sexta-feira, 30 de setembro de 2011

[angústias de mãe] diversificação alimentar...

Telefonema insistente a meio da tarde no domingo passado... A mãe de um menino de 9 meses, felizmente saudável e com uns pais bem dispostos, liga-me com uma voz muito comprometida.

- Doutora, desculpe incomodá-la, mas estou muito angustiada...
- Então? Diga...
- É que quando ele começou a comer papas e sopa, a Doutora disse-nos que não devíamos introduzir dois alimentos diferentes pela primeira vez no mesmo dia...
- Sim, é verdade... Mas então?
- É que hoje introduzimos... quer dizer, foi um acidente...
- Pronto, deixe estar, acontece... ele também nunca fez alergia a nada. Se ele não tiver reacção nenhuma não faz mal. Mas e o que foi que introduziu hoje?
- Hoje demos-lhe salmão pela primeira vez e ele gostou imenso. Mas há coisa de dez minutos fui dar com ele a gatinhar pelo chão da cozinha e estava a comer a comida da cadela...

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

[refrões de uma vida] a força que um sorriso pode ter!


A mulher do enfermeiro Sopinha e a sua filha Eclésia, no dia em que me convidaram para os ir visitar...
(Gilé, Zambézia, Abril de 2008)

terça-feira, 27 de setembro de 2011

[et in iapala ego] a missão dos incomunicáveis...


No pátio da casa do nosso cozinheiro...
(Iapala, Nampula)

A primeira vez em Iapala foi dura... Uma missão a 200 km de Nampula, já depois do ano dos encantos de primeira vez em África. Era difícil estar incontactável e longe. Tanto mais que deixei um dos meus melhores amigos a sofrer por um amor traído (sim, esse mesmo, o dos soluços!) e não tinha a certeza se ele tinha conseguido dar a volta por cima. E estava com a desconfortável impressão de que alguma coisa de terrível poderia ter acontecido a alguém da minha família sem que eu pudesse ter sabido… Às vezes desabafava estes desassossegos com o Padre Filomeno e ele olhava-me nos olhos:

- Está tudo bem. Podes ter confiança porque está tudo bem. Aqui o tempo passa mais lentamente. A vida é toda mais intensa. África muda-nos. Por isso parece-nos que em nossa casa já tudo pode ter mudado também, mas não é verdade. Lá é que está sempre tudo na mesma. Nós ligamos e é como se tivéssemos ligado no dia anterior.

As suas palavras tinham o condão de me acalmar por algum tempo... Mas depois voltavam as inquietações...

[nomes que dizem tudo #23] uma páscoa feliz!

E já vos falei do menino de Nampula chamado Aleluia Mário? Bom mas mesmo bom era ele ter um filho chamado Sábado, para lhe poder chamar Sábado de Aleluia...

domingo, 25 de setembro de 2011

[vozes brancas* #51] o meu pai é até ao céu!

Serviço de urgência, sete da tarde de um dia de semana, a hora de ponta de qualquer urgência de pediatria que se preze... Duas médicas e duas crianças com as respectivas mães no mesmo atravancado gabinete de consulta, mais dois ou três doentes e respectivos pais à porta, esperando uma reavaliação. E choros e gritos e tosses e conversas e risos e correrias e nós: "Vá lá buscá-lo que ele fugiu para o corredor!", e eles: "Quero ir para casa!" e "Quero a avó!" e nós: "Pode ir levá-lo à avó, então, que já não precisamos dele aqui. Vá lá enquanto eu passo a receita." e eles: "Não quero xaropes!" e "Quero ficar aqui com a mãe!" e "Tenho sede!" e "Não quero soro, quero água!" e os outros pais: "Veja lá se falta muito para o meu filho ser atendido." e "Já estou aqui há uma hora e houve meninos que chegaram depois e passaram à minha frente, lá porque estavam com falta de ar... o meu também está com febre e ninguém me liga nenhuma!"

E nós a enchermo-nos de paciência porque ninguém tem culpa daquelas condições e ninguém está ali por gosto e ninguém disse que era fácil criar um filho, mas já estamos há dez horas metidas naquele inferno sabendo que ainda faltam mais dez para irmos descansar... E ainda a procissão vai no adro.

Mas mal voltamos costas e já os dois meninos se engalfinharam, numa disputa que não fazemos o menor esforço para compreender: "Não! Não troquem vírus, vamos acabar com isso já!" As mães, claramente cansadas, pegam-lhes ao colo, num último esforço para que não fujam e os possam manter debaixo de olho, enquanto recebem as últimas recomendações. Mas a contenda não ficou resolvida e, do alto do colo das respectivas mães, enquanto se debatem com uma raiva felina para reconquistar o chão e a liberdade de movimentos que lhes pertence, proferem impropérios e ameaças.

- Se eu quiser vou chamar o meu pai para te prender, que ele é polícia!
- E se eu quiser vou chamar o meu para dar uma tareia no teu, que o meu pai é muito mais grande!
- O meu pai é que é maior que o teu!
- Não é nada! O meu pai é até ao céu!
- Mentiroso! Ó mãe, ele é um mentiroso! Não há pessoas até ao céu, pois não?

