segunda-feira, 30 de abril de 2012

[instantes] uma missa em iapala


Missa cantada em Macua...
(Iapala, Nampula)

[momentos nicola] as melhores do serviço de urgência

Um dia, meus amigos...

... um dia, numa saída de urgência pego no intercomunicador para a sala de espera e digo: "Atenção, senhores campistas, dentro de momentos vão começar os jogos tradicionais!"

Pronto. Era só isto. Vou só ali fazer chichi, que não tenho tempo de jantar...

[iapala] nada é simples...

(continuando...)

Eram horas da missa e depois tínhamos de ir jantar. Não queria perder nem por nada a minha primeira missa em Iapala, onde as meninas dançariam mais uma vez, numa dança mais sóbria, mas ainda assim lindíssima, perfeitamente sincronizada e com cânticos de enfeitiçar o ouvido mais duro… Ao jantar desabafei com as irmãs sobre o sucedido no hospital. Não pareceram de todo surpreendidas. “Aqui nesta terra é sempre assim. A irmã Sarala esgota-se no hospital. Tem de se estar permanentemente em cima de tudo. Não sei como não morrem muito mais pessoas… Aqui é tudo por Deus!”
Mas como era possível?! 

– Aqui o povo não confia na medicina do hospital. Só vêm em último recurso, depois de terem ido ao curandeiro. E depois há muitas crenças e tabus que vão radicalmente contra aquilo que lhes é dito para fazer e também ninguém lhes explica as coisas da melhor maneira… – a irmã Lurdes transmitia-me o seu amor pelo povo, apaziguando a minha zanga com a calma da sua experiência.
– Mas a mãe parecia que não se importava! Nem para nós olhava…
– Se não se importasse não tinha vindo ao hospital. Olha que é um esforço muito grande para eles. As pessoas têm de arranjar mantimentos, pedir a vários familiares que os acompanhem, e deixar os outros filhos entregues à família. Eles são de onde?
– De uma aldeia a 20 quilómetros daqui. Não fixei o nome…
– Pois… ninguém se desloca 20 quilómetros a pé, com a família toda se não se importar com a criança doente. A Dona Ana é que deve ter falado com ela de forma muito malcriada, como sempre.
– Sim, é verdade.
– Quase todos os enfermeiros e serventes tratam muito mal as pessoas do povo, parece que têm gosto em humilhar as pessoas e não lhes explicam nada do que elas devem fazer. E para uma pessoa que já não confia no hospital, é muito difícil seguir uma recomendação dada naquele tom…
– Nem posso acreditar!
– Há excepções, claro, mas a maior parte são profissionais muito mal formados. E pouco competentes.
– Pois… por um lado achei que podia ser isso, mas a mãe também podia ter ido ter com o enfermeiro para pedir para lhe explicar como é que se dava o soro.
– Nem lhe deve ter ocorrido, coitada, ela nem sequer deve saber para que serve o soro… E depois se calhar tem medo de ser maltratada pelo enfermeiro, ou que ele lhe peça um suborno. Ela de certeza que não tem dinheiro…
– Credo!
– É assim, amiga. Nem todos os profissionais fazem isso. E, mesmo os que fazem, não fazem isso sempre, nem a qualquer pessoa. Mas a fama persegue-os…
– Isto parte o coração…
– É verdade! Temos recebido muito voluntários aqui na missão que vêm com algumas ideias românticas sobre o país, mas isto não é um mar de rosas. Há muita gente que se deprime e não aguenta o choque de ver tanto sofrimento e tanta indiferença…
– Não admira…
– Sim… África… não é para todos!
– Pois… não deve ser, não… Bem, é melhor voltar lá para ver como estão a correr as coisas.

 Voltei ao hospital, empunhando a minha lanterna. O casalinho de perus já tinha recolhido à intimidade do lar, e as luzes do hospital estavam desligadas àquela hora.
(continua...)

[instantes] porque a vida continua, mesmo depois de a ponte ter caído!




O dia em que a ponte do Gilé ruiu... E em que os habitantes da Zambézia nos deram mais uma prova de que, por maior que a tragédia seja, é sempre possível "manter a ponte dentro do peito" e unir os dois lados do rio!
(Gilé, Zambézia)

domingo, 29 de abril de 2012

[iapala] como funciona um hospital no mato?


Tomando soro oral pela mão da R.
(Gilé, Zambézia)

(continuando...)

Falaram um pouco, a Dona Ana sempre no mesmo tom malcriado quando se dirigia à mãe, até que chegou a uma conclusão:
– O enfermeiro tentou colocar cateter, mas desconseguiu.
Olho para as mãos e os braços da criança. Não há qualquer sinal de picada.
– Tem a certeza? Não tentou sequer.
A Dona Ana voltou a dirigir-se à mamã. Por fim, esta admitiu que tinha recusado que o enfermeiro colocasse soro ao filho. Mas porquê? O que é que se tinha passado? A Dona Ana não respondia, fitando o chão, como se só tivesse vontade de desaparecer dali o mais depressa possível. Enquanto falávamos, a criança ia tendo dejeções diarreicas de água, apenas água, sem cheiro, sem cor. A mãe, impassível, apenas a afastava do seu corpo, para que aquela água que saía do corpo do filho caísse diretamente na terra do pátio, e continuava a ouvir o que nós dizíamos, fitando o infinito.
– Está bem, mas explicaram mesmo à senhora para que era o soro na veia? E que para fazer soro oral era preciso abrir o pacote, deitar o conteúdo em água fervida e dar à criança? É que ele agora está muito pior. Agora está muito mais desidratado!

