sexta-feira, 29 de abril de 2011

[a tale of three markets] os mercados, a especulação e o sr. pompisk


I love New York, I'd live in Paris but...
Mozambique is easier!

No centro do mundo há a bolsa de valores, a especulação e a manipulação financeiras, há a subida e descida do preço das acções e do petróleo de acordo com o nervosismo dos mercados... A lei da oferta e da procura seria uma lei natural e básica se não existissem todos os outros factores estranhos e parasitas que a impedem de funcionar de forma linear. No Gilé há o Sr. Pompisk e a sua barraca "Só Basta Viver". O Sr. Pompisk é o garante da estabilidade da oferta e da ausência de oscilações dos preços. Para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um grande abraço!

É ele quem compra quase todos os produtos agrícolas da região, garantindo o escoamento dos pequenos produtores e controlando a oferta de bens alimentares de primeira necessidade. Assim, enquanto o Sr. Pompisk tiver stock, todos os outros comerciantes mantêm os preços a um nível acessível. De tal forma é importante a sua actividade para a estabilidade do nível de vida do Gilé, que foi impedido pelo Governador de fechar a loja durante os períodos das suas férias, precisamente para evitar a especulação e subida de preços por parte dos outros comerciantes, situação que poderia, literalmente, precipitar uma catástrofe alimentar!

P.S. - Tenciono continuar a escrever posts sobre o Sr. Pompisk até que alguém se decida, finalmente, a perguntar: "Mas afinal, quem raio é o Sr. Pompisk, podes explicar-nos, beijo-de-mulata? Se faz favor."

quarta-feira, 27 de abril de 2011

[inspiração para uma despedida] fantasmas ou fantasias

Uma das coisas que aprendi na vida do dia-a-dia é que o mundo se divide entre as pessoas que numa situação de "tudo ou nada", tendo o poder de decisão, arriscam tudo porque podem ganhar e as que não arriscam porque têm medo de perder.

Não há orientações clínicas ou tratados, bíblias ou valores morais, convicções existenciais ou religiosas que ajudem nas decisões desses momentos. É muito mais profundo do que isso. Muito mais profundo do que alguma vez podemos pensar quando nos colocam a situação em termos teóricos. Não sei se se chama personalidade ou história de vida ou se se trata de uma mera dualidade optimismo/ pessimismo. Só sei que às vezes a vida não é fácil.

E, no final, o que cada um faz com as decisões que toma... ou com as decisões de outrem que foi obrigado a aceitar... é ainda mais difícil. Podem tornar-se os fantasmas ou as fantasias de toda uma vida. Felizes os que esquecem porque deles são as noites de um sono só...

terça-feira, 26 de abril de 2011

[e porque hoje é necessário] um abraço ao sr. pompisk



Sonho um dia reescrever esta letra intitulando-a de "Um abraço ao Sr. Pompisk!" Ele não nos está a ouvir, certamente (no Gilé não há internet de banda larga, há um preço a pagar por viver no paraíso...). Mas não quero deixar de lhe prestar homenagem e de lhe enviar um grande, grande abraço. Obrigada e bom dia a todos.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

[a tale of three cakes] o doce mais intenso

I love New York, I'd live in Paris but...
Mozambique is tastier... and lighter!

Mokotto era uma iguaria que as mamãs das crianças internadas no hospital de Iapala (Nampula) me preparavam de vez em quando. Ou melhor, não a preparavam exclusivamente para mim, mas ofereciam-me para ser eu a primeira a provar, antes delas próprias ou dos filhos. Mas antes de mais tenho de fazer uma ressalva... Não tentem fazer isto em casa. Para além de ser um flop garantido (a não ser que tenham em casa um pilão, dois homens fortes e uns vizinhos de baixo um pouco surdos e bem dispostos - e não, a Bimby não amassa da mesma maneira), o Mokotto é uma iguaria apenas para estômagos experientes!