A mãe, suspirando: "Sim, sim, filho, está bem..." A outra mãe tentando calar o filho, ligeiramente incomodada com aquelas fantasias...

- Toma! Tás a ver? Não há pessoas até ao céu! Toma!
- Ah, mas o meu pai é muito mais grande que o teu!
- E o meu pai é polícia, toma! O que é que o teu pai é?
- É bombista! Toma!
- "Bombista", o que é isso?
- Trabalha nas bombas!

Calámo-nos todos. A mãe a olhar para ele, muito envergonhada com o que o filho acabou de dizer e mal acreditando na nossa reacção. ["Eh lá... Um bombista aqui na urgência?!"]

- Ó filho, a mãe já te explicou que não é bombista que se diz. Ó Doutora, não faça caso, o meu marido trabalha é numa bomba de gasolina...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[outras palavras] inspiração para uma despedida...


Mulher na rua...
(Maputo)
Foto daqui, agora que passa um ano sobre a onda de violência contra o aumento do custo de vida, que no ano passado encheu hospitais e morgues em Maputo...

A Moça das Docas

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço,
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes, lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite,

Viemos...
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer de espádua todo o dia vergadas
sobre sedas que outros exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança,

Viemos...
E para além de tudo,
por sobre Índico de desespero e revoltas,
fatalismos e repulsas,
trouxemos esperança.
Esperança de que a xituculumucumba* já não virá
em noites infindáveis de pesadelo,
sugar com seus lábios de velha
nossos estômagos esfarrapados de fome,
E viemos....
Oh sim, viemos!
Sob o chicote da esperança,
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos,
saciaram generosamente fomes e sedes violentas...
Nossos corpos pão e água para toda a gente.

Viemos...
Ai mas nossa esperança
venda sobre nossos olhos ignorantes,
partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar
dos homens loiros e tatuados de portos distantes,
partiu no desprezo e no asco salivado
das mulheres de aro de oiro no dedo,
partiu na crueldade fria e tilintante das moedas de cobre
substituindo as de prata,
partiu na indiferença sombria da caderneta...

E agora, sem desespero nem esperança,
seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade...
E regressaremos,
Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,
rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool,
voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba,
ao sem sabor do caril de amendoim
e ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável...

Mas não é a piedade que pedimos, vida!
Não queremos piedade
daqueles que nos roubaram e nos mataram
valendo-se de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios!
Piedade não trará de volta nossas ilusões
de felicidade e segurança,
não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos.
Piedade não é para nós.

Agora, vida, só queremos que nos dês esperança
para aguardar o dia luminoso que se avizinha
quando mãos molhadas de ternura vierem
erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,
quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
com dignidade
e formos novamente mulheres!
Noémia de Sousa, a mãe de todos os poetas moçambicanos.

* Xituculumucumba (do Xironga) - Papão; animal imaginário (fêmea) com um olho, um braço e uma perna que os adultos usam para assustar as crianças. Isto é para não dizerem que aqui no mato não se aprende nada...

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

[a vida é simples] a luz dos meus olhos...



Inspirador... Uma solução absolutamente brilhante para os países em desenvolvimento! Só me apeteceu partilhar isto hoje mesmo com os meus amigos em Moçambique!

terça-feira, 20 de setembro de 2011

[outras palavras] alves redol

Já Alves Redol no seu Constantino tinha uma opinião parecida com a minha no post aqui abaixo. Se bem que menos ruminativa...
"Por voto do padrinho e assentimento dos pais, o rapaz recebeu no registo o nome de Constantino. É um nome bonito, sim senhor. Na aldeia não há outro igual, e isso é bom, pensou a mãe; escusa uma pessoa de matar a cabeça como em certas casas em que os homens usam o mesmo nome e ninguém se entende. Na Chamboeira conheceu ela uma mulher, a Ti Pirralha, metida num inferno de portas adentro por causa de o marido, o filho e o neto se chamarem António.

Enquanto o rapaz foi pitorro, tudo correu bem. Um era o António Grande, o outro só António e o mais novo o António Pequeno, O rapaz porém, deitou muito corpo, e depressa, enquanto o avô continuou cartaxinho, cartaxinho e melindroso, pois começou a pôr-se de vidro fino quando a mulher lhe chamava Grande, vendo nisso uma artimanha dela para se vingar de certas desfeitas que lhe fazia quando bebia um copo a mais.

«Grandes são os burros», refilava então o velho, muito rezingão, com reumático nas cruzes, umas dores parvas como dentadas de lobo. Mas andou tudo raso naquele casal quando a Ti Pirralha o tratou por António Velho para chamar Novo ao neto, o que incendiou o marido, e de tal jeito que a mulher teve de se esconder três dias em casa duma vizinha.

«Velhos são os trapos!», gritava o António Pirralha chamando corja ao povo inteiro da sua aldeia – que não gostava muito dele, valha a verdade.

Foi isto mais ou menos o que a mãe do Constantino lembrou ao marido para defender o nome escolhido pelo compadre."

[aviso] ignore este aviso!