[Silêncio. Parecia que nada daquilo lhes dizia respeito. Perdi a paciência. Era necessário agir. E depressa!]
– Bem… eu já venho.
Fui a casa, preparei soro e fui dá-lo à mãe, com indicação para dar à criança uma boa quantidade de cada vez que tivesse diarreia. Pois… já tinha percebido que não ia ser fácil trabalhar ali. Estava zangada. Muito zangada. Comigo própria por ter deixado passar tanto tempo antes de reavaliar a criança. E não sabia com quem mais deveria estar zangada, se com a mãe, que não tinha dado o soro ao filho por não ter perguntado ao enfermeiro como se fazia, se com o enfermeiro por não lhe ter explicado e não ter ido confirmar se a terapêutica estava mesmo a ser cumprida… se com o caos de organização que era aquele hospital.
Expliquei como dar o soro à criança, exemplifiquei várias vezes. O menino, mal viu o soro na seringa, precipitou-se para ele e bebeu sofregamente. Chorou quase sem energia. Queria mais!
– Vamos continuar, mamã!
– Sim.
 (continua...)

sábado, 28 de abril de 2012

[welcome to mozambique] não, ninguém me tinha dito que ia ser fácil...

(continuando...)

As meninas deixaram-me e voltaram para casa, que eram horas de fazer o jantar. Eu queria ir visitar o menino que tinha internado com diarreia. Já estaria melhor?


Entrei na enfermaria, mas não estava ninguém lá dentro. Onde estariam as crianças internadas? Eram umas nove ou dez esta manhã. Teriam fugido todas esta tarde? Mas algumas estavam tão doentes, como era possível que os pais as levassem dali? Ouvi uma voz atrás de mim:

– Boa noite, irmã! – a mãe do menino que eu tinha internado vira-me e atravessara o pátio, vinda da cozinha comunitária, onde preparava o seu jantar e o do marido.
– Boa noite, mamã. Como está a criança?

O menino, na capulana às costas da mãe, estava pior. Muito pior. Os olhos mais encovados, a língua menos húmida, um olhar mortiço… Notei que não tinha nenhum cateter na mão para lhe ser administrado soro na veia.

– O menino tem estado a vomitar?
– Sim.
– Vomitou quantas vezes?
– Sim.

Não me compreendia… Fui chamar a Dona Ana, a servente da maternidade, que descansava debaixo do cajueiro do pátio para me traduzir a conversa.

– O menino tem estado a vomitar?

Que não, não tinha vomitado. Mas, mamã – insistia eu –, ele estava muito pior… Tinha recusado o soro? A mamã respondia que não, não tinha recusado. E estava a recusar o leite materno? Que sim, um pouco… Mas que quantidade de soro tinha bebido, então? Ao que a mamã respondia que nada, não tinha bebido soro nenhum…
– Como? Mas então não lhe deu o soro oral? – indignei-me.
– Doutora, ela diz que não lhe deram.
– Não lhe deram soro? Pergunte bem… Eu prescrevi soro oral no processo!

Falaram algum tempo. A Dona Ana num tom acusatório para com a mamã, que respondia em voz baixa e com os olhos fitando algum ponto bem atrás de nós… Por fim:

– Doutora, ela diz que o enfermeiro lhe deu um pacote e disse que era para ferver um litro de água e dar à criança. Ela não lhe deu porque não percebeu o que era para fazer com o pacote e não tinha nenhum recipiente para ferver um litro de água…
– Oh, valha-me Deus! Mas são as mães que têm de fazer isso?
– Sim, se o enfermeiro não preparar o soro, são as mamãs que preparam.
– Mas ele não deu conta que a mãe não tinha dado o soro à criança?
– A criança não está na enfermaria, as mamãs não ficam com elas lá dentro. E não fazem nada do que nós dizemos, na maternidade é a mesma coisa. É difícil controlar as coisas aqui – justificava-se a Dona Ana.
– Mas eu também prescrevi soro endovenoso. Isso também não está feito!
– Não sei, doutora.
– Mas pergunte à mãe o que se passou, se faz favor.
– Ela não deve saber.
– Mas pergunte, pode ser que saiba.

 (continua...)

sexta-feira, 27 de abril de 2012

[iapala] os crocodilos e os perus...


O Rio Monapo
(Iapala, Nampula)


(continuando...)

Calei-me durante um bocado e tentei desviar a conversa, enquanto me sentia culpada por ter recordado assim de chofre àquela menina, ainda para mais em frente da sua amiga, que ela ainda não era mulher. E enquanto prosseguia a conversa sobre o dia a dia na escola, fui fazendo, angustiada, um filme sobre a desgraça que se abateria sobre aquela jovem.

Para qualquer adolescente de uma sociedade dita desenvolvida, não chegar à puberdade e não menstruar pode ser muito perturbador, mas em África, isso implica um total aniquilamento social! Não sendo menstruada não poderia participar nos ritos de iniciação e, portanto, nunca poderia ser tratada e reconhecida como adulta. Ficaria para sempre interditada de ter um lugar na sociedade, de tomar parte em cerimónias tradicionais, em festas de adultos, não poderia assistir a ritos fúnebres – os mais importantes ritos das sociedades africanas. Seria sempre tratada por todos como uma criança. E escusado será dizer que não se poderia casar porque nenhum homem aceitaria como esposa uma mulher que não tivesse cumprido a iniciação e, pior, que claramente não pudesse ter filhos. A única condição que confere estatuto social a uma mulher africana é a maternidade e as mulheres que não conseguem conceber são ostracizadas. Esta menina estava condenada a ser infeliz, sem apelo nem agravo...

– Desculpa, Artemisa, acho que te magoei quando te perguntei se já eras menstruada – disse-lhe por fim –, mas se quiseres falar sobre isso um dia, fica à vontade.
– Sim, tia P.