Eu aceitava porque seria impensável fazer uma desfeita dessas às mamãs e porque tenho a convicção inabalável de que tenho um bucho duro de roer, capaz de digerir os alimentos mais improváveis. Até mesmo os alimentos que quase ultrapassam aquele limiar que separa os alimentos dos não-alimentos... Isso e porque também tenho uma confiança cega em toda e qualquer mãe cujos filhos pareçam felizes e bem cuidados. "Se os filhos delas são saudáveis é porque a comida que elas preparam é boa." Raciocínio básico mas que nunca me falhou. Bem... e em abono da verdade tenho de admitir que há ainda mais uma razão. É que eu sou loira. Não é que seja muito burra, mas sou... vá, distraída. E quando pela primeira vez me lembrei que tinha comido um doce que incluía arroz cru na sua composição já tinham passado dois dias e era tarde demais para me doer a barriga...

Mas ultrapassada a questão digestiva, o Mokotto era absolutamente delicioso. E, curiosamente, pouco calórico! Feito de uma massa informe, preparada no pilão, amassando arroz pilado, leite de coco e açúcar (e outros ingredientes para dar sabor e cheiro, cujo nome não conheço em Português). Aprendi a saboreá-lo com a calma de quem beija... ia-se desfazendo dentro da minha boca, lentamente, com pequenos movimentos e pequenas mordidas, e descobria a cada centímetro um sabor e uma consistência diferentes...

[instantes] 25 de Abril de '74

25 de Abril
(Lisboa)

Era a noite de 24 para 25 de Abril. Corria o ano de 1974. O meu pai, então Alferes a cumprir o serviço militar obrigatório, ofereceu-se para ir buscar as armas ao paiol, uma vez que o capitão estava nervoso demais:
- Aqui só se entra com senha e contra-senha! - gritava o guarda do paiol completamente a leste do que se passava...
- Olhe, vai haver um golpe de estado. Vamos derrubar o governo - o meu pai é a calma em pessoa -, portanto, o senhor ou se põe às minhas ordens ou eu tenho de o mandar prender...
- Ah... então, se é assim, faça favor!

O que se passou em seguida... é História!

[Esta peripécia ficou só para a história lá de casa, mas a minha preferida é a do chaimite que ia à frente da coluna militar e parou na avenida porque o sinal estava vermelho...]

E agora, se me dão licença, vou voltar para a mesa para ouvir o meu pai contar pela trigésima vez a história desta noite decisiva...

domingo, 24 de abril de 2011

[histórias do fim do mundo] o fogo novo

"Quando a noite cai, o teu amor é como um fogo!"
(Murrupula, Moçambique)

Se há pessoas que me chamam de louca porque de vez em quando peço licenças sem vencimento para ir para Moçambique trabalhar como voluntária, eu respondo sempre que me chamam louca porque não conhecem as minhas amigas que, bem instaladas na vida, rescindiram contratos em Portugal para irem fazer voluntariado durante anos da sua juventude. Só não lhes consigo chamar loucas também porque sei que foram e são muito felizes! Deixo-vos hoje o relato na primeira pessoa da minha amiga V. sobre a Páscoa que viveu em Murrupula, Norte de Moçambique.

"Salama owani? Miyo salama! [Estão todos bem em casa? Eu estou bem!]

Acabo de chegar de Murrupula, da missão, onde passei estes dias da Páscoa e gostaria de partilhar convosco a noite mais mágica da minha vida, que passei ao lado da minha família africana, o Pe. Jacob, o Irmão Tobias, o Irmão Rui, nove seminaristas, os vinte e três rapazes órfãos que vivem no lar da Missão, o cozinheiro Rosário (o homem que nos mantém a todos vivos), várias dezenas de trabalhadores das machambas da Missão, carpinteiros, guardadores de vacas e ovelhas, a minha grande amiga Eugénia... e o Tejo e o Tajo, que são, de certeza absoluta, os dois macacos mais mimados do mundo!

Aqui a Páscoa é vivida de uma forma muito diferente da que eu estou habituada a viver em Portugal, no meu Alentejo. Não são só os sabores, os cheiros, as cores, as cerimónias, os cânticos, a espiritualidade… mas passa por outra forma de encarar a paixão, a morte e a ressurreição.

Tinha ouvido falar da magia que se vive durante as cerimónias da Páscoa mas vivenciá-la aqui e ao vivo tem outro sabor. A Páscoa para mim já tinha começado na tarde de Sexta-feira Santa, na vila, onde foi encenada a Via Sacra pelos seminaristas, pelo grupo de jovens e pelos rapazes do lar da Missão. À noite, depois da comemoração muito simples do aniversário da Eugénia, os futuros baptizados que já tinham chegado à missão, “apagaram o fogo velho”. Formaram uma fila, cada um com um pedaço de lenha com uma ponta a arder e foram apagá-la numa taça feita de barro com água. Isto é interpretado como um apagar dos pecados, para um início de vida nova. Uma vida que iria começar na noite seguinte.