Meus queridos amigos, serve este pequeno parêntesis para vos explicar que aqui no mato não possuímos livro de reclamações, tal como está patente ali ao fundo, do lado esquerdo daquele exíguo mapa onde se pode acompanhar o crescimento deste improvável beijo de uma mulata que, por acaso, e ao fim de todas as contas, não é mulata nem nada. E, que se formos bem a ver, também não é beijo coisíssima nenhuma, mas adiante, que há coisas que não se devem pôr em causa e os beijos das mulatas são uma delas. Os beijos das mulatas são sempre de coração. Mesmo das mulatas que só são mulatas por dentro.*

Mas o que eu vos queria dizer é que nós aqui no mato, não possuímos livro de reclamações. Pode alguém reclamar de um beijo, homens de Deus? De um beijo não se reclama, nem que seja roubado. Bem... sobretudo se for roubado... E pode alguém repudiar uma flor? Mesmo que seja só uma flor fingida, enterrada num balde de gelo, meus amigos, ou que tenha nascido nos confins da savana, uma flor é sempre uma flor!

E há ainda outras razões para não termos livro de reclamações. Nenhuma delas minimamente defensável, mas enfim, são as nossas. E quem dá o que tem, a mais não está obrigado, não é assim? Em primeiro lugar porque o Sr. Pompisk, padrinho honoris causa deste mato, também não possui um livro de reclamações.

[Para os que só chegaram agora, ou para os mais distraídos, há todo um conjunto de hiperligações ali numa das colunas da direita, onde se fala sobre o Sr. Pompisk (para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um abraço), embora, infelizmente, acho que não se fique a saber rigorosamente nada sobre ele. Ou bem... quase nada... Uma das coisas que ostensivamente não se fica a saber é a razão obscura pela qual a sua barraca "Só Basta Viver" no Gilé não possui um livro de reclamações. Mas isso, presumo, é lá com ele. Com ele e com a barraca dele...]

E enquanto o Sr. Pompisk não tiver um canhenho, por pequeno que seja, onde, honesta e dignamente, um cliente possa destilar todo o fel que guarda em segredo na sua alma contra aquele negócio, nós também não nos achamos no direito de o ter. E, por último, achamos assim um bocado idiota ter um livro de reclamações num blog. É sobretudo isso.

Por isso, meus caros, estas ruminações bloguísticas servem para dizer que não adianta mandarem mails atrás de mails para aquele endereço que está mesmo a pedi-los, justamente por debaixo do aviso de que este blog não possui livro de reclamações, a reclamar sobre a minha mania de falar sobre nomes de pessoas quando podia estar a falar de coisas sérias e a fazer serviço público, porque eu continuo a achar que é um excelente tema de conversa. Só vou responder à simpática senhora que observou que os três pequenos freaks mencionados no post abaixo, os irmãos Faquir de Domingo, Milagre de Domingo e Vidêncio de Domingo, não tinham necessariamente de ser filhos de um senhor chamado Domingo. A sua tese é que eles podiam perfeitamente ser filhos de um weekend man que projectasse na descendência todo o seu exotismo de fim de semana. E, portanto,"de Domingo" poderia perfeitamente ser nome próprio.

Podia, é verdade. Mas não, cara leitora, "de Domingo" neste caso não é nome próprio. Em Moçambique, pelo menos nas zonas de mato por onde trabalhei (suspeito que noutras províncias e nas grandes cidades não seja assim), o apelido das crianças não é o apelido do pai, mas o seu primeiro nome. A título de exemplo, o filho do senhor Ozias Trinta chamar-se-á José Ozias e não José Trinta. E não vejo qualquer inconveniente nesta prática. Pelo contrário. Assim obvia-se a confusa tradição que é dar ao filho o nome do pai sob pena de a criança ficar com o nome ridículo de João João ou coisa que o valha. Que isto de nomes repetidos é coisa que mais tarde ou mais cedo acaba por trazer desordem na família.

*O aviso que chama a atenção para a inexistência de um livro de reclamações está lá em baixo, confiem em mim, vão lá depois, que se não nunca mais saímos disto... Pronto, sim, logo vi que não bastava uma nota de rodapé, está mesmo ao lado do mapa das bolinhas vermelhas, onde até se pode constatar que os beijos de mulata têm, como se quer, uma especial apetência por zonas soalheiras e assim pertinho do mar e que se reproduzem desenfreadamente, pior que uma erva daninha, meus amigos, é o que vos digo... mas agora voltem cá para cima, que diabo! Até parece que têm bichos carpinteiros!

domingo, 18 de setembro de 2011

[nomes que dizem tudo #22] uma família de exóticos!




Meus amigos, no meio de um trabalho hercúleo que tenho para fazer no fim de semana, venho aqui partilhar convosco que esta manhã recebi informações sobre os meninos de Nampula que são apoiados pelos padrinhos em Portugal e descobri, lá pelo meio, uma família absolutamente impagável. Todos com nomes bastante comuns na região, comuns o suficiente para ter ficado com a certeza de que a combinação não foi propositada (sim, quero acreditar que nenhum pai faria isto de propósito à própria descendência).