Estávamos a aproximar-nos de um rio, onde mulheres e crianças tomavam banho, lavavam roupa e chapinhavam, tentando refrescar-se do calor do fim de tarde. A vegetação perto do rio era cada vez mais densa. Comecei a ficar nervosa por não conseguir ver bem onde punha os pés.

– Costuma haver cobras por aqui, Artemisa?
– Não muito, tia P., só mesmo crocodilos…

Arrepiei-me, subitamente gelada. Crocodilos, valesse-me São Francisco de Assis?
– Estás a brincar?
– Não, tia P.
– Mas estão pessoas a lavar a roupa, crianças a tomar banho, não há perigo?
– Sim, há perigo, mas é d’fícil eles saírem a esta hora da tarde. Aqui há sombra e eles gostam di sol...
– Mas já tem havido acidentes?
– Sim, às vezes há acidentes com crocodilos.
– E mesmo assim as pessoas permanecem tanto tempo expostas ao pé do rio?
– Ah, tia P. – um sorriso condescendente –, os acidentes só dependem do destino das pessoas... 

Voltámos para casa quase ao anoitecer, depois de termos falado sobre muitas coisas, e visitado o bairro, a escola, o lar público onde os estudantes viviam acantonados, numa pobreza e desolação arrepiantes, o fontanário, o mercado… Eu vinha menos alegre, pensativa, perturbada com a miséria e a dureza do dia a dia com que me tinha deparado, perturbada com o diagnóstico de Síndrome de Turner que tinha acabado de fazer, com todas as suas implicações para a vida da menina, estava triste com a minha própria precipitação, por ter iniciado a conversa de forma tão desastrada e não ter sabido depois conduzi-la de forma construtiva.

Foram comigo até à porta do hospital e, num gesto de cortesia, encarregaram-se de enxotar por mim o casal de perus, que continuava no mesmo sítio.
– Vocês conhecem estes bicharocos?
– Sim, tia P., são perus!
– Não! Pergunto se conhecem estes mesmos perus. Costumam estar aqui?
– Sim, são do Senhor Ramos, comerciante do bairro. São muito mal-educados. Perseguem pessoas!
– Pois, já percebi… Mas pensei que poderia ser uma “praxe” para mim…
– Irmã?
– Ah, deixem estar… Obrigada pela companhia! Até logo.

Deixaram-me e voltaram para casa, que eram horas de fazer o jantar. Eu queria ir visitar o menino que tinha internado com diarreia. Já estaria melhor?
(continua...)

quinta-feira, 26 de abril de 2012

[vozes brancas* #66] conta-me como foi...

Ontem na consulta com uma menina de dois anos:

- Beatriz, ontem foste ao jardim zoológico?
- Sim!
- E contaste à mãe como foi?
- Sim.
- Contas a mim também?
- Sim! Um, dois, três, quatro...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[outras palavras] guiné-bissau


África maravilhosa!
Foto descaradamente roubada à Domadora de Camaleões...


Diz o meu guru espiritual, natural da Guiné-Bissau e inspirador do meu funcionamento em "modo África":
«Sempre achei que o que o meu país precisava de mim e das pessoas da minha geração era que adquiríssemos competências em várias áreas e conseguíssemos aplica-las no seu desenvolvimento ou que nos permitisse honrar o seu nome em qualquer país ou organização onde estivéssemos inseridos. Tudo o que não precisava, era que contribuíssemos para engordar a lista de pseudo-políticos e pseudo-intelectuais que abundam na nossa terra.
Depois de tantos anos de treino, considerava que era um “desperdício” não me concentrar, quase em exclusivo, em tentar pensar e aplicar a técnica e o raciocínio aprendido ao longo deste tempo em algumas transformações possíveis de serem aplicados no meu país (quer directamente ou à distância). Por isso, apesar de ter sido sempre um cidadão atento e empenhado, deixei de me preocupar com muitas acções, partidos e pequena política da nossa praça e, ainda, de participar em algumas feiras de vaidade em que se transformavam alguns encontros e espaços de debate.
No entanto, neste momento decisivo da nossa história colectiva, em que alguns irresponsáveis nos puseram (e voltarei a este tema brevemente), parte do meu tempo será dedicado para uma contribuição mais directa na luta contra qualquer forma de ditadura, seja ela militar ou outra, e para a instauração de um país verdadeiramente democrático, livre e justo, que aspire a um outro patamar de desenvolvimento.
Devo-o a mim, à minha família e ao meu povo que merece melhor sorte.
Por isso, caros amigos, vamos lá fabricar ideias e acções que nos ajudem a passar para um outro nível enquanto país e enquanto povo.»
E eu tiro-lhe o chapéu! Porque há homens de escroto vazio e mente apática que não têm sequer coragem de pensar o que este senhor escreve...

[guiné-bissau] não passarão!

Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

Miguel Torga in Poemas Ibéricos, 1965

quarta-feira, 25 de abril de 2012

[repost] porque o 25 de abril é todos os anos!




Era a noite de 24 para 25 de Abril. Corria o ano de 1974. O meu pai, então Alferes a cumprir o serviço militar obrigatório, ofereceu-se para ir buscar as armas ao paiol, uma vez que o capitão estava nervoso demais:


- Aqui só se entra com senha e contra-senha! - gritava o guarda do paiol completamente a leste do que se passava...
- Olhe, vai haver um golpe de estado. Vamos derrubar o governo - o meu pai é a calma em pessoa -, portanto, o senhor ou se põe às minhas ordens ou eu tenho de o mandar prender...
- Ah... então, se é assim, faça favor!

O que se passou em seguida... é História!

