sábado, 30 de junho de 2012

[vozes brancas* #72] anda comigo ver os aviões



 Mr. B., o meu sobrinho de 4 anos, gosta muito desta música (e é tão afinadinho, benza-o Deus!):

E que eu morra aqui
se um dia eu não te levo à médica,
nem que eu leve a médica até ti!
Ai, o orgulho de sua titi! Ir à médica (leia-se, eu!) com o amor da sua vida é uma coisa que lhe faz sentido! Obrigada, meu querido.

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

[irmãos de sangue] apelo à comunidade cabo-verdiana


O cartaz da campanha de apelo à comunidade Cabo-Verdiana...
 Djunto nu ta konsigi! Juntos vamos conseguir!


Meus queridos amigos, aqui há atrasado falei-vos do Lázaro, o nosso menino Angolano, internado havia cento e vinte e tal dias no meu hospital por uma aplasia medular muito grave. Falei-vos da saga que foi trazer o seu irmão Lito para Portugal, miraculosamente compatível e saudável! A propósito, deixei a história a meio [ver O Mato em Lisboa] porque se foi tornando cada vez mais dolorosa. Mas agora parece estar tudo mais encaminhado. Qualquer dia volto a ela.

O que nunca vos disse foi que, quase no mesmo dia, foi internada uma outra menina, a Arina, vinda de Cabo Verde, São Nicolau, com exactamente a mesma doença. Fui eu que a recebi, vinda directamente do aeroporto e internei-a com o coração nas mãos. Ela não tinha pinga de sangue. Eu fiquei vazia nas veias e no coração...

Mas a história desta menina linda, esperta e meiga de derreter corações tem sido um calvário para todos...

A menina tem quatro anos, uma aplasia medular grave e precisa de um transplante urgente, mas não tem dador. Já analisámos a família toda, procurámos no banco nacional, nos bancos internacionais e nada...
A questão fulcral é que a probabilidade de encontrar um dador compativel é maior quando se procura entre pessoas da mesma origem, porque os genes são mais semelhantes, e em Portugal tal como no resto do mundo, não há qualquer banco de medula de pessoas de origem africana, de Cabo Verde em particular...

Daí, surgiu a ideia de lançar uma campanha de sensibilização para doação de medula óssea entre os naturais de Cabo Verde residentes em Portugal. E mesmo que não seja possivel encontrar um dador, esta iniciativa pode deixar uma oportunidade para outro doente que necessite também de um transplante no futuro.
Qualquer pessoa pode ser dadora, desde que seja saudável, tenha entre 18 e 45 anos e resida oficialmente em Portugal (mais informações aqui). Podemos lançar aqui a fundação de um banco de medula óssea com genes de Cabo Verde!
Quanto a nós... nós acreditamos que é possível salvar a nossa menina!
 
 
Vai haver um período de colheita na Universidade Lusófona no dia 11 de Julho, e o Centro de Histocompatibilidade e o Hospital Dona Estefânia estão abertos todos os dias (ver foto).
Divulguem esta iniciativa, peço-vos! Nunca se sabe de onde virá a solução!

quarta-feira, 27 de junho de 2012

[outras palavras] volver


Crianças a correr atrás do nosso carro, nas plantações de chá do Guruè.
(Guruè, Zambézia)

 – Só quero viajar quando for completamente cega.
Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:
– É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro de mim.

Mia Couto in Na Berma de Nenhuma Estrada

[vozes brancas* #71] dois irmãos e um helicóptero

Ontem, na consulta, perguntava aos pais do Ricardo, de dois anos, como era a relação com o irmão mais velho. E os pais respondiam que a relação era óptima, desde o início, que brincavam muito, que o mais velho, de quatro anos, era muito paternalista e protector. Claro que também tinham as suas rivalidades e também brigavam em menos de um fósforo... Mas que as brigas só descambavam em violência quando o Ricardo, que ainda não sabia falar muito bem, perdia o poder de argumentação.

- O Ricardo fez dois anos no domingo e oferecemos-lhe um helicóptero do INEM. O Pedro também queria brincar com ele, mas o Ricardo ainda não tinha brincado. Estavam quase a esgadanharem-se e o Pedro chamava-lhe: "Egoísta!" E o Ricardo, muito aflito, respondia: "Não, mano, eu sou o Ricardo..."

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

domingo, 24 de junho de 2012

[vozes brancas* #70] a música de mr. b.

