia e o mito de origem da primeira mulher Moçambicana, em honra à Exma. Prof. Doutora Ruiva, mas sobretudo uma alegoria à adoção e infertilidade, e de uma, já lendária, crise de soluços de proporções épicas, mas estamos de volta. Não é fácil escrever sobre isto, essa é que é essa, portanto não se admirassem se demorasse ainda mais a continuar... Animem-se que desta vez já estamos mais perto do fim, não era preciso terem reclamado tanto, que diabo. Isto custa. Muito)
Uma semana depois de a diretora do centro de acolhimento onde estava o baby me ter ligado a dizer que enquanto não tivesse o certificado da Santa Casa em como estava apta para adoção não poderia ir mais visitar o menino, o baby foi ao meu hospital. Tinha consulta marcada e uma série de exames para fazer. Eu nem consigo descrever em que estado estava. Tinha voltado a chorar todos os dias, ainda para mais com a agravante de ser julho, o mês em que o meu "quase filho" tinha falecido... Grief is the price to pay for love, ia repetindo, resignada...
Estava no corredor do hospital, completamente absorta na minha dor quando me cruzei com ele. Sabia que vinha, claro, mas não o esperava tão cedo. Vinha acompanhado por duas funcionárias do centro de acolhimento, que não me conheciam. Fiquei radiante por vê-lo, mas ele estava completamente alheado, olhando para o lado e evitando qualquer contacto ocular. Agora percebo, mas na altura não conseguia relacionar todos estes acontecimentos, que ele estava profundamente magoado porque estava a reconhecer o espaço onde tinha vivido e de onde tinha sido levado sem uma única hora de transição, sem entender o que se passava. Magoado com as pessoas que estava a reconhecer e que, na cabeça dele, o tinham abandonado. E confuso por não saber se o traziam para ficar na casa que o abandonara ou se o levariam para a casa de que ainda não gostava, mas a que começava a habituar-se. Estava aterrorizado...
Tentei tirá-lo do carrinho e pegar-lhe ao colo. Estava eufórica porque ele estava ali comigo, mas ele também estava magoado comigo porque deixara de aparecer para o visitar. E pior, estava de bata branca, como todos os da casa maldita que o abandonara! Resistiu à minha tentativa de lhe pegar ao colo. Agarrou-se ao carrinho com todas as suas forças. A amiga que estava comigo ficou tão incomodada com aquele espetáculo angustiante que teve de se ir embora. Resolvi não o forçar. Claramente estava tudo a ser demais para ele.
Perguntei o que se passava às funcionárias.
- Não sabemos, ele hoje está estranho. Não é só consigo. Até vinha bem disposto, mas quando entrou no hospital ficou assim. Até chorou para a médica dele e não quis ir para o colo dela. Eles tinham uma adoração um pelo outro.
- E ela, o que disse?
- Disse que achava que era bom que ele a estivesse a estranhar, que queria dizer que se estava a vincular a outras pessoas.
Mas não, não era nada bom. Ele estava era muito triste porque todos se tinham esquecido dele e para um bebé é impossível elaborar tantas perdas. Tantas mudanças e tantos lutos para fazer, tantas ameaças juntas no mesmo espaço e no mesmo momento.
Demorou muito tempo a reconhecer-me. Tirei a bata. Cantei-lhe as nossas músicas, fiz as nossas brincadeiras. Até que por fim começou a sorrir, mais descontraído. Mas continuava a não olhar para mim nem para ninguém.
Ao final do dia eu já não estava em mim. Grief is the price to pay for love? Não, não me conformava. O meu menino não podia pagar esse preço. Eu podia, mas ele não! Tinha testemunhado o sofrimento do meu menino e percebido que era cada vez mais difícil chamá-lo à realidade e fazê-lo descontrair-se. Ele estava a perder-se "do lado de lá".
Falei com a equipa da Santa Casa, pessoas extraordinárias, disponíveis e incansáveis, que me disseram que não sabiam por que razão a equipa de adoções local me estava a impedir de ir visitar o menino e que não existia qualquer recomendação nesse sentido. Foi então que liguei de novo à diretora do centro de acolhimento. Com a minha voz de quem não aceita um não como resposta. Que não podia ser. Que o menino estava num sofrimento brutal. Que não podia aceitar que as coisas andassem assim até já não haver solução para ele.
Respondeu-me que não podia mesmo ir contra a decisão da equipa local, mas que se o quisesse ir visitar ao jardim de infância ela não seria obrigada a reportar as visitas. Só as que eu fizesse no centro de acolhimento.