[Esta peripécia ficou só para a história lá de casa, mas a minha preferida é a do chaimite que ia à frente da coluna militar e parou na avenida porque o sinal estava vermelho...]

E agora, se me dão licença, vou voltar para a mesa para ouvir o meu pai contar pela trigésima vez a história desta noite decisiva...

segunda-feira, 23 de abril de 2012

[as melhores do serviço de urgência] anatomias improváveis

Serviço de Urgência. Adolescente de 13 anos, com ar-de-quem-está-ali-porque-o-mundo-pode-acabar-dentro-de-três-horas-e-ela-tem-um-assunto-para-resolver, acompanhada por sua mãe, por sua vez com um ar-de-quem-está-ali-porque-o-mundo-pode-acabar-dentro-de-três-horas-e-a-filha-tem-um-assunto-para-resolver-e-ela-ainda-tem-de-ir-ali-a-um-sítio.

- Bom dia, então o que a traz cá?
- Doutora, a menina está com uma dor nas costas há três dias, que não a deixa dormir há três noites.
- E é a primeira vez que isso acontece?
- Não, ela já tem isto há muito tempo e está a ser seguida aqui nas consultas. O que me preocupa hoje é outra coisa...
- Então?
- Ela diz que sente uma demência das pontas dos dedos.
- Sentes o quê, querida?
- Não sinto bem as pontas dos dedos, estão dementes.
- Ah, estão dormente? Assim encortiçados?
- Isso...

(Uma doença nunca antes descrita, mas certamente gravíssima! Alzheimer da cabeça dos dedos.)

[paisagens gourmet] o cacau de são tomé





Cacau (delicioso, viciante), no mato, próximo da Roça Boa Entrada.
(São Tomé e Príncipe)

domingo, 22 de abril de 2012

[a arte em fuga] são tomé e príncipe


A fechadura que fugiu da porta da prisão...
(Roça de São João dos Angolares, São Tomé e Príncipe)

[medicina tradicional] são tomé e fé em deus



(Espaço CACAU, Cidade de São Tomé)

Em São Tomé, num espaço muito respeitável, com exposição de arte africana e restauração de qualidade, vende-se licor de limão anunciando propriedades medicinais, para "tratamento da gripe e tosse". O licor de limão "Levanta Maria" adiciona até uma frase que lhe dá credibilidade farmacológica: "tem vitamina C"! Ninguém duvidará, pois, de que é um medicamento possivelmente eficaz e razoavelmente inócuo...

A seu lado, um segundo medicamento de composição não especificada, 15 vezes mais caro, anuncia-se próprio para "tratamento da SIDA, quistos do útero, cancros e demais moléstias", doenças que, como é de senso comum, são inegavelmente aparentadas e com uma fisiopatologia comum. Sobretudo as "demais moléstias", que como sabemos, são uma variante da SIDA e dos cancros, mas em bom...

Tem apenas um senão... é um medicamento difícil de tomar até ao fim, porque durante o período de tratamento não se pode comer carne, peixe, ovos, leite ou gorduras, sob pena de não funcionar. Mas, diz a empregada do estabelecimento, se se conseguir chegar ao fim do tratamento vivo, tem casos em que funciona...

sábado, 21 de abril de 2012

[as melhores do serviço de urgência] terçolhos

Serviço de Urgência. Na semana passada, uma menina de cinco anos com o olho num trambolho há mais de um mês:

- Que tratamento lhe tem feito, mãe?
- Tenho posto esta pomada que me deram na farmácia todos os dias, mas já lá vão cinco semanas e nada...
- E não tem aplicado compressas com água muito quente?
- Isso não! - grita a menina.
- Olha, meu amor, então quando vires um polícia tens de dizer: "Terçolho, mirolho, vai para aquele olho!"
- Já fiz isso... - muito infeliz - não resulta...
- Bem, querida, então é porque isso só lá vai mesmo com compressas com água muito quente. Vais ver que não custa nada!
- Pronto, está bem...

As coisas que a gente aprende com a Caderneta de Cromos... Oiçam, que é de morrer a rir!

[vozes brancas* #65] anatomias improváveis...


Tenho uma amiga maravilhosa que está agora à espera do segundo filho... T., o filho mais velho de quatro anos, começa a intrigar-se com o estranho fenómeno que se desenrola dentro da barriga da mãe e que a faz mexer-se por dentro...

T. - Mãe, quando eu estava na tua barriga também dava muitos pontapés?
Mãe - Sim, filho, tu mexias-te muito! Eu percebi logo que ias gostar muito de jogar e correr atrás das bolas!
T. - Pois... sabes... eu estava a jogar futebol com a comida na tua barriga!

(A anatomia na cabeça das crianças é tão mais divertida!)

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[iapala] e a artemisa


A montanha mágica de Iapala...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Nessa tarde, uma das irmãs veio chamar-me depois da sobremesa: “Venha tomar café aqui na varanda, que as meninas querem conhecê-la.” Saí para a varanda que dava para o pátio, onde sessenta meninas me esperavam, todas juntas e com um sorriso. Cumprimentei-as, apresentei-me, disse quem era e ao que vinha. Elas continuavam num silêncio envergonhado. Até que lhes perguntei: “E vocês, não se querem apresentar?”
Duas ou três começaram então, casualmente, a entoar uma música simples mas lindíssima, cantada em Macua, que queria dizer apenas: “Bem-vinda, você é linda, queremos conhecê-la.”  E aconteceu então aquele momento mágico que me deixou rendida àquelas meninas e a Iapala...
Recordo que foi nessa tarde que, no meio das meninas, houve uma que de raspão me fez reparar nela porque tinha uma face que me pareceu estranha. Uma face estranha mas ao mesmo tempo estranhamente familiar... [Os cinzentões da Pediatria chamar-lhe-iam facies sindromática, mas eu não costumo ter dessas pretensões, muito menos no meio da savana, e portanto não lhe chamei nada. De qualquer modo naquele momento estava demasiado ocupada a derreter-me com as danças, os cânticos e os batuques de boas-vindas e a deslumbrar-me com a algazarra que sessenta adolescentes conseguiam fazer...] Ficou-me apenas uma estranha sensação nas traseiras da mente.