Filhos certamente de um tal de Domingo, os meninos chamam-se, por ordem de nascimento: Faquir de Domingo (tentativa de ilustração acima), Milagre de Domingo e Vidêncio de Domingo.

[E poderíamos abrir aqui um longo parêntesis especulando o que fariam estes meninos durante os outros dias da semana, mas infelizmente, não temos tempo...]

sábado, 17 de setembro de 2011

[portugal no seu melhor] alguém que lhes trate das as unhas, valha-me deus!

Esta manhã passei novamente naquele que eu acho que seria o ponto de partida ideal para um Roteiro Humorístico da Cidade de Lisboa, ali ao Conde de Redondo. E, precisamente na montra da mesma loja de ferragens de que um dia vos falei, vi que tinham retirado o cartaz que dizia: "Temos onicomicoses* para fungos." Agora o vidro ostentava um cartaz muito mais sintético. Dizia apenas: "Onikomikozes. Aki tem!"

Mas será que aquilo afinal, em vez de publicidade, é um pedido de ajuda?

* Para que não digam que eu agora dei em falar chinês, onicomicose é uma infecção das unhas causada por fungos.

[sensibilidade e insensatez] uma nova oportunidade...

(continuando...)

A menina crescia, com um olhar vivo e uma actividade impressionante e os pais, a pouco e pouco, foram também reconstruindo a própria alma e revelavam-se as pessoas que são hoje: fantásticos, incondicionais e cheios de bom humor. E quanto mais o tempo passava, mais se compreendia que a menina ia crescer para ser uma menina muito inteligente e especial. Cresceu mimadíssima por pais e avós, entre consultas de tudo e mais alguma coisa em que invariavelmente estava tudo bem. Até que aos quatro anos, por pressão da pediatra que dizia que não podia ser, que não podia continuar em casa o dia todo, que não podia ser superprotegida, que já era mais do que tempo, a muito custo, os pais inscreveram-na no jardim infantil.

Uma semana depois constipou-se e teve uma sinusite. Dias depois dava entrada nos intensivos com uma meningite gravíssima. Dizem que o luto custa mais à segunda vez... Mas que dizer da alegria que é ver uma criança renascer, pela segunda vez, depois de ouvir que era quase impossível? Já vi meninos sairem de meningites destas sem muitas sequelas. Mas impecáveis como ela nunca tinha visto...

No final voltámos à carga. Que não podiam desanimar. Que a menina tinha de fazer uma vida normal. Que só assim é que a vida tinha sentido. Que tinha de ir à escolinha novamente.

- Nem pensar, Doutora! - Dizia a mãe, com o sorriso bem-humorado que a caracteriza, mas absolutamente determinada. - Para a escola é que ela não volta nunca mais! É que não mesmo. Quando chegar aos 18 anos meto-a nas Novas Oportunidades!

[sensibilidade ou insensatez] oportunidades...

Há uns meses tivemos uma menina nos cuidados intensivos com uma meningite de caixão à cova. Daquelas que metem coma de vários dias, alterações neurológicas difíceis de compreender mas tão persistentes que achamos que já não vão melhorar, bactérias resistentes aos antibióticos, várias cirurgias de drenagem. E medos e ansiedades e revoltas e perplexidades.

Tinha sido uma menina muito desejada, mas que tinha nascido sem esperança nenhuma, com os pais já a fazer o luto da criança que nunca teriam... No final da gravidez o cérebro da menina foi desaparecendo, comprimido contra as paredes do crânio por um mar violento que não tinha fim. Hidrocefalia, diziam os obstetras... Dandy-Walker, acrescentavam os Neurocirurgiões... Os pais não diziam nada...

O parto tinha sido um suplício, num desespero de quem tem a noção perfeita de que para sair viva daquela dor precisa de dar o seu melhor, mas que, por mais que se esforce, tudo quanto vai ter no final é um ventre vazio... Só que, contra todas as expectativas, a menina começou a respirar sozinha quando nasceu e portanto foi levada para ser operada e tentar abrir alguns canais naquele mar morto que lhe tinha nascido na cabeça e que tinha alagado a alma dos pais. Operavam-na porque ela tinha sobrevivido. Continuava a não haver esperança nenhuma a longo prazo. Mas que pelo menos a cabeça não crescesse tanto que ficasse a pesar muito mais que o próprio corpo, tinham-lhes explicado. Apenas para isso. Para que pudessem cuidar dela até ao fim...

Mas nos dias seguintes, um milagre foi acontecendo. Depois da cirurgia, o cérebro da menina, que tinha uma espessura de milímetros à nascença, foi-se expandindo até conquistar novamente o espaço que lhe tinha sido roubado e arrastado contra o crânio pela força das águas. Os pais, que nunca tinham arredado pé, iam olhando para ela, à medida que abria os olhos e esboçava um sorriso e se mexia e bocejava... e comia... E iam, quase a medo, acreditando que era possível. Nós não queríamos acreditar. Nós por fim só nos rendemos à evidência!