Era uma andorinha branca
Que batia à janela
E contente anunciava
Que chegara a Primavera...
... ou era eu que sonhava?
Eugénio de Andrade

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

sábado, 23 de junho de 2012

[vozes brancas* #69] mr. b. e baby m.

Esta semana fui buscar Mr. B., o meu sobrinho de quatro anos, ao jardim infantil. Estava lá tão entretido com os amigos numa brincadeira urgente e inadiável, que não houve alegação de carro mal estacionado em segunda fila com os quatro piscas ligados que o arrancasse do recreio enquanto os polícias e o bando de ladrões não resolveram ali mesmo a questão do furto do tractor da quinta... Lá fiquei a babar-me a olhar para eles, tão compenetrados na brincadeira, tão polícias e tão ladrões, que eu própria me esqueci do carro mal estacionado em segunda fila, com os quatro piscas ligados e um carro da polícia por perto.

Por fim, chegámos a casa e passámos mais uma vez pela clínica veterinária na mesma rua, cujo aquário na recepção o deixa completamente hipnotizado... Os peixes mais antigos, o Patanisca, o Peixinho da Horta e o Jaquinzinho, protagonistas de intermináveis histórias de aventuras marítimas à hora da sesta, lá estavam, desta vez acompanhados por um peixe-manta com ar ameaçador.

- O que é aquilo, titi?
- É um peixe-manta.
- Como é que ele se chama?
- Er... Edredon...
- Titi, tenho medo do peixe-manta...
- Não tenha, meu querido, o peixe-manta é muito amigo, porque gosta muito dos outros peixinhos, brinca com eles e, quando têm frio à noite, ele tapa os peixinhos pequeninos e aquece-os.
- Ah... está bem, mas vamos para casa.

Em casa encontrámos Baby M., o irmão de 10 meses, sentado na cadeirinha a comer a papa. Mr. B. tratou logo de tomar conta da situação:

- Mano, olha, está ali um peixe-manta, mas não tenhas medo, eu estou aqui!

Quem tem um irmão mais velho assim tem tudo!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

[nomes que dizem tudo #28] cr7

Há tempos estive a contar quantos "Cristianos Ronaldos" estão registados no meu hospital. Ironicamente, eram sete! Os fenómenos da moda às vezes têm um humor britânico.

[a força que um povo pode ter!] valha-nos santo antónio do esférico...

Sofrida, mas foi uma vitória mais do que merecida. Grande equipa e grande jogo, este Portugal-República Checa! Ver os jogos da Selecção Nacional é um prazer tão compensador que já nem lhe chamo guilty pleasure... E este prazer devo-o em grande parte à Cadeira de Anatomia II da faculdade (valeu a bem pena o tempo que lhe dispensei!), já que foi durante a época de exames do segundo ano que a vontade fervorosa de estudar, a curiosidade científica sobre o corpo humano e o interesse da cadeira em geral não me deixavam despegar do ecrã. Até um França-Turquia eu vi do princípio ao fim, com os livros no colo e a prometer a mim própria que estudava no intervalo...

quarta-feira, 20 de junho de 2012

[as melhores do serviço de urgência] would I lytot you?

Depois do maravilhoso tapa-pilinhas, um acessório hilariante para o muda fraldas, eis que beijo-de-mulata volta a encontrar um novo artigo irresistível, bom demais para não partilhar convosco...

Ora pois que há dias no serviço de urgência, uma colega minha aconselhava os pais a proteger do sol um menino com conjuntivite alérgica,* e comentávamos a dificuldade que é manter as crianças com óculos escuros durante mais de três minutos seguidos.

E é então que a mãe de outra criança ali presente saca daquelas gafas irresistíveis. Uma ideia absolutamente vencedora, meus amigos! Lytot rules...





* Para além de versar de quando em vez sobre inutilidades fashion, este blogue é um fervoroso adepto da vírgula de Oxford, e de outras inutilidades gramaticais.

[as melhores do serviço de urgência] Santo António Hazard...



Santo António de Lisboa...

A Urgência Pediátrica é, por definição, o serviço que tem o movimento mais imprevisível de cada hospital. Nunca se sabe o que vai acontecer, embora, dentro de certos limites, se possa prever, por exemplo, que à hora dos jogos do Benfica e da Selecção Nacional a afluência fique quase reduzida a zero, e que à segunda-feira, tal como em qualquer parte do mundo, o movimento seja significativamente mais elevado...