Fui novamente ao hospital mas, como naquele momento não havia mais nenhuma urgência, voltei para casa para saber se alguém queria ir comigo dar um passeio de reconhecimento nos bairros das redondezas. Precisava de compreender, pelo menos de relance, as condições de vida das pessoas que acorriam ao hospital e os nomes dos bairros mais próximos. Por coincidência, uma das meninas que se ofereceu para me acompanhar era a mesma que me tinha chamado a atenção pouco tempo antes e, à segunda vez que olhei melhor para ela, percebi o que era que ela tinha de especial: um pescoço largo com uma espécie de "asas", um tronco também largo e uma face um pouco grosseira. Olhei para o peito dela e percebi uma total ausência de volume sob a blusa. Tinha Síndrome de Turner, de certeza. [Para quem não está familiarizado com doenças genéticas, posso explicar que ela era menina, mas tinha nascido sem um dos cromossomas X.]

Aproveitei para meter conversa:
– Como te chamas?
– Artemisa, tia P.
– Que nome tão bonito. É o nome de uma planta medicinal, sabias?
– Sabia, sim, as irmãs já me tinham dito.
– E sabes que remédio se pode fazer com ela?
– Remédio para a malária.
– Isso mesmo! E em que classe estás na escola?
– Estou na décima primeira.
– Ah, muito bem. E quantos anos tens?
– Tenho vinte.
– Olha... e diz-me uma coisa, já és menstruada?
– Não, tia P. – o seu olhar, subitamente infeliz, fez-me perceber a minha horrível falta de tacto –, ainda não... 

Calei-me durante um bocado e tentei desviar a conversa, enquanto me sentia culpada por ter recordado assim de chofre àquela menina, ainda para mais em frente da sua amiga, que ela ainda não era mulher. E enquanto prosseguia a conversa sobre o dia a dia na escola, fui fazendo, angustiada, um filme sobre a desgraça que se abateria sobre aquela jovem. 
(continua...)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

[instantes] liberdade, outra definição!


Liberdade também é poder subir ao tronco mais alto da árvore do jardim enquanto um crescido "vigia" dormitando pacatamente na sua cadeira à sombra...
(São Tomé e Príncipe)

quinta-feira, 19 de abril de 2012

[iapala] as meninas das irmãs


(continuando...)
  
Em Iapala elas eram "as meninas das irmãs". Tinham uma cama, comida todos os dias, água nas torneiras, luz dentro de casa, livros e cadernos para estudar. Nunca iam ao hospital sozinhas e portanto, sob os mil olhos atentos das irmãs, eram sempre bem atendidas. Na escola os professores pensavam sempre duas vezes antes de lhes pedirem subornos ou favores sexuais porque sabiam muito bem no que se estavam a meter… em tudo o que tivesse a ver com as suas meninas, as irmãs eram umas autênticas leoas. Defendiam-nas com unhas e dentes e, portanto, se fossem descobertos, os professores corriam o risco de perder o emprego e já não seriam os primeiros a ir para a prisão.

Mas se fora de casa eram protegidas pelas irmãs e pela sua reputação de leoas, dentro de casa estavam longe de serem tratadas nas palminhas. Como quaisquer adolescentes que se prezem davam água pela barba a quem as acompanhava! Ansiedades, angústias, dúvidas, namorados, doenças – verdadeiras ou imaginadas –, saudades de casa, intrigas com as amigas, todas as noites aquela casa era uma animação. Uma telenovela das antigas. Um dia a dia bem diferente da Casa do Gaiato, pautado mais pelas brigas e disputas com que os meninos extravasavam a sua agressividade e as energias. Tão diferentes os rapazes das meninas… Mas também, tal como na Casa do Gaiato, eram aqueles os melhores momentos, os que passávamos sentadas na varanda, ao fim do dia, olhando a lua que subia sobre o monte Iapala, as queimadas a arder aqui e ali, a tentar impingir umas às outras o cão mais chato à face da terra, permanentemente a roçar-se em nós e a pedir festinhas. As meninas vinham ter comigo e por lá ficávamos, lado a lado, a namorar a noite e a conversar, todas com a difícil tarefa de tentar compreender o mundo e crescer dentro dele...
  
(continua...)

[instantes] são tomé e principe



"Vejam como a minha filha é linda!"
(Trindade, São Tomé e Príncipe)

terça-feira, 17 de abril de 2012

[a guiné-bissau] o que poderemos fazer?

A hora do polvo espero que para mim ainda esteja longe...

A Helena Ferro de Gouveia, ilustre Domadora de Camaleões da blogosfera tem-nos mantido a par do que se passa na Guiné-Bissau e das dificuldades por que passam os doentes e pessoal técnico no Hospital Simão Mendes, na capital... Se já é arrepiante imaginar o que será aquele hospital num período de funcionamento normal, acho que estive estes dias a tentar afastar da ideia a imagem daquele mesmo hospital sem medicamentos, sem comida, sem água ou electricidade. Hoje, felizmente, o post aliviou-me um pouco a angústia...
Nos pequenos gestos encontramos a diferença que nos leva a continuar a ter esperança na condição humana. Os apelos do Hospital Simão Mendes em Bissau, de que fiz eco aqui, foram sendo respondidos pelos próprios guineenses. Num dos países mais pobres do mundo a generosidade foi esmagadora. Cidadãos comuns, jovens, farmacêuticos e empresários uniram esforços que tornaram possível que a alimentação esteja garantida até sexta-feira e o material de emergência médica até quarta-feira.
Bem hajam. 