Após o jantar e todos os preparativos que ocuparam todo o dia, os futuros baptizados e os futuros noivos, os padrinhos e familiares e os restantes membros das comunidades reuniram-se junto da igreja para assistir ao “acender do fogo novo”. E a magia de que alguém me tinha falado começou...

Tentem imaginar uma roda de pessoas, tendo no meio uma enorme pilha de madeira preparada à espera do “fogo novo” e uns grupinhos de cinco homens e três mulheres (eu também fui, incentivada pelo Pe. Jacob e movida pela minha curiosidade) de cócoras, junto de dois pedaços de madeira que cada um sem cessar e rotativamente ia friccionando para manualmente “fazer o fogo”. Todos na roda humana esperavam este “nascimento” para acender o círio pascal e assim iniciar as cerimónias pascais deste ano.

Para quem está habituado a estas andanças, diz que desta vez a pequena brasa, que se formou do trabalho conjunto de sete pessoas, nasceu rapidamente... E a pequena brasa, celebrada com gritos de espanto e de júbilo, foi aninhada com todo o cuidado em “raspas” de madeira e depois de bem “pegada” e forte, foi queimar a fogueira que ali estava à sua espera.

De pequena, a fogueira cresceu para dar lugar a um fogo vivo, para contentamento, cânticos, palmas e alarido de todos. O círio pascal foi aceso a partir deste “fogo novo”, iluminando o caminho até ao altar da igreja. Este deu a sua luz, em conjunto, com as velas, e foi com esta luz que se realizaram os 97 baptismos de adultos e os 56 casamentos (!), que ali aconteceram nessa noite. Para receber o baptismo tinham uma tina de latão e uma cabaça que serviram de pia e “concha” baptismal, mas num local onde nem luz eléctrica ainda há, estas condições não incomodam o povo, que se encontrava ávido pela presença de Deus em sua vidas. É curioso observar a fé e a persistência deste povo, quando pensamos que muitos vieram de muito longe, andaram muitos quilómetros a pé para estar nesta noite e nesta igreja para receber o seu baptismo ou matrimónio, para assinalar a ressurreição do Senhor, de uma forma tão bonita.

A missa prolongou-se por mais de cinco horas mas, para a maioria dos que estavam presentes, passou bem depressa, entre cânticos, leituras e muita alegria pela celebração que se estava a realizar, e no final da missa, com todos sentados cá fora em silêncio, o nascer do sol sobre o monte deixou-nos de lágrimas nos olhos."

sábado, 23 de abril de 2011

[a tale of two plastic surgeries] zambezia vs new york

I'd love to work in New York but...
Mozambique makes you keen on improvisation!

Duas cirurgias reconstrutivas... A primeira no Hospital de Mount Sinai em Nova Iorque e outra na Zambézia, na tenda da Unicef que já vos mostrei uma vez (antes de me insultares publicamente, R. Maria, a tua imagem está pixelada, não é possível que alguém te reconheça, ok?).

Meus queridos amigos, isto é apenas uma imagem para dizer que sim, é possível! Tudo bem, ter material adequado ajuda, é certo. Ter uma luz regulável e forte e não uma lanterna na mão de uma enfermeira também dá jeito, é outro facto. Mas ultrapassado o patamar do... como direi... não é bem do aceitável mas, pronto... do plausível, podemos afirmar que quem faz as cirurgias são os cirurgiões, não os blocos operatórios... E com um pouco de boa vontade, improvisação e savoir-faire tudo se faz!

Um dia conto-vos esta história improvável de uma cirurgia plástica no Gilé...

sexta-feira, 22 de abril de 2011

[a tale of four worlds] as crianças são iguais em todo o lado?

[a tale of two cities] momentos de vida

Newborns are beautiful in New York!
But in Mozambique they have precisely the same beauty...

Quando correm bem, os partos e os recém-nascidos são absolutamente iguais em todo o lado. Lindos, indefesos, cheios de fome e de frio, ávidos de alimento e conforto... Quando correm mal prefiro não falar...