Acho que me nasceu uma alma nova! No dia seguinte estava de folga, pelo que me pus a caminho. A educadora estava à minha espera e acolheu-me muito bem. Cheguei na hora da sesta da manhã, mas ele era o primeiro a ser acordado para ter tempo de fazer a medicação toda que ainda tomava antes de almoço.
- Quer ir dar-lhe a medicação e o almoço para a outra sala?
- Claro! - os olhos brilhavam-me.
Comparada com a sala de visitas do centro de acolhimento, despida e tórrida, aquela sala de jardim de infância era o paraíso! Mesmo para sala de berçário era genial! Bem ao estilo Montessori, tinha espelhos ao nível das crianças, uma piscina de bolas, uma tenda, várias bolas de pilates e brinquedos bem arrumados e ao alcance dos meninos. Ele ainda não gatinhava nem se deslocava de qualquer forma, embora já tivesse 14 meses. Mas dessa vez aceitou vir-me para o colo. Continuava a evitar o olhar, mas, surpresa das surpresas, começou a seguir o que eu fazia. A olhar para as fitas que revoluteavam presas a um boneco. Até que começou a seguir o que eu fazia no espelho. E, de repente, ao seguir as fitas que eu agitava mais à altura dos meus olhos, encontrou-se com os meus no espelho. Foi a primeira vez que olhou nos meus olhos! No espelho. E, milagre dos milagres, desprevenido, sorriu-me! Foi um encontro demorado. Dei-lhe o boneco e começou a imitar os meus gestos.
Sentei-me no chão, com ele no meu colo, voltados para o espelho e comecei a cantar uma canção com gestos e ele começou a imitar-me. Como se soubesse imitar desde sempre! Nesse momento a educadora entrou para me levar o almoço dele. Encontrou-nos a fazer gestos e caretas ao espelho e ficou estupefacta.
- Mas ele não imitava! Que milagre foi esse?
- Pois não, nem olhava, mas ao espelho imita e já me olhou nos olhos!
- Que maravilha! O amor faz milagres. Então veja se lhe consegue dar a sopa e a fruta. Ele connosco não come fruta de maneira nenhuma. Pode ser que consigo coma.
- Obrigada.
Ao almoço aconteceu outro milagre. Ele comia a sopa lindamente, desde que não tivesse grumos, mas cerrava a boca para a fruta e não abria mais. Nem com palhaçadas nem com nada que eu fizesse. Até que quando lhe estava a tentar dar a fruta novamente me tocou no braço e apontou para a sopa. Assim como quem diz, "É aquilo que eu quero, será que tenho de explicar tudo?"
Então o meu menino olhava nos olhos, imitava e apontava? Mesmo que por breves instantes. Não podia ter autismo nenhum! Agora sim, tinha a certeza de que estava no caminho certo! Fui falar com a diretora. Estava feliz! Mesmo feliz! Agradeci-lhe muito. E ela também me agradeceu:
- A educadora já me veio dizer! Olhe, mesmo que ele não venha a ser o seu filho, já nos salvou o menino! Já não sabíamos o que lhe fazer...
Claro que isto foram momentos fugazes. Ele não olhava consistentemente. Não voltou a apontar nas semanas seguintes nem a tentar comunicar de maneira nenhuma. Quase a ponto de me fazer duvidar do que tinha visto, mas estava feliz demais para me colocar em causa. Eu estava a travar a maior luta da minha vida. Não tinha espaço interior para duvidar...
No dia seguinte era sexta-feira e eu estava angustiada porque tinha de trabalhar nesse dia e não o poderia ver no fim de semana. Felizmente o menino ficou doente e foi internado no hospital local. Uma bronquiolite e uma otite. Nada de grave, mas decidiram interná-lo por precaução, dados os antecedentes tão graves. Fiquei eufórica. Estava no meu elemento! Ia poder vê-lo todos os dias enquanto estivesse internado. Vesti a bata e fui para o hospital, onde os meus colegas me conheciam e me deixaram ficar todo o tempo. A funcionária que estava com ele e com outra bebé do centro de acolhimento agradeceu-me porque comigo ali poderia ficar mais livre para cuidar da bebé que estava muito mais doente do que ele! Eu é que agradecia, respondi.
Nesses dias o baby parecia que tinha renascido. Olhou-me muitas vezes, começou a tentar deslocar-se sentado, muito inseguro, mas lá avançava uns centímetros de cada vez. Eu sou chata como a potassa e aproveitei cada momento para puxar por ele... Saiu do internamento a seguir tudo com o olhar, a deslocar-se melhor e a rir às gargalhadas.
(continua...)