Já o 12 de Junho em Lisboa é o dia mais previsível do ano, com a seguinte ordem de trabalhos:

- Das 09:00 às 15:00 - Aumento de afluência de adolescentes com dor no peito. Investigando melhor, quase todos são marchantes com ansiedade de desempenho, e a crise passa à hora do ensaio geral das Marchas Populares, lá para as 16:00, altura em que, aconteça o que acontecer, eles nos desamparam a loja. Por vezes regressam depois da meia-noite...

- Das 15:00 às 20:00 - Aumento da afluência de crianças com menos de 3 anos. Motivo de admissão: ingestão acidental de folhas de manjerico. A curiosidade é a mãe de metade dos acidentes na infância. O pai também não é bem incógnito, como adiante se verá... Geralmente os meninos têm alta directa para o arraial do bairro.

- Das 19:30 às 23:00 - Aumento da afluência. Motivo de admissão: corpo estranho na faringe. Invariavelmente, o corpo estranho é uma espinha de sardinha assada. A avaliar pelos números do Grande Observatório Piscícola do Serviço de Urgência, trata-se do único dia do ano em que os meninos se engasgam com espinhas de sardinha. Por qualquer razão obscura, os adultos perdem a capacidade de reconhecer a sardinha como um alimento potencialmente perigoso e oferecem-na da maneira mais estapafúrdia às crianças pequenas - inteiras e sobre o pão. Os hábitos enraizados e as tradições são os pais quase incógnitos da outra metade dos acidentes na infância.

- Das 00:00 em diante - Motivo principal de admissão: adolescentes em coma alcoólico.

Acho que para o ano, para maior eficiência, vamos destinar um gabinete de atendimento especial para estes assados: o "Gabinete Acidentes de Santo António". E criamos a "Via Verde marchante-em-crise", a "Via Verde sardinhas-no-pão", a "Via Verde mamã-engoli-um-manjerico" e a "Via Verde coma-alcoólico-ou-alcoolicamente-mal-disposto-e-intoxicações-várias".

terça-feira, 19 de junho de 2012

[hoje deu-me para isto] os bichos gostam muito dele...


Ando a cantarolar isto há semanas...


sábado, 16 de junho de 2012

[outras palavras] mar me quer


A alegria inata das crianças...
(Iapala, Nampula) 
"A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer."
Mia Couto in Mar me Quer

quinta-feira, 14 de junho de 2012

[sabes que estás a precisar de férias quando...]

Há dias, no corredor do hospital, encontrei a mãe de uma menina de cinco anos que eu tratei no serviço de urgência com uma pneumonia grave e que, no final de todo o processo, acabei por enviar para a consulta de obesidade. A mãe era uma cozinheira à moda antiga, que fazia comida em casa para dois restaurantes e a filha, muito solícita, passava metade do dia com ela na cozinha. A ajudar a comer, obviamente.

Perguntei-lhe como estava, dei-lhe os parabéns porque ela própria e a filha estavam visivelmente mais magras.
- Sim, doutora, agora estamos todos a fazer dieta lá em casa!
- Muito bem, é isso que se quer, e a menina não voltou a ter mais doença nenhuma?
- Não, ela agora está óptima!
- Muito bem, então adeus e as melhoras...
- Obrigada, doutora, bom apetite!

Não sei quanto a vocês, mas para mim a silly season já começou!

domingo, 10 de junho de 2012

[improbabilidades] o arrumador

Esta noite a estacionar próximo do Cais do Sodré, um arrumador sem mau aspecto indicou-me um lugar livre, deu-me indicações vagas e rápidas do local onde estacionar e desapareceu num ápice. Não era a primeira vez que me acontecia. Naturalmente tinha ido "tratar de outros assuntos". Já estava no fundo da rua quando oiço um assobio do lado oposto do passeio, aí a uns 30 metros de mim.

- Então, miss, já não se agradece? Olha que eu te vou guardar o carro... - a voz ameaçadora como se dissesse: "Vê lá se não queres ficar sem pneus."
- O senhor foi-se embora, como é que queria que eu o visse?
- Estou a ver o jogo, não ia ficar ali à tua espera! Desculpa lá mas anda até cá. Por enquanto está zero a zero.