[no hospital de iapala] as meninas das irmãs




As "meninas das irmãs"...
(Iapala, Nampula)


(continuando...)



Ao início da tarde eu já estava sozinha a trabalhar, os enfermeiros e serventes tinham desaparecido da urgência quando perceberam que eu tinha mesmo intenção de atender as pessoas, deixando-me ali sem apoio nenhum.
A língua era uma barreira, mas de uma maneira ou de outra, com a ajuda de alguns familiares que falavam português e com uma linguagem gestual improvisada, já tinha orientado os mais de trinta doentes de forma mais ou menos satisfatória. Foi quando duas meninas me apareceram na sala de urgência para me dizer que a irmã Lurdes me chamava para almoçar. Nesse preciso momento chegou uma outra criança de dois anos trazida pelos jovens pais, que ostentavam a face mais desesperada que vira o dia todo.

– O que se passa com o menino?
– Tem diarreia, irmã.
– Eu não sou irmã, sou só médica – expliquei, sorrindo, pela enésima vez nesse dia.
– Sim, irmã médica.

A criança estava desidratada, mas não era muito grave. Não tinha outros sinais de doença. Ainda estava a ser amamentada pela mãe e não tinha vomitado o leite materno.

– Há quanto tempo está com diarreia? – peço às meninas para me traduzirem, já que neste momento não está mesmo mais ninguém por ali.

Ao que parece, desde hoje. São de uma aldeia a 20 quilómetros daqui onde na semana passada houve um surto de cólera e morreram algumas pessoas, na sua maioria crianças. Pergunto se alguma das pessoas afectadas pela cólera está agora internada no hospital, mas dizem-me que não. Ninguém veio ao hospital! Vieram com esta criança porque estão assustados. Já viram morrer muita gente com esta doença e estão ali para tentar fugir ao mesmo destino. Mando chamar o enfermeiro. Pergunto se tem um determinado antibiótico, se lhe pode colocar um soro na veia, se temos soro oral para lhe dar. Diz-me a tudo que sim. O menino só precisa de fazer o teste da malária, nada mais. A criança fica entregue.

As adolescentes que tinham vindo ter comigo eram duas das sessenta meninas que viviam com as irmãs, num lar anexo à casa, para poderem estudar na escola secundária durante o ano lectivo. Muitas eram órfãs, a maioria com famílias demasiado pobres para conseguirem pagar sequer um décimo da estadia, quase todas com histórias de vida tão terríveis que podiam fazer qualquer adolescente perder a vontade de se levantar da cama todas as manhãs, quanto mais de continuar a estudar. Só iam a casa nas férias e voltavam sempre mais magras, com doenças por tratar e com mais histórias tristes para contar... Mas tinham uma força e uma alegria de viver contagiantes. E se dançavam entusiasticamente todos os dias na missa, imaginem o que era às vezes aquela casa depois da missa... Uma animação indescritível que atraía metade da vizinhança!
 
 
(continua...)

segunda-feira, 16 de abril de 2012

[são tomé e príncipe] liberdade, a melhor definição!




No Ilhéu das Rolas...
(São Tomé e Príncipe)

[et in iapala ego] as ocorrências...

(continuando...)

Em redor todos continuavam, imperturbáveis. A servente da maternidade tinha começado a sua leitura: “Inventário da maternidade no dia 8 de Agosto à noite: duas tesouras, um balde, uma pá, uma esfregona, três cabos de bisturi, dois relógios de parede (um dele parado), cinco rolos de ligadura, um tabuleiro de pensos, duas tinas, um aspirador de secreções, um ambu de criança, dois porta-agulhas, cinco fios de sutura, duas arrastadeiras, uma vassoura, cinco redes mosquiteiras, duas velas e uma lanterna.” Não consegui deixar de esboçar um sorriso com aquele inventário absolutamente improvável, despropositado e completamente caótico. Para que serviria? Para evitar que o material fosse roubado? Mero controlo para evitar o caos total? Que rotina mais caricata… Fez-se silêncio.

– Muito bem – disse o director –, bom descanso aos que estão a sair e bom trabalho aos que estão a entrar. Vamos começar.

O primeiro dia foi relativamente leve, apesar de ser segunda-feira. Em qualquer parte do mundo a segunda-feira costuma ser um dia complicado, mas no meio do mato, onde hospitais e centros de saúde quase não funcionam ao fim-de-semana, o “efeito segunda-feira” é geralmente muitíssimo mais pronunciado. Sorte de principiante… Mas não foi fácil, claro, muita coisa nova para aprender, muitas rotinas diferentes, muitas práticas aparentemente sem sentido, uma língua totalmente estranha, a necessidade quase permanente de um intérprete… Ao início da tarde eu já estava sozinha a trabalhar, os enfermeiros e serventes tinham desaparecido da urgência quando perceberam que eu tinha mesmo intenção de atender as pessoas, deixando-me ali sem apoio nenhum.
(continua...)

domingo, 15 de abril de 2012

[welcome to mozambique] inspira, retém... expira!