Coreografia inventada, rodopio,
Nascer é vertigem, é magia e movimento
Tudo é náusea, fome e frio...
Só tu és deslumbramento.

[celebremos o mistério]

Durante o ensaio para as cerimónias do tríduo pascal, um grupo de pessoas decorava afincadamente a igreja, mudava a disposição dos bancos, arrastava móveis, martelava pregos, atarrachava parafusos com o Black & Decker, montava mesas, enquanto nós cantávamos alegremente o Ave Verum Corpus:


Uma amiga minha, exasperada pelo barulho... - Bem que podiam parar um pouco de martelar pregos enquanto estamos a cantar...
Eu, completamente zen... - Deixa lá... é litúrgico!


Uma Santa Páscoa para todos!

[darwin haveria de ficar a babar-se] metáforas

Esta manhã, na reunião de serviço:
"A gordura pré-pubertária no homem serve para se transformar em músculo para poder caçar e alimentar a descendência. Já no sexo feminino, a gordura pré-pubertária é um celeiro, um banco de gerações!"
Gonçalo CF

quinta-feira, 21 de abril de 2011

[as melhores do serviço de urgência] uma dieta rigorosa!

Um colega meu no Serviço de Urgência para a mãe de uma adolescente:
- A menina está muito emagrecida... e parece abatida. Ela tem perdido peso?
- Sr. Doutor, a minha filha está a fazer uma dieta óptima... Não come dióxido de carbono depois das 6 da tarde!

quarta-feira, 20 de abril de 2011

[canção de bem-nascer] eternos milagres

Canção de Bem-Nascer

Deixo ficar contigo o fim da tarde
Para que a fluida luz dissolva o medo,
Que o tempo fique um minuto quedo,
Do delírio do mundo te guarde.

A vida em torno é só espera e espanto,
Virás hoje e será tua a voz que dita,
- Ó filha da maré de encanto,
- Lua verde que o mar agita.

A dor é só um grito de amor,
E a angústia é sonho de esperança,
Nada te demova, doce criança,
De vir no derradeiro corredor.

Deixai que a lua murmure este verso,
Que, na noite, o seu reflexo nos lagos
Sejam lábios, lírios, afagos,
Seja o novo grito do universo.

Avança, rompe a bolsa transparente!
Arrasta contigo as águas do mundo,
Não faz mal que choremos um segundo,
Saudade dessa maresia quente.

Há lágrimas, sim, no rosto de quem reza,
Contas de cristal de água marinha,
- Filha amada da não tristeza,
- Filha para sempre menina.

Nos teus olhos brilha uma viva centelha,
Filha imaculada da mancha mais escura,
Nascida da maré vermelha
Trespassada de rocha dura.
E a noite celebra um milagre antigo,
Onde a cruz vermelha marca o local,
É um hino, a explosão deste vale,
Que é também vinho, sangue, mel e trigo.

Transborda o ventre, mar de súbito vazio,
E há um peito que te acolhe e que te alenta,
- Fonte fértil de qualquer rio,
- Sonho aceso em valsa lenta.

Há lágrimas, sim, no rosto de quem reza,
Contas de cristal de água marinha,
- Filha amada da não tristeza,
- Filha para sempre menina.

Esse grito com que falaste foi divino!
Ou como explicar este amor irradiante?
E se Deus pode proteger um semelhante
Deixa-me encomendar-te ao Deus pequenino...

Há lágrimas, sim, no rosto de quem reza,
Contas de cristal de água marinha,
- Filha amada da não tristeza,
- Filha para sempre menina.

Bem vinda, Beatriz!

segunda-feira, 18 de abril de 2011

[vozes brancas #46] pequenos heróis

Há miúdos absolutamente fantásticos! Esta manhã ouvi em primeira mão o relato deste acidente, que vitimou um grupo de hemofílicos que seguia para um encontro no Luso... Observei dois dos adolescentes hemofílicos que estavam no autocarro que capotou no sábado porque ainda precisavam de tratamento depois de terem estado internados em Coimbra.