Era só o que nos faltava agora, um arrumador-dondoca! Se a moda pega...

sexta-feira, 8 de junho de 2012

[as melhores do serviço de urgência] vómitos persistentes

A propósito do post anterior, em que se fala da minha experiência de encontro imediato com a língua de Camões em momentos de estômago revolto, lembrei-me de outro encontro aqui há atrasado, desta feita com uma entidade nosológica da nossa cultura... Uma doença em que os meninos também "gomitam" e não comem de maneira nenhuma.

Ora, estava eu no serviço de urgência, quando chamei uma menina de 15 meses com um ar de quem tinha estado a chorar desesperadamente pouco tempo antes e a deitar pus e sangue dos dois ouvidos. Estava relativamente calma, mas os pais, jovens e cuidadosos, vinham absolutamente transtornados. Que a filha há vários dias que não comia, tinha náuseas quando lhe ofereciam comida, vomitava se a forçassem a comer, não dormia e passava as noites a chorar.

E mais alguma coisa que tivessem notado na menina?, perguntava eu. Que não, que mais nada, mas que esta tarde tinha tido uma crise de choro inconsolável e depois começara a sangrar dos ouvidos. Que tinham era de ir à bruxa, desabafava a mãe...

E eu lá ia respondendo, calma, então, que não era caso para isso, que havia doenças muito piores...

Pedi para despirem a menina. Olharam um para o outro, meio comprometidos, meio cúmplices, como quem se pergunta: "E agora, como é que vamos sair desta?" A mãe, envergonhada, lá começou literalmente a descalçar a bota... Por dentro da roupa, a menina tinha uma fralda enrolada na cintura, bem presa por um alfinete-de-ama que me custou a desapertar. "Mãe, porque é que lhe pôs esta fralda tão apertada? Olhe que isto não faz bem." E eis que, por dentro da fralda, me deparo com uma couve nauseabunda e cheia de gordura de azeite e óleo a toda a volta da barriga. Mas o que era aquilo, senhores, valesse-me São Gregório?!

 - Sabe, doutora, nós estávamos preocupados porque ela não comia e só vomitava e a minha sogra não parava de nos moer o juízo a dizer que o que a menina tinha era o "bucho virado", que é uma doença das crianças, a doutora já ouviu falar?
- Ah, e então?
- Então levámo-la a uma senhora em Caneças para lhe fazer umas rezas e "desvirar o bucho" com azeite na barriga e no fim ela enrolou-lhe esta couve "para o bucho não fugir". Mas a reza deve ter corrido mal, porque a menina agora começou a sangrar dos ouvidos.
- Está bem, está bem, vamos lá ver o que tem a menina. Mas olhe, o mais provável é que a menina não tivesse o "bucho virado", o que deve ter acontecido é que a menina já estava com uma infecção nos ouvidos há mais dias e por isso é que chorava tanto, vomitava e não queria comer.
Os pais entreolharam-se, genuinamente aliviados, como se tivessem visto Deus!

Afinal não é só em Moçambique que existem doenças tradicionais!

quinta-feira, 7 de junho de 2012

[baby m] momentos de dentro de casa


Baby M, o meu sobrinho mais novo, há meses que já não pára quieto nem por um suborno chorudo de bolacha maria torrada e iPhone na mão. Há dias, num momento de desespero no muda-fraldas, descobri que sua excelência se calava e mantinha quieto por tempo indeterminado se lhe cantasse esta música! Quais quais Noddys, quais Carochinhas? Temos homem, por supuesto!

terça-feira, 5 de junho de 2012

[outras palavras] uma coca-cola no deserto, ou a negação da teoria da zona de conforto



Coca-cola algures em Moçambique...


(continuando...)

Certa vez, dei por mim perdido em terra de nenhures. Vinha de viagem, andara uns 300 quilómetros numa carrinha de caixa-aberta, e estava a tentar apanhar um machimbombo que me faria regressar à Beira. A barriga apertava – há 16 horas que não trincava nada – e, na viagem seguinte, talvez houvesse alguém a vender comida, mas talvez não houvesse. O meu dinheiro era de menos, e os olhares sobre minha mochila eram demais. Nunca tinha estado naquela terra, não falava a língua local – e rareava quem falasse português.

Quando encontrei o desejado machimbombo, mesmo à porta dele, vi uma cena de pancadaria. Senti-me frágil, inseguro; estava esfomeado, perdido, e totalmente impotente em relação a qualquer imprevisto que surgisse.