[E mais uma vez ficava provado que aquela massa, que só quem é muito crédulo acredita que é cinzenta, porque é vermelha, cor de sangue vivo, como quase tudo o que é nosso da pele para dentro... que aquela massa vermelha é o cimento de que se constrói a alma de uma criança. E é a pintura que pode dar brilho às almas dos pais.]

(continua)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

[instantes] coração de pai

Ontem desci as escadas com o coração pequenino, pequenino. Voltei para a animação carnavalesca do serviço de urgência com uma perturbação quase física no peito. Tinha ido dar uma notícia ao pai de um menino que estava internado há quinze dias num quarto de isolamento com uma doença grave.

Coloquei uma máscara para poder ir à porta e por isso ele não me viu sorrir, mas percebeu pelo meu olhar que a hora tinha chegado. E ele estava à espera. Já estava à espera daquele momento há mais de quinze dias. Sabia de todas as hipóteses, estava a par das nossas dúvidas, das nossas preocupações, dos nossos avanços e recuos. Sabia que o menino estava na mesma há muito tempo. Tempo demais, no seu coração de pai. Tanto tempo que já tinha deixado de fazer perguntas. Talvez por isso eu tenha tido de repetir três vezes a mesma frase até ele a compreender: "É benigno!" Eu também. Também só à terceira vez é que entendi o tamanho da angústia que lhe tinha abafado as perguntas e amordaçado a esperança...

[vozes brancas* #50] parabéns, é rapaz!

O meu sobrinho de 3 anos a rezar o Avé Maria:

(...) Santa Ma'ia, mãe de Deus, rogai po' nós pecado'es, ago'a e na ho'a da nossa mota. Amen.

(Diz a avó que todas as crianças são místicas. Ou bem... quase todas...)

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

[loucura] uma definição

A loucura não é uma porta que se fecha mas muitas janelas que se abrem, só que todas ao mesmo tempo...
In D. Maria, a Louca por António Cunha
Em cena no Cinearte interpretado por Maria do Céu Guerra

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

[as melhores do serviço de urgência] tem problema di sangue...

Serviço de Urgência, menina de dois anos trazida por uma osteomielite, uma infecção num dos ossos do braço. Mãe, natural da Guiné-Bissau, obviamente muito preocupada.

- A sua menina tem sido saudável?
- Sim, Doutora, nunca teve doenças antes.
- E há alguma doença na sua família?
- Não, somos todos saudáveis.
- E sabe se há alguém com tendência para ter muitas infecções? Assim alguém ou alguma criança que lhe tenham dito que tem poucas defesas?
- Não. Só eu tenho problema de sangue. Tenho... como se diz... anemia. Mas não é nada de especial.
- Mas não sabe que tipo de anemia tem?
- Já me explicaram mas não sei o nome.
- Mas faz algum tratamento?
- Sim, passaram-me um tratamento, mas há muito tempo que não faço porque disseram que não tinha cura.
- Disseram que não tinha cura? Mas não se lembra mesmo de que anemia é?
- Não sei o nome. Só sei que o meu sangue fica quadrado.
- Como?! Fica quadrado? Como assim?
- Não sei, Doutora, só me explicaram que o sangue fica quadrado.
- Mas... quadrado? Quadrado como? Não será antes... coagulado?
- Não, quadrado mesmo!
- Mas como é que lhe explicaram?
- Disseram que o sangue das pessoas é redondo, mas que o meu às vezes fica quadrado.
- [Oh, céus, mas o que será que isto quer dizer?]
- Quer dizer, não é bem quadrado, é assim mais... alongado.
- [Eureka!] Ah! Tem uma anemia falciforme!
- Sim, é isso mesmo!
- Pronto, já percebi tudo! Já sei o que é que tem a sua menina. Vamos então ao laboratório...

domingo, 11 de setembro de 2011

[inspiração para uma despedida] a força que um abraço pode ter!

Ontem, depois de um fim de semana maravilhoso, no meio de um abraço de despedida, houve uma frase que me tocou fundo e veio coroar mais de seis mil quilómetros, em que cada centímetro valeu a pena: "Foi tão bom ter-te cá... eu sinto que foi... foi um milagre ter-te aqui comigo!" A vida às vezes é tão simples...

"E todas as pessoas vivem, não pelo amor que têm por si próprias, mas pelo amor por elas que existe nos outros."
L. Tolstoi

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

[outras palavras] o chão, o colchão e a colchoa

Para melhor ouvir esta história, nem que seja na reverberação que as palavras fazem no pensamento, é preciso ler com sotaque. Não é preciso mais nada. Mas os puristas de Mia Couto sabem que as histórias dele são como a galinha à zambeziana: pode comer-se apenas com mandioca, mas com mucapata sabe incomparavelmente melhor.

(Para os que só agora chegaram a este mato, aqui fica a receita do acompanhamento: Faça como as crianças, vá até ao jardim, à praia, ao sofá da sala, deite a sua cabeça no colo de alguém de quem goste e ponha-se a jeito para umas festinhas no cabelo. Ou para lhe coçarem a moleirinha. Ao de leve. Feche os olhos. Deixe-se embalar. Não se importe de adormecer. O ritmo de Mia Couto dá mesmo para dormir antes que a história termine. Não lute contra o sono. O segredo é saborear as palavras que o outro vai interpretando. Uma a uma. Se não ouvir o final da história não se preocupe, é a desculpa perfeita para pedir para repetir! E quando a história terminar não abra os olhos. No fundo, a história não termina, vai terminando. Faça como as crianças, fique mais um pouco. E no final pergunte com um sorriso: e depois?)