Como se atravessa esta estrada? Bem, primeiro reza-se o responso a São Cristóvão... Ah, não existe? Improvisa-se, ora essa! Depois inspira-se, mete-se a primeira, mete-se a tracção... avançamos, aceleramos, nada de embraiagem, nada de mudanças, nem sequer uma segunda, continuamos a acelerar, a olhar apenas em frente enquanto fechamos os ouvidos. É imprescindível não ligar aos suspiros e aos "Ai, Jesus!" de quem está ao nosso lado e, necessariamente, menos optimista. Continuamos, sem fechar os olhos, sem um pestanejo, sem respirar... Pronto, já passou tudo! Expiramos e agradecemos. O companheiro do lado, agora menos pessimista, engole em seco. Metemos a segunda - num devaneio quem sabe até uma terceira! - e a viagem continua.
(Algures perto de Nampula, Moçambique)
Fotos da Irmã Helena

Isto é para quem me pergunta por que vou sempre para Moçambique na estação seca...

[et in iapala ego] os primeiros dias no mato...

(Há oito anos atrás, quando terminei o curso de Medicina, tive umas férias de três meses antes de começar o internato. Foi aí que, pela segunda vez, parti para Moçambique em voluntariado. Desta vez para Iapala, uma localidade no meio do mato, no Norte de Moçambique, a 180 km de Nampula. Já em tempos vos contei como foi o meu primeiro dia em Iapala. Agora conto-vos como foi começar a trabalhar no hospital...)


A enfermaria de Pediatria do hospital da missão.
(Iapala, Nampula)


Em Iapala o trabalho no hospital começava às 07:00 em ponto. No pátio do hospital, em frente à sala de triagem, dois perus enormes debicavam o chão, numa ciranda incessante e perseguiam os transeuntes menos cuidadosos que se atravessavam no seu território demarcado. Inchados e de cauda aberta, num glu-glu-glu trôpego e ameaçador. Desviei-me deles como pude, ante o olhar divertido dos presentes. “Será que isto é uma praxe dirigida aqui à caloira?”, ocorreu-me, e entrei no hospital.

 Os trabalhadores do hospital já me esperavam, todos de pé, perfilados na sala de urgência dos adultos. Pareciam um pouco nervosos. Ou desconfiados, não sabia bem… Era a primeira vez que iam ter uma médica a trabalhar com eles. [Sim, pode parecer inacreditável, mas o hospital ainda hoje não tem qualquer médico; funciona só com técnicos, enfermeiros e serventes…] Os enfermeiros do turno da noite empunhavam os livros de ocorrências, prontos para comunicar o que se passara com os doentes durante o turno e os serventes tinham já os livros de inventário abertos. Olhavam para mim de forma mais ou menos disfarçada e com curiosidade. Apresentei-me, disse que me sentia muito grata por estar ali a trabalhar com um povo tão amistoso num local tão lindo como Iapala, que só pelas montanhas e pela beleza da noite já tinha valido a pena uma viagem de tão longe, e que esperava poder ajudar em tudo o que estivesse ao meu alcance… Deram-se por satisfeitos e começaram a passar as ocorrências: a principal fora que as famílias de duas crianças internadas tinham fugido com elas nessa noite.

 – Fugiram? Mas porquê? – perguntei.
– Ainda estavam a piorar e a família já estava aqui há mais de um mês… – o director respondia-me, impassível.
– O que tinham os meninos?
– Estavam desnutridos. A recuperação estava a demorar muito tempo e a família deve ter resolvido ir procurar um curandeiro… 

Não perguntei mais nada. Engoli em seco. Algo me dizia que ia ser muito mais difícil trabalhar em Iapala do que em Maputo. Era uma cultura tão diferente... Pelos vistos era uma ocorrência normal, porque ninguém parecia ter ficado surpreendido por duas famílias terem fugido na mesma noite, levando consigo crianças doentes que provavelmente já não voltariam a ter oportunidade de ser tratadas.

(continua...)

[outras palavras] así se habla la lengua del imperio


- Papá, as pessoas que roubam o futuro das crianças... vão para o inferno?
- Não, filho... vão para um paraíso fiscal...


[momentos de sonho] gorongosa



Um leão na Gorongosa...
(Sofala, Moçambique)
Foto daqui

Um dia, meus amigos... um dia hei-de ir à Gorongosa! Nos entretantos, aconselho-vos vivamente a ir ali ver estas imagens...

[são tomé e príncipe] com que brincam as crianças?


Os carrinhos feitos à mão.
(Praia dos Tamarindos, São Tomé e Príncipe)
Foto da F.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

[vozes brancas* #64] mr. b. is so cute!

Hoje li a composição que Mr. B., o meu sobrinho de três anos, ditou no Dia do Pai para a educadora escrever no cartão pintado por ele:

Começava com: "O meu pai de manhã leva-me às cavalitas para a escola e vamos pelo Jardim da Estrela para eu dar o meu pão do pequeno-almoço aos patinhos porque eu não tenho fome e eles têm."

E terminava com: "À noite, quando está escuro, o meu pai bate no lobo mau para ele se ir embora e eu poder dormir bem!"

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

[instantes] a força que um sorriso pode ter!


As melhores amigas...
(Ilhéu das Rolas, São Tomé e Príncipe)

terça-feira, 10 de abril de 2012

[vozes brancas* #63] na escolinha de nampula!



Na fila para lavar as mãos antes de almoço...
A escolinha onde estudam os nossos afilhados à distância.
(Nampula, Moçambique)

Eu e os meus colegas do hospital temos uma afilhada nesta escolinha de Nampula, a Esmeralda, uma menina amorosa... Há uns dias a Irmã Assunção, directora da escolinha, contou-nos a última dela:

"Estávamos no pátio, quando a Esmeralda se dirigiu a mim e me disse: Irmã, eu ontem ti vi! Logo a amiguinha, não querendo ficar atrás: Eu também ti vi! E a Esmeralda: Tu não tiviste nada!"

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

[são tomé e príncipe] porque a s[a]ída existe!