Foi então que decidi beber uma coca-cola. A decisão parecia racional: alimento, hidratação e baixo preço; mas a minha motivação era outra. O seu sabor familiar, o gás previsível, o açúcar conhecido, a garrafa de vidro que a palma da mão advinha, foram, para mim, segurança e santuário! (Na idade média as pessoas podiam entrar em Igrejas, ou Mosteiros e pedir santuário: protecção total de tudo e de todos, mesmo do Rei). Ora, também eu – mesmo que só por segundos – recebi santuário da coca-cola, ou melhor, recebi santuário por fazer algo controlado. Quando parecia que tudo me escapava, um gesto simples, beber uma bebida minha conhecida, foi o suficiente para me recompor. E segui viagem.

Lidar com o desconhecido e o novo traz insegurança e dúvida. Embora seja mais fácil descrever essa fragilidade numa viagem perdida em África, isso também acontece nas relações pessoais.(...) Não sou um receptáculo vazio, tenho uma biografia, uma história, uma família, referenciais próprios. E são os meus referenciais que me permitem (tentar) ser bilingue. Não há intérpretes universais: pessoas que falem todas as línguas, e que percebam todas as racionalidades; mas, percebendo como eu próprio penso, posso tentar enquadrar o raciocínio do outro, posso tentar conhecê-lo.

Parece-me que pôr um pé num sítio firme é condição para poder experimentar a novidade. Beber uma coca-cola dá tranquilidade, escrever uma mensagem a quem pensa como eu ajuda a compreender o que está fora de mim. Estes gestos insignificantes ganham uma carga que os excede porque são tentativas de regressar ao conhecido, de ter os pés seguros, firmes. Paradoxalmente, se não tenho um pé firme, não chego à novidade. Só o saber quem sou e de onde venho, me leva ao outro.

Manuel Cardoso, sj
Perdido, em terra de nenhures
Crónica de Longe, Maio 2012

[outras palavras] o machimbombo




Chapas e machimbombos, os meios de transporte colectivo de Moçambique...
Fotos da net (mais uma vez lamento mas não tenho o link...)


Fui deixar a Maria ao machimbombo às 3h da manhã - machimbombo é o nome dado aos autocarros aqui em Moçambique. Viajar num, pode ser uma risota: compra-se de tudo a vendedores que surgem de lado nenhum, ouve-se o inimaginável, cheiram-se novidades, toca-se o imponderável!

Por outro lado, é também um risco. Nunca se sabe o que vai acontecer: as avarias sucedem-se; os pneus furam sem terem suplentes; os destinos são alterados a meio do caminho; o cobrador pode mandar sentar uma pessoa ao colo doutro passageiro durante horas de viagem (a Maria já deu colo a um homem de fato e gravata durante 6 horas); os passageiros podem ser expulsos, deixados no meio do nada – porque a polícia está adiante e o machimbombo não tem licença para transportar tanta gente; e por aí adiante...

Poucas horas depois de partir num machimbombo amarelo cortado por riscas vermelhas, com a palavra «Jesus» escrita nos costados, a Maria escreveu-me um sms: “ta tudo óptimo, dormi até agora, acordei porque o gajo atrás de mim entornou fanta pa cima de mim”. Eu sabia que a Maria estava num machimbombo decrépito, também sabia que aquela estrada não tem estações de serviço – nem nada que se assemelhe – nos seus lentos quilómetros de calor e pó.

Comecei, então, a imaginar o que seria viajar ali molhado de Fanta: sentir o açúcar peganhento que derrete na pele com o calor, sentir a cadeira, furada e torta, colar-se a mim, e, pior que tudo, saber que nada disso vai desaparecer nas longas horas que faltam até ao destino. Identifiquei-me com a situação da Maria. Quando me acontece algo que não controlo, quando me sinto inseguro, sem qualquer poder sobre os acontecimentos, partilhar a impotência torna as situações desconfortáveis, em situações um pouco menos duras. Eu já mandei vários «desses» sms! Lembro-me dum de queixume – depois duma missa campal de seis horas alternando sol tórrido com chuva abundante; doutro de desespero – quando fiquei com o carro atolado dentro duma reserva de leões; doutro ainda de surpresa – na primeira vez que assisti a cerimónias tradicionais de evocação de antepassados. Todos esses sms eram pura necessidade de dividir essa fragilidade e, assim, retomar o ânimo.

(continua...)