- “Eu não sou um qualquer, tradicional. Mesmo já vou dormir em colchão”.

E explicou: ainda ele se esteirava na húmida humildade do chão. Mas era por um enquanto. Pois o seu colchão estava no caminho de vir, quase chegando.
- “Contra factos só há argumentos”.

E, de facto. Aconteceu nessa semana quando o comboio transfumou-se na estação, despulmonado. Saíram os magaíças, saiu a mercadoria. E entre as descarregações desceu o mencionado colchão. O povo estava ali para testemunhar. Xavier, inchado, dava ordens de cuidados. Que atentassem também no armário.
- “Me tratem bem esse arrumário”.

Ele não punha mão no carrego. Suores manuais não eram da sua estatura. Acontece que entre a multidão figurava Maria Amendoinha que logo, em imediato coração, desembarcou nos olhos do Xavier. A moça escutava, embevencida, o ex-mineiro a papagaiar pela estação dos caminhos-de-ferro. Que eu e eu, que isto multiplicado por aquilo, noves fora eu.

A mercadoria subiu num tchova e o povo seguiu o carrego em procissão. Maria Amendoinha seguia na cauda, absorta, coração em pensamento. O cortejo chegou a casa de Zandamela, a carga foi nivelada no rés-da-terra e transpostada para os interiores. Do lado de lá, os curiosos se fatigaram e dispersaram. Ficou apenas a jovem, sonhatriz, em suspiros mais leves que osso de morcego.
Nem ela notou a chegada da noite. Xavier saía e entrava a sacudir o cachimbo no pátio. Numa dessas saídas deu pela presença dela. Primeiro não decifrou sombras, desfolhou cautelas. Depois, ele aproximou intimidade, abelhoso. Duas cadeiras se arrastaram para assentar o tempo. O mineiro alargou as falas, endomingando conversa.
- “Você nem sabe imaginar as terras onde trabalhei! Lá não há pobre diabo. Sim, lá até o diabo é rico!”

Conversa puxa silêncio e a menina se fantasiava, natalícia. Nunca ninguém lhe lustrara tantos tentos e atentos. Amendoinha, despossuída, parecia a Eva sem maçã.

Xavier adiantou convicto convite: ela que entrasse a experimentar o colchão. Passos ébrios, ela foi entrando. E sucedeu-se: o colchão cumpriu seu destino. Estreou-se o objecto e a menina. Ficou um sanguezinho, vermelho minúsculo a manchar a esponja do colchão.

No dia seguinte, começou vozearia na aldeia: a nuvem é maior que o sol? A Xavier Zandamela lhe pesava o céu de tanto ser mencionado. Eram as falas:
- “O sapo incha por não dividir. Agora ele quer dormir sozinho em tanto colchão?
- “Esse é que o calcanhar: o gajo não deitou sozinho!
- “Acolchoou-se com alguém?”
Era urgente fechar o pio, para abrir o corrupio: Xavier tratou-se de casar com Amendoinha. E os dois conjugaram-se, em dia-a-noite. Porém, aquela felicidade se contou pelos dias. O mineiro revelou seus fundos violentos. Volta e volta ele batia na recente esposa. Xavier quis lavar a boca e sujou o sabão. Porque aconteceu então o imediato seguinte: altas horas a mulher acordava, escutando barulhos vivos dentro do colchão. Depois já não eram apenas sons, mas coisa apalpável. Amendoinha começou a colocar hipótese de maldição.
- “Marido: há bicho andante aqui dentro!
- “Isso nem se menciona”, advertia Xavier. “Somos alguns irracionáveis, igual a essa povaria do subúrbio?”

Amendoinha não se resignava. Se não era igual ao povo seria idêntica a quem? O marido aumentava-se, mas aquilo era corpo de imbondeiro. Ela já vira o engano: molhado, o leopardo não é mais que um gato-bravo. Bem diz o provérbio: a lua morre e é grande enquanto as estrelas, ainda que pequenitas, ficam a brilhar.
- “Pois, a partir de agora, você troca colchão por esteira.
- “Mas esses barulhos, Xavier...
- “Mas quais barulhos, santo e deus! Se eu não escuto nada?
- “Se não vêm do colchão é porque, pior, estão a vir da minha cabeça”.

Isso, sim. Xavier admitia, rindo. Mas aquelas gargalhadas eram alegria sem carne: se via através delas o nervo do medo. Os barulhos prosseguiam, quotinocturnos. Mesmo deitada na esteira, Amendoinha passava noites em claridade.
Ao longo de tanta insónia, ficou zonza-sonsa, coxeando da razão. E já não prestava respeitos ao seu legítimo. Xavier, despeitado, lhe incrementou nos arraiais. Batia com mais e mais violência. “Nem é por maldade: arreio-lhe para ela ficar cansadinha e dormir melhor”, dizia o mineiro. Fechava o punho e, enquanto amassava o corpo da mulher, comentava:
- “Amendoinha, é você; eu sou o pilão”.
A família de Maria Amendoinha veio-lhe buscar-lhe ela já não acertava o pé no passo. O pai de Amendoinha passou o olhar fatalício pelo quarto dos separados de fresco, ditando:
- “Aqui cheira a coisa parindo”.

