quarta-feira, 31 de outubro de 2012

[the silver lining] a (des)humanidade da crise

 
Imagem também daqui.

Com os sucessivos pacotes de austeridade, o governo grego determinou que os cidadãos que não possuíssem seguro de saúde tinham de pagar do próprio bolso os tratamentos hospitalares... Eu e os meus colegas temos falado muito nisto. Ainda estamos longe, esperamos, de uma situação semelhante... Mas eu sei que tentaria desobedecer até que me ameaçassem de despedimento. Depois provavelmente não conseguiria continuar a trabalhar. Não foi para isto que fiz um juramento de Hipócrates! Mas houve um grupo de médicos gregos que fez muito mais do que recusar-se a trabalhar... A notícia completa está aqui, mas não aconselho a pessoas sensíveis...
Elena conta que ficou chocada por, como parte do resgate, o Estado grego ter recuado em relação a um pilar de proteção da sociedade. Mas o facto de os médicos e os cidadãos comuns se organizarem para ajudar naquilo em que o Estado falhava deu-lhe esperança nos momentos mais sombrios. "Aqui, há pessoas que se preocupam", disse.
Para o Dr. Vichas, a terapia mais poderosa podem não ser os tratamentos mas a confiança que o grupo de médicos dá àqueles que quase tinham desistido. "O que ganhámos com a crise foi termo-nos aproximado", observa.
"Isto é resistência", acrescenta, olhando para os voluntários e doentes, que se movimentam pela clínica. "É uma nação, um povo que consegue voltar a pôr-se de pé, com a ajuda que as pessoas dão umas às outras."

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

[zambézia revisitada] histórias para o baby-de-mulata




 Houve tempos em que a viagem dos meus sonhos era ir até às plantações de chá do Gurué, perto das margens do rio Zambeze... Um dia hei-de voltar... com o baby-de-mulata!
(Gurué, Zambézia)

Como pano de fundo, o verde arrebatador e o mito da origem do primeiro homem mesmo ali ao lado, nas nascentes do Monte Namuli. Segundo a lenda macua, foi precisamente aqui que tudo começou, e o primeiro homem terá surgido na bruma de uma madrugada glaucomatosa, coberto de capim e de folhas, germinado a partir das raízes de um embondeiro e, depois de um urro original que tenho para mim que só não faz parte do mito porque ainda não estava lá mais ninguém para ouvir (porque homem que é homem grita quando nasce, e o primeiro homem só pode ter gritado de prazer olhando aquele céu de paraíso), depois de agradecer a Muluku, o Deus dos antepassados e beber das águas perfumadas das montanhas*, desceu calmamente em direcção à planície e começou a espalhar a sua semente pelo mundo.

(Adenda, por respeito à Prof. Doutora Ruiva, amiga deste mato: gostava que existisse um mito de origem da primeira mulher, mas suspeito que o primeiro homem macua se teve de desenrascar sozinho...)

*Que séculos depois alguém venderia sob a designação comercial genericamente inflaccionista de águas gourmet.

domingo, 28 de outubro de 2012

[vozes brancas* #81] o tapete do rato...

A filha de uma amiga, depois de horas a brincar ao pé da mãe, enquanto esta terminava um artigo de Medicina...

- Mãe, o que é isto?
- Bem... é um tapete para o rato.
- Ah... Mas tu queres mesmo que o rato venha? E se o rato vier ele precisa mesmo disto? O que é que ele faz com um tapete? Um tapete de actividades como o do mano?

sábado, 27 de outubro de 2012

[sem palavras] embora venham por aí certamente umas quantas!

Ontem foi um dia tão rápido. Talvez rápido demais para o ter sentido passar por mim! Um dia cheio de milagres.

De manhã adoro ouvir o baby no quarto ao lado acordar, senti-lo dar-se conta uma vez mais de que tem um cãozinho na cabeceira e começar a palrar com ele, num discurso com muitos ão-ão-ãos e muitos pa-pa-pas, que só ele sabe o que quererão dizer... Depois conversa mais um pouco com o urso e só depois, para aí meia hora depois, é que me chama... (Sim, eu sei que isto é um discurso um bocado mete-nojo, mas ando mesmo babada e a achar que o baby é perfeito, pelo que peço desculpa aos pais cujos filhos acordam antes das seis da matina, retemperados por cinco horas de sono e fazem soar a sirene para que todos se apercebam do facto...)

Mas ontem quase nem tive tempo de o ficar a ouvir. Levantei-o assim que acordou porque havia que estar pronto a tempo. Era o dia em que íamos conhecer a Sónia Morais Santos, a blogger mais querida da blogosfera nacional, que me deixou boquiaberta há uns dias, ao me convidar para uma entrevista! E sim, é tão simpática ao vivo como parece no blogue! O baby colaborou e dormiu o tempo todo que durou a entrevista. Mesmo quando me tive de "disfarçar" de africana (num estilo afro-chic, que se não existia acabou de ser inventado) e sair para tirar fotos, ele continuou a dormir placidamente.