Manuel Cardoso, sj
Perdido, em terra de nenhures
Crónica de Longe, Maio 2012

segunda-feira, 4 de junho de 2012

[as melhores do serviço de urgência] serviço público

Há alguns anos, quando comecei a especialidade em Pediatria, ouvi pela primeira vez a expressão "gómitos"... Sim, pela primeira vez. Por favor, não me interpretem mal. Eu talvez até já tivesse ouvido a expressão anteriormente mas, como sou dona de dois ouvidos bem-educados, decerto que um deles ouvia delicadamente a palavra "vómitos" e explicava ao outro que não, que que tinha ouvido mal, que disparate, tomasse juízo que já ia sendo tempo, e continuava a conversa.

Até que um dia fui procurar a palavra à enciclopédia e a encontrei listada: "forma popular de vómitos". E fiquei descansada. No fundo era como dizer pilinha em vez de pénis, pensei. Cada um tem o direito a usar com os filhos as palavras que aprendeu em casa, que são as que têm um significado mais próximo da sua identidade enquanto família.

E nada mais haveria a acrescentar não fosse há tempos eu ter-me apercebido de que a enciclopédia estava errada! Os investigadores e linguistas que a escreveram poderiam ser muito conceituados e tudo e tudo, mas as suas fontes, por mais eruditas que fossem, não se equiparavam a um bom serviço de urgência. Há tempos estava, pois, uma mãe a dizer-me que o filho tinha tido "gómitos" a manhã toda.

- E quantas vezes vomitou o menino?
- Não vomitou, doutora, "gomitou".
- Sim, sim, mas consegue dizer-me quantas vezes foram?
- Isso não se consegue contar, doutora!
- Ah... então foram mesmo muitas, é?
- Mas como é que quer que eu saiba? Isso é importante?
- Sim, é muito importante, para perceber se perdeu muitos líquidos.
- Mas não perdeu líquido nenhum, doutora, o que é que eu disse?
- Disse que o menino tinha vomitado muitas vezes...
- Não, não foi isso que eu disse!
- Não percebo...
- A doutora é que não ligou nunhuma ao que eu disse! O menino tem tido é "gómitos" não vómitos!
- ... [Cara de ponto de interrogação. Valha-me São Luís de Camões!] Mas qual é a diferença para si?
- Para mim e para toda a gente! Vómitos é quando sai alguma coisa e "gómitos" são vómitos secos. É quando não sai nada!

Delicioso! Não sei quantos cursos é preciso tirar para compreender bem o Português... Mas enfim, aqui estou eu a tentar contribuir para um glossário popular da linguagem médica portuguesa. Como diria a Rita Maria, vá lá a gente não amar uma língua assim!

sábado, 2 de junho de 2012

[mr. b.] adoro-te, meu anjo!

Fez ontem quatro anos que cheguei mais uma vez a Lisboa, vinda de Moçambique. Deixava a Zambézia para trás, mas vinha com o coração cheio de futuros... Irias nascer no dia seguinte. Foste um menino lindo! Eu ia ligando à mamã das profundezas de África sempre que podia e recomendava-lhe: "Repousa, repousa, que eu quero chegar a tempo!" E tu esperaste por mim...

Faz hoje quatro anos que, no bloco de partos do hospital onde nasceste, pedi ao obstetra que me deixasse assistir à cesariana. Ele, correctíssimo, falou com a enfermeira responsável, que engraçou comigo e lá me fez essa concessão. Mal sabiam eles que o que eu e a tua mãe estávamos a magicar era outra coisa... Minutos depois, já completamente vestida, de mãos lavadas, touca e máscara, enchi-me de coragem e apresentei-me ao pediatra, que já tinha a mesa de reanimação montada e perguntei-lhe, com aquela minha voz de quem não aceita um não como resposta, se ele se importava que fosse eu a receber o meu sobrinho. Olhou-me, estarrecido, por cima da máscara. "A colega sabe o que está a fazer?!"

Sabia. E soube-me tão bem que ainda hoje me comove a primeira imagem da tua cara que só eu vi, o teu primeiro choro que só eu consolei, a primeira roupa que te vesti. O primeiro colo, fui eu que te dei! E quando, já aquecido, lavado e aspirado te fui levar a dar um beijinho à mamã, já ias como és agora: um homenzinho adorável! Parabéns, meu querido...

[nomes emblemáticos] água izé


A praia encantadora de Água Izé.
(São Tomé e Príncipe)

[são tomé e príncipe] pescadores



Um dia ganho...
(São Tomé e Príncipe)