E tinha razão. Pois, no ventre do colchão, daquela manchazita de sangue, estava nascendo aparente criatura, o desabrochar de maldição.

Xavier Zandamela quando se deita, sozinho e triste como gato que perdeu a rua, nem nota o adventício ser. Apenas sente que as formas do colchão se lhe amoldam: há duas concavidades, uma ao lado da outra. Seria que o colchão sentiria saudade da ausente esposa?
Até que uma noite, sonhava ele através de amores muito sexuais, quando na carícia do lençol reconhece o volume de seios, polpudas proeminências debaixo do seu corpo. Quem estava ali, afinal? Nem ousou acender as luzes, fosse a aparecência se extinguir. Aceitava aquela conversão de bom agrado.

A partir de então, o colchão se convertia em mulher, na mulher em que sonhava. Cada noite Xavier procedia a mais avanços, com tacto e beijo. A mulher - será que lhe poderia chamar assim? - , a mulher vinha da sobrenatureza e lhe dava um pedacito mais de acesso. Mas sem chegar a vias do facto. Ao despertar, Xavier se satisfazia. E sorriam recíprocos, ele e a manhã. Afinal, por que real motivo se necessita mulher no lado de cá da verdade?
Até que uma noite ele se preparou, perfumes e pijama lavado. Aquela noite, sim. Aquela noite, ele visitaria o íntimo daquela promessa. E assim aconteceu. Beijo e escuro, suspiro e silêncio. No êxtase, Xavier se viu dizendo inesperadas palavras:
- “Amendoinha!”

De repente, o colchão se revolteou, envolvendo o mineiro. Carnes e esponjas, braços e panos se entrerodilharam. O corpo do homem foi perdendo formato, em dissolvição. Quando dele não restavam senão avulsos botões de pijama se escutaram passos entrando pelo quarto. E Xavier Zandamela ainda sentiu apressadas mãos enrolando o colchão e o carregando pela noite afora.

Mia Couto in Contos do Nascer da Terra

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

[vozes amadurecidas] infertilidade e educação sexual

Possivelmente já repararam que quase não falo das minhas histórias de dentro de casa. Talvez por pudor e por receio do voyerismo, embora também siga blogues intimistas, que falam de pormenores do que se passa portas adentro e não têm receio de se expor sem muitas reservas. Não sou contra, simplesmente não é do meu feitio.

Eu sou mais reservada. Mesmo no dia a dia*. Não pareço, eu sei. Disfarço o mais que posso. Tive um conhecido, o meu instrutor de condução, que um dia me disse que nunca tinha encontrado mais ninguém assim, incrivelmente reservada mas uma conversadora nata. No final, como bom africano que era, reformulou: eu no fundo era, sim, uma desconversadora nata! Pois, aquilo em que eu sou especialista é em contar histórias. Quando não posso, desconverso. Ou falo do tempo. São poucas as pessoas que me fazem baixar a guarda.

Mas hoje, à conversa com uma amiga que anda desanimada pela dificuldade em engravidar, lembrei-me de uma história deliciosa dos meus 14 anos. Pela primeira vez fi-la rir-se do assunto e admitir que, se a receita da minha avó falhasse este mês, então estava na altura de ir procurar ajuda especializada...

Estávamos nas férias de verão e eu e os meus irmãos tínhamos ido visitar a minha avó, então com 85 anos. Ela, na altura estava mais ou menos como está hoje: lúcida, independente (hoje um pouco menos, infelizmente), bem disposta e perspicaz. Uma força da natureza com um sotaque levemente espanholado por ter vivido toda a vida numa terra de fronteira. Sempre se achou de mente aberta, e quase andaria à frente do seu tempo... se eu tivesse nascido trinta anos antes.

Numa tarde, ela olhou para mim, já uma mulher feita, com o corpo que tenho hoje, sentada a ler um romance e disse-me que queria conversar comigo. Achou que era altura de me pôr ao corrente dos factos da vida. Claro que me fiz de novas para não a desiludir. Curiosamente, abordou o assunto com clareza e um bom humor que não lhe suspeitava. Provavelmente falou comigo do mesmo modo que gostaria que tivessem falado com ela. Mas claro, mais de 70 anos depois, muita coisa já teria mudado...

Também achou por bem dar-me alguns conselhos para um casamento bem sucedido, como o de nunca deixar que o homem perceba que estamos cansadas dele, porque é um sentimento que passa, mais tarde ou mais cedo, e voltamos a apaixonar-nos. E uma pérola sobre a infertilidade:

- Filha, quando estava na altura de ter filhos e as mulheres não conseguiam "alcançar" [engravidar], havia uma oração que nunca falhava.
- Ah, sim? E como era essa oração?
- Antes de se deitarem juntos, rezavam os dois: "Senhor, não é por luxúria nem por vício, mas para dar um filho ao teu serviço!"
- E depois?
- E depois, Pai Nosso, Avé Maria e Glória.
- Não, avó... Pronto, está bem... E então, funcionava?
- Funcionava, filha, claro! Os filhos nasciam e criavam-se [sobreviviam]!