Eu não gosto de tirar fotos, não gosto de me expor, nunca gosto de me ver depois, e fico desconfortável, sobretudo ao pé de profissionais, mas já que tinha de ser, que agarrasse o toiro pelos cornos... E lá tentei fazer o meu melhor.

Mas o melhor ainda estava para vir... A sala do Colombo estava cheia de pessoas maravilhosas que me encheram o coração! Alguns amigos de sempre, muitos colegas e amigos que sempre admirei mas que, no caso de alguns, não via há séculos, outras pessoas que quase não tinha esperança que viessem... Estava o missionário a quem devo a minha primeira ida e o inicio da minha paixão por Moçambique, as amigas R. e F., que embarcaram comigo para Moçambique, nesta aventura que é viver com quase nada, os digníssimos representantes da APARF, sem os quais talvez não tivesse tido a coragem de ir tantas vezes... As pessoas da clínica fantástica onde trabalho, desde o segurança até aos recepcionistas, passando pela directora, os colegas da Estefânia... E, calculem, estavam também a Ursa Maior, o que me deixou incrédula (e, confirma-se, pode carregar as culpas de toda a humanidade no peito!), a São João, a Cocó na Fralda, a Zu e alguns leitores anónimos deste mato!

E a minha querida Helena Marujo, ja anteriormente linkada, teceu-me um elogio tão rasgado que provavelmente só vou receber um elogio maior no meu funeral... Milagres que eu um dia gostava de fazer por merecer...

Obrigada a todos!

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

[welcome to mozambique] ou bem... em lisboa...

 
 E pronto, meus amigos, foi de vez: habemus librum! Já temos título (a editora recusou Beijo de Mulata como título, não se compreende... lol), temos capa, temos prefácio (dois prefácios, aliás, que não há fome que não resulte em fartura, lá diz o povo!), temos resumo, dedicatória, agradecimentos e tudo o mais que era preciso para sair um livro como deve ser. E temos também apresentadora, a minha querida Helena Marujo, a mulher mais optimista e encantadora que conheço! Parece-me que podemos avançar que, na sexta-feira, a FNAC vai ser mato!

sábado, 20 de outubro de 2012

[vozes brancas* #80] poesia em estado puro

Há crianças em cujas vozes conseguimos ouvir e rever a poesia e sensibilidade das mães...

Ontem o filho de uma amiga, agora com sete anos, dizia que acharia lindo que nós pudéssemos nascer de dentro da terra e não da barriga das mães. Ao que ela retorquiu que os bebés estão certamente mais confortáveis dentro do útero materno. "Mas nós somos pessoas do mundo e filhos da terra!", foi a resposta dele...

* Timbre da voz das crianças antes da puberdade.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

[ihali sahu] notícias nossas

Interrompemos este silêncio para explicar que andamos muito ocupados porque o baby-de-mulata está a aprender a andar! Eu, que não sabia o que era uma dor de costas até baby M. (o meu sobrinho mais novo) ter nascido, estou agora a começar a perceber nos costados o sentido da palavra "cruzes"... Eu achava-me imune a esse tipo de achaques, calculem! Mas tem valido a pena.

Quando chegou cá a casa, há um mês, o baby não se conseguia sequer pôr de pé! Na primeira noite, de tal forma estava excitado e com vontade de sair da cama de grades que se pôs de pé uma vez e eu fiquei louca. Mas depois, durante duas semanas não repetiu a façanha... Andava apenas com o apoio dos dois braços e mesmo assim conseguia cair de joelhos várias vezes por dia. 

Entretanto encontrámos várias soluções, desde empurrar o carrinho de passeio na rua até empurrar uma cadeira, comigo, as usual, a "cantar" o som que ele produzia, e com ele a rir que nem um perdido pela casa fora...  Andámos literalmente quilómetros. Aqui no bairro já se metiam com ele, chamavam-lhe "o menino da cadeirinha" e achavam a nossa técnica genial. Agora, de tanto praticar, ontem ganhou confiança, largou-me a mão na sala e correu para o sofá! Deixou-me em pânico um segundo, mas controlei-me e consegui não gritar. E depois ficámos os dois em êxtase! Hoje está farto de andar pela casa toda! Graças a Deus, a bem das minhas costas e da autoestima dele!

sábado, 13 de outubro de 2012

[vozes maduras] poupar a todo o custo!