Imagens para prevenção e alerta para o flagelo da SIDA...
(São Tomé e Príncipe)

[outras paragens] nascer na guiné-bissau...


Nas palavras do director da ONG com que colaboro: "Antes da fundação da Casa das Mães, em Bafatá «parto sem dor» era quando não morria ninguém..." Um projecto lindíssimo, que vale mesmo a pena conhecer.

[outras palavras] a lucidez...


Crianças...
(Guadalupe, São Tomé e Príncipe)

Primeiro o menino viu uma estrela pousada nas pétalas da noite
E foi contar para a turma.
A turma falou que o menino zoroava.
Logo o menino contou que viu o dia parado em cima de uma lata
Igual que um pássaro pousado sobre uma pedra.
Ele disse: dava a impressão que a lata amparava o dia.
A turma caçoou.
Mas o menino começou a apertar parafuso no vento.
A turma falou: mas como você pode apertar parafuso no vento
Se o vento nem tem organismo.
Mas o menino afirmou que o vento tinha organismo
E continuou a apertar parafuso no vento.

O Vidente, por Manoel de Barros

domingo, 8 de abril de 2012

[histórias do fim do mundo] o fogo novo!

Já vos contei esta história. Hojo conto-a de novo. Porque vale a pena! É o relato da vigília Pascal em Murrupula, Moçambique contado na primeira pessoa pela minha amiga V. Deliciem-se!


Quando a noite cai, o teu amor é como um fogo!
(Murrupula, Moçambique)


"Salama owani? Miyo salama! [Estão todos bem em casa? Eu estou bem!]

Acabo de chegar de Murrupula, da missão, onde passei estes dias da Páscoa e gostaria de partilhar convosco a noite mais mágica da minha vida, que passei ao lado da minha família africana, o Pe. Jacob, o Irmão Tobias, o Irmão Rui, nove seminaristas, os vinte e três rapazes órfãos que vivem no lar da Missão, o cozinheiro Rosário (o homem que nos mantém a todos vivos), várias dezenas de trabalhadores das machambas da Missão, carpinteiros, guardadores de vacas e ovelhas, a minha grande amiga Eugénia... e o Tejo e o Tajo, que são, certamente, os dois macacos mais mimados do mundo!

Aqui a Páscoa é vivida de uma forma muito diferente da que eu estou habituada a viver em Portugal, no meu Alentejo. Não são só os sabores, os cheiros, as cores, as cerimónias, os cânticos, a espiritualidade… mas passa por outra forma de encarar a paixão, a morte e a ressurreição.

Tinha ouvido falar da magia que se vive durante as cerimónias da Páscoa mas vivenciá-la aqui e ao vivo tem outro sabor. A Páscoa para mim já tinha começado na tarde de Sexta-feira Santa, na vila, onde foi encenada a Via Sacra pelos seminaristas, pelo grupo de jovens e pelos rapazes do lar da Missão. À noite, depois da comemoração muito simples do aniversário da Eugénia, os futuros baptizados que já tinham chegado à missão, “apagaram o fogo velho”. Formaram uma fila, cada um com um pedaço de lenha com uma ponta a arder e foram apagá-la numa taça feita de barro com água. Isto é interpretado como um apagar dos pecados, para um início de vida nova. Uma vida que iria começar na noite seguinte.

Após o jantar e todos os preparativos que ocuparam todo o dia, os futuros baptizados e os futuros noivos, os padrinhos e familiares e os restantes membros das comunidades reuniram-se junto da igreja para assistir ao “acender do fogo novo”. E a magia de que alguém me tinha falado começou...

Tentem imaginar uma roda de pessoas, tendo no meio uma enorme pilha de madeira preparada à espera do “fogo novo” e uns grupinhos de cinco homens e três mulheres (eu também fui, incentivada pelo Pe. Jacob e movida pela minha curiosidade) de cócoras, junto de dois pedaços de madeira que cada um sem cessar e rotativamente ia friccionando para manualmente “fazer o fogo”. Todos na roda humana esperavam este “nascimento” para acender o círio pascal e assim iniciar as cerimónias pascais deste ano.

Para quem está habituado a estas andanças, diz que desta vez a pequena brasa, que se formou do trabalho conjunto de sete pessoas, nasceu rapidamente... E a pequena brasa, celebrada com gritos de espanto e de júbilo, foi aninhada com todo o cuidado em “raspas” de madeira e depois de bem “pegada” e forte, foi queimar a fogueira que ali estava à sua espera.

De pequena, a fogueira cresceu para dar lugar a um fogo vivo, para contentamento, cânticos, palmas e alarido de todos. O círio pascal foi aceso a partir deste “fogo novo”, iluminando o caminho até ao altar da igreja. Este deu a sua luz, em conjunto, com as velas, e foi com esta luz que se realizaram os 97 baptismos de adultos e os 56 casamentos (!), que ali aconteceram nessa noite. Para receber o baptismo tinham uma tina de latão e uma cabaça que serviram de pia e “concha” baptismal, mas num local onde nem luz eléctrica ainda há, estas condições não incomodam o povo, que se encontrava ávido pela presença de Deus em sua vidas. É curioso observar a fé e a persistência deste povo, quando pensamos que muitos vieram de muito longe, andaram muitos quilómetros a pé para estar nesta noite e nesta igreja para receber o seu baptismo ou matrimónio, para assinalar a ressurreição do Senhor, de uma forma tão bonita.

A missa prolongou-se por mais de cinco horas mas, para a maioria dos que estavam presentes, passou bem depressa, entre cânticos, leituras e muita alegria pela celebração que se estava a realizar, e no final da missa, com todos sentados cá fora em silêncio, o nascer do sol sobre o monte deixou-nos de lágrimas nos olhos."