Uma pequena oração, um Padre Nosso, uma Avé Maria, um Glória, e ala que já anoiteceu! Seriam os preliminares da altura? Espero que não, mas bem... sempre seria melhor que nada...

Mas diga-se, em abono da minha querida avozinha, que ela e o meu avô tiveram seis filhos, todos vivos e saudáveis. É aproveitar, meus amigos, que eu não duro sempre!

*Abolir os hífenes é o máximo que por enquanto consigo cumprir do acordo ortográfico...

sábado, 3 de setembro de 2011

[outras palavras] e depois...

(...) Depois houve um silêncio, ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa, a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto. E procurava o seu peito!... Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis, ia ela escolher?

A ama estendia a mão – e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas. Valia uma província.

Agarrara o punhal e, com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão:
– Já salvei o meu príncipe – agora vou dar de mamar ao meu filho!

E cravou o punhal no coração.
Eça de Queirós in A Aia

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

[alhos e blogalhos] obrigada, santo antónio do google

Eu queixo-me, é verdade. Queixo-me muito dos que vêm aqui ter a este mato à procura de "mulatas selvagens" e afins (essas pesquisas continuam, obviamente, no top deste blogue, como não podia deixar de ser, que eu até me ofendia!)... Queixo-me em parte porque acho graça. Os queixumes têm ritmo, têm uma musicalidade própria e sobretudo despertam alguma reacção por parte do outro. Um carinho se forem queixas pertinentes ou, na maior parte das vezes, já que são despropositadas, evocam um sorriso condescendente, daqueles que dizem "pronto, pronto, tem graça as pessoas virem ter aqui ao mato com pesquisas absolutamente ao lado". E ficamos por aí.

Já o dizer bem tem menos ritmo e, para mim, tem menos graça, por isso nunca falo das pesquisas que me enternecem e me enchem a alma. Daquelas pesquisas certeiras. Das pessoas que têm tanta fé no Santo António do google que é só fechar os olhos e "puf", teletransportam-se até cá antes que consigam terminar a primeira frase do responso.

Isto para dizer que adoro quando vejo que houve gente que cá veio parar à procura de fotos de Iapala, de Ribáuè, do Gilé ou de Milevane. Inclusivamente houve uma pessoa que veio à procura da sua escola primária. A pessoa que queria ver uma "foto recente da escola primária de Iapala" queria mesmo ver a fotografia que postei aqui há atrasado... É bom. É mesmo bom, saber que às vezes este mato também serve para mais do que para disparates e sorrisos condescendentes. Uma fotografia não mata saudades, mas às vezes alivia e conforta. Quando a mim própria me assaltam saudades e me ponho a navegar à procura de outros olhares, mais do que matar saudades, conforta-me saber que mais alguém foi tocado por aquelas imagens, mais alguém as considerou dignas de um post, mais alguém amou aquelas paragens. E que possivelmente também foi feliz por lá... A todos os que vêm aqui ao mato, nem que seja por incidente: tenham um bom dia.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

[welcome to mozambique] sou o gabriel, o chefe dos ladrões...

Nessa tarde em Nampula embrenhei-me nas compras para o hospital até encher a cabine do carro. Sim, que nem pensar em carregar qualquer bagagem na caixa aberta do jipe, a não ser que quisesse ficar sem ela no mesmo minuto. Nampula, nesse aspecto é uma selva, infelizmente. Qualquer pessoa na rua é um potencial ladrão, desde os miúdos que se oferecem para guardar o carro enquanto entramos nas lojas, até aos mutilados pela guerra e pela lepra que pedem dinheiro nas ruas, passando por pessoas de aspecto normalíssimo…

- Eu sou o Gabriel, posso ficar a guardar o carro, mamã?
- Não, obrigada, vim com o guarda, que está lá dentro.
- Xii, mas ele está a dormir, mamã! Não vai nem dar conta di quem leve até pineu!

Quem me falava era um menino de seus 12 ou 13 anos de olhar vivaço. Afastei-me, mas não desistiu. Correu atrás de mim.
- Eu não sou ladrão, mamã!
- Ora, tu és o chefe deles!
- Sim, mamã! – Sorriu, deliciado, como se tivesse ouvido o maior elogio que lhe poderiam ter feito… – Eu sou o chefe dos ladrões! Ninguém vai roubar se eu não disser. Posso ficar a guardar o carro?

Não pude deixar de me rir… Tinham resposta para tudo!
- Não, Gabriel! Eu tenho guarda. Não preciso, obrigada.

Desde então, sempre que passava naquela rotunda, o mesmo menino vinha ter comigo com um ar de gozo:
- Mamã, lembra di mim? Sou Gabriel, o chefe dos ladrões. Posso ficar a guardar o carro?