O meu melhor amigo tinha um tio, entretanto já falecido, que era sovina in stadius ultimus. Nunca tomava café fora de casa, andava sempre de transportes públicos ou a pé, exceto quando a relação custo-benefício justificava o gasóleo que tinha de colocar no carro, havia anos que não comia num restaurante. Mesmo para comprar uma máquina de café lá para casa fora o cabo dos trabalhos para a mulher o convencer. Paradoxalmente, era uma das pessoas mais ricas da família, com negócios milionários do ramo imobiliário em Portugal e além-fronteiras.

Ora então, há vários anos, quis o destino, que essa personagem tivesse de ir fazer o exame médico para renovação da carta de condução ao centro de saúde onde eu estava a estagiar. A mulher dele veio então ter comigo, desesperada, pedindo por tudo que não deixasse a médica de saúde pública renovar-lhe a carta.

- Doutora, é que, sabe, eu já não aguento andar de carro ao lado dele. Ele não vê a cinco metros de distância, mas recusa-se a comprar uns óculos! Eu nem consigo desviar os olhos um milímetro da estrada e se não fosse eu a gritar-lhe já tínhamos morrido os dois há anos. Não faz nem cinco mil quilómetros e já tem os pneus completamente carecas de tantas travagens bruscas!
- Mas porque é que ele não usa óculos, nem que seja só para conduzir?
- Ele diz que não é preciso! “Óculos?”, diz ele, “Isso é um luxo! Eu não preciso de ver ao longe. Eu vejo quando chegar lá!”

A minha tutora conseguiu, felizmente, convencer este senhor da Troika avant la lettre a “investir” nuns óculos! Viveu e conduziu até aos 86 anos!

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

[vozes brancas* #79] contra o consumismo!

Há tempos, na consulta, estava a avaliar um menino de três anos com uma perturbação grave da linguagem. Escuso de dizer que era um menino maravilhoso, amoroso e lindo porque, como certamente sabem, eu não tenho crítica para esse tipo de julgamentos, portanto nem vale a pena debruçarmo-nos sobre o assunto porque para mim, aos três anos, eles são todos encantadores e fim de conversa que isto hoje tem de ser rápido e todos temos de ir trabalhar. Eu não tenho, que estou de licença de maternidade, mas também vou ali lamber a cria que dorme...

Num esforço para perceber o leque de vocabulário que ele possuía, perguntei-lhe, a certa altura:

- Com que é que tu mais gostas de brincar, Rafael?
[Nada. Sem resposta. Apenas sorrisos...]
- Quais são os teus brinquedos favoritos? Tu tens tantos... - perguntou-lhe a mãe.
- O pai e a mãe - articulou com dificuldade, muito baixinho mas com um sorriso rasgado...
- Não, filho, a doutora está a perguntar com que brinquedos é que tu gostas de brincar.
- Deixe estar - respondi - ele deu a resposta certa. Os "brinquedos" favoritos das crianças são, felizmente, o pai e a mãe!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

[vozes brancas* #78] a palavra a mr. b

Foi há vários meses que a minha irmã, futura madrinha do baby-de-mulata, começou a preparar Mr. B, o meu sobrinho de quatro anos, para a vinda do primo. E pergunta Mr. B, a minha primeira paixão pequenina e também a principal voz branca deste blogue:

- Mãe, o que é um primo?
- Um primo é um bebé em casa da titi.
- Ah, é um mano?
- Não, querido, um mano é um bebé cá em casa. Um primo é um bebé em casa da titi.
- Ah... Mas não é da barriga, pois não?
- Não, querido, o bebé da titi não está na barriga dela, está no hospital.
- Está doente?
- Sim.
- Tem o quê?
- Tem um dói-dói na barriga.
- Ah... o nome do menino?
[São sempre estas as perguntas que ele me faz quando sabe que venho do hospital: o nome dos meninos que vi e as doenças que eles tinham. Já não pergunta o que foi que eu lhes fiz porque a resposta é, invariavelmente: "Depois a titi deu xarope e os meninos ficaram bons." Ficou radiante quando soube o nome do baby porque é precisamente o nome do pai dele!]
- E ele não pode ir para casa da titi, mãe? A titi cuida dele em casa. Ela também cuida de mim quando estou doente.
- Sim, foi isso que a titi disse aos senhores do hospital.
- E eles deixaram?
- Sim. Qualquer dia já vem para casa dela!
- Boa, mãe! Vamos ter um primo!

Pronto, a vida é simples para as crianças, não é verdade?

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

[africanidades] a capulana

 
Tenho a comunicar-vos, meus queridos amigos, com os olhos marejados de orgulho, que o meu baby-de-mulata ontem começou a dizer "lana", expressão que, no seu linguarejar incipiente de menino, quer dizer: "Quero um colinho de capulana, se faz favor, minha querida mãe." Lentamente, o trabalho de inculturação começa a dar frutos! Quando chegar a hora, tenho a certeza de que ele vai querer ir comigo...
(Imagem: mamã com filho na capulana. Gilé, Zambézia)