sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

[vozes brancas] corpo estranho

No outro dia, estava de banco no meu hospital e chamei uma menina de três anos e meio. Classificada com cor amarela na triagem, sinal de que o caso inspirava algum cuidado ou que precisava de ser assistido com uma certa urgência. Olhei para o relatório da equipa de enfermagem enquanto aguardava que a menina me chegasse ao gabinete de observação: "Suspeita de ingestão de corpo estranho." Suspeita?! Como assim, suspeita? Com três anos e meio já sabe dizer o que foi que aconteceu... Isto promete!

Felizmente a criança vinha a respirar sem dificuldade, sem sinais de ter um corpo estranho encravado numa qualquer parte do tubo digestivo ou aparelho respiratório e sem outros sinais de alarme. Falava animadamente com a avó no momento em que entrou no meu gabinete, mas assim que me viu, o seu semblante fechou-se, carrancudo, e de dedo em riste apontou-me logo ali de caras que eu era culpada do maior pecado da Pediatria:

- Tu não és a minha médica!

O tom zangado avisava-me de que não estava para brincadeiras. Eu que me pusesse a pau, que já tinha sido descoberta com a boca na botija, em plena prática ilegal de Medicina! Ao olhos daquela juíza de palmo e meio eu deveria ser condenada de imediato e restabelecida a ordem pública!

- Pois não - confessei de imediato, que quem diz a verdade não merece castigo -, é verdade, não sou a tua médica. E quem é a tua médica, princesa?
- Tu não és a minha médica, eu quero a minha médica!

Resolvi mudar de estratégia:
- Mas olha, eu sou muito amiga da tua médica. Foi ela que me disse para falar contigo e te ver.
- Mas eu só quero a minha médica. Tu não és a minha médica! A minha médica é castanha e tu és loira!
[Mau! Então agora não só me acusava de não ser quem deveria ser como ainda me discriminava pela cor da pele? Bem, o melhor seria ignorar, que estava visto que por ali já não íamos a lado nenhum...] - Está bem, linda, mas olha, o que foi que tu engoliste?
- Não dizo!

Olhei para a avó: o que se passara? Que também não tinha a certeza, mas que a meio da tarde começara a dizer que tinha comido uma coisa e por isso queria ir à médica...
- Ah, e ela não disse o que foi?
- Não, não dizo! Eu quero a minha médica!
- Pois, doutora, já me passou pela cabeça de que tenha dito isto só para chamar a atenção e ir ao consultório da médica, que ela adora a sala de espera dela!
- Ah... não viu nada nem lhe notou nada?
- Não... Mas não estou nada descansada. E se é verdade?
- Bem, podemos ir fazer um raio x.
- Está bem...

Por fim regressou, com a avó cabisbaixa e com cara de quem enfiou o maior barrete do último ano... Fosse o que fosse que tivesse ou não engolido, não era radiopaco de certeza!
- Princesa, diz lá o que foi que engoliste, vá!
- Não dizo, já disse! Eu quero a minha médica!
- Pronto, pronto, deixe estar Doutora. Não podemos ter a certeza, que ela não vai dizer mais nada.

E, de facto, não dizeu! Mas a sério que fiquei mesmo bem disposta! Esta miúda vai longe! O que se perde em simpatia e flexibilidade, ganha-se em assertividade e determinação!

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

[outras palavras] patologias...



 
Já saiu o Psicopatos, um livro sobre o maravilhoso mundo da psicopatologia, ciências psicológicas e psicanálise selvagem!
Desculpem, só hoje o descobri e serviu-me tão bem a carapuça... Parabéns, senhor Montenegro!

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

[nomes que dizem tudo] trava línguas

No outro dia recebi um pedido de consulta lá no hospital de uma criança de 4 anos por atraso de desenvolvimento da linguagem. A informação clínica vinha reforçada com um "ainda não diz o próprio nome", não me recordo se com ponto de exclamação ou sem ponto de exclamação, mas num tom manifestamente preocupado. Olhei para o nome. Eu própria não o consegui dizer bem à primeira: o menino chamava-se Vicente* Vila Chã Sargento. Raios, pois que até o nome era um trava-línguas, pobre criança... * Nome obviamente fictício, mas do mesmo calibre linguístico.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

[vozes brancas] vamos fazer um piquenique!

Há algumas semanas, eu estava de saída de um banco de inverno particularmente chuvoso e griposo, em casa, exausta, a tomar conta do baby-de-mulata e de Baby M., o primo quase-gémeo do meu filho, à espera que a empregada chegasse para lhes dar o almoço, que eu sozinha nestas alturas não consigo....


Eles estavam divertidíssimos a brincar gatinhando num túnel, que ora era o acesso ao castelo, ora era o "túnel do tempo", que desembocava na piscina de bolas, pomposamente apelidada de Algarve: "Vamos para o Algarve, adeeeeeus!". Atividades estas que iam intervalando com miminhos à mamã/ titi (nomes que me dão indistintamente, dependendo que qual me chama primeiro. Ou para onde lhes dá, ainda não percebi bem).


Nisto, depois de uns beijinhos e festinhas particularmente carinhosos, adormeci consolada no sofá, embalada pelas gargalhadas felizes dos meus amores.


Dez minutos depois (conforta-me a consciência pensar que foram apenas dez minutos, mas não tenho qualquer argumento, mesmo circunstancial, que o prove), acordei com gargalhadas vindas de mais longe e com Baby M. a dizer qualquer coisa como: "Sim, mais!"


- Meninos, onde estão? - perguntei do sofá, ainda esperançada de que estivessem apenas a brincar noutro sítio. A resposta foi aquele "hihiiiii" nervoso, que eles fazem quando são apanhados com a boca na botija e que me faz sempre tremer quando o oiço... Desta vez vindo da cozinha. Pronto, não havia nada a fazer: estava o caos instalado, valesse-me São Brás!


Pois que chego à cozinha e vejo uma toalha no chão, os babies sentados à chinês, um de cada lado, e com uma quantidade incrível de comida espalhada pelo chão, as bocas sujas de uma amálgama quase indistinguível de Cerelac, cereais, frutos secos e doce de morango. Bancos colocados em frente ao frigorífico e às prateleiras da despensa denunciavam que os meus talibanzinhos tinham planeado deliberadamente o ato ilícito.


Pelo chão noto uma tentativa de bolo: pão, Cerelac, azeite e por cima, como meninos gourmet que são, umas ervinhas da Provença para temperar o cozinhado.


- Meninos, o que estão a fazer?
- Asneiras, mamã! Mas é um piquenique!


Alguém resiste? Ainda hoje estou a sorrir para dentro!