Contaram-me que nos minutos que se seguiram ao acidente, antes da chegada dos meios de socorro (que, aliás, foi extremamente rápida, disseram), conseguiram remover algumas pessoas que estavam na estrada e que tinham sido projectadas com a violência do embate, e ainda entraram várias vezes no autocarro para ajudar os outros feridos a sair e para irem buscar o factor VIII que levavam consigo para qualquer eventualidade. E, apesar do pânico e do horror, enquanto o hospital de campanha era montado para assistir os feridos no local e se procediam aos trabalhos de desencarceramento, eles próprios, já treinados desde pequenos para estas intercorrências, começaram a preparar o medicamento para auto-administração e para o administrarem também aos outros! Rapidamente os profissionais de saúde os substituíram nessa tarefa, mas ainda assim eles estavam prontos e tinham intenção de o fazer se fosse necessário!

Um, com uma fractura da clavícula e o outro, com um ferimento na perna a sangrar, não esqueceram o risco que corriam (para quem não conhece bem a doença, diga-se que ambos os ferimentos podem causar a morte de um hemofílico em poucas horas), pensaram em si e nos outros, colocaram-se a salvo, colocaram os amigos a salvo, trataram-se e ainda prepararam a medicação para os amigos! Nem sei que diga... Ainda estou arrepiada. Durante a consulta rimos, reflectimos sobre a doença, sobre a vida em geral e a sua fragilidade, a nossa incapacidade de prever estas reviravoltas, emocionámo-nos... Estivemos todos à beira das lágrimas várias vezes. E, no meio disto tudo, ainda conservavam o sentido de humor e a boa disposição. No final acabámos por nos rir com a inevitável piada de que com todo o factor VIII que tinham utilizado, agora já deviam estar com o FMI à perna... (Azar! Abençoado dinheiro que os salvou a todos.) Eu fiquei com uma palavra apenas: Parabéns!

[a tale of three cities] o café


I love New York, I'd live in Paris but...
in Mozambique everything is natural!

Para uma verdadeira apreciadora de café, como é o meu caso, ainda hoje é intensa a recordação do aroma do café de Iapala, colhido de madrugada pelo Sr. Trinta e torrado e moído em casa para estar pronto às sete da manhã, antes de começar as primeiras consultas no hospital... Depois de Iapala, o conceito de "fast coffee", começou a ter sentido...

domingo, 17 de abril de 2011

[a tale of three cities] as notícias


I love New York, I'd live in Paris but...
in Zambezia you can also have first-hand news... with Mr. Pompisk!

Fácil. Muito fácil! E, de facto, muito mais divertido. Nas palavras dos próprios habitantes do Gilé: "Se o Sr. Pompisk não sabe de nada é porque não aconteceu!" Para ele, se nos estiver a ouvir, um grande abraço!

[maputo e new york] artigos de papelaria

BORRACHA ERASER

Com uma borracha Eraser o tempo
apagou a ava gardner, a janis joplin,
a hilda hilst, com quem eu subiria
três vezes em todos os elevadores
de Manhatthan, o tempo apagou
as gencianas que havia num poema
de d.h.lawrence e os beijos-de-mulata
naquele canteiro da Malhangalene
que agora se amodorra numa tonelada de brita.
Com uma detestável borracha Eraser,
o tempo apagou o teu nome
de todos os meus cadernos e deslaçou
o meu rosto do teu sistema arterial.

Nunca mais compro esta merda.
 
António Cabrita in Artigos de Papelaria

[a tale of three cities] criaturas lendárias


I love New York, I would live in Paris but...
Mozambique is exotic!

Sobre isto, vale a pena ler a explicação do Vítor, correspondente honoris causa deste mato, residente no Chimoio, mas infelizmente quase longe do paraíso...

Perto de Guruè, na Alta Zambézia, fica o Monte Namúli, que é a segunda montanha mais alta de Moçambique e é, para as pessoas da região, os lómuès, o berço da Humanidade. Dizem que lá se podem ver as pegadas do primeiro homem. Mas não se devia poder. Quer dizer, ningém devia poder vê-las. Parece que as coisas mudaram um bocado desde que eu vivi na Alta Zambézia, e vi guias de viagens recentes que aconselham caminhadas no Monte Namúli, mas antigamente só se podia escalar a montanha até um determinado sítio. Ou antes só se devia. A partir daí, era proibido, porque era terra sagrada. O castigo de quem se aventurasse até à parte de cima do monte era (como é muitas vezes, nesta parte do mundo, o castigo de quem viola alguma regra costumária) a pessoa perder-se e nunca mais encontrar o caminho para casa. O que é original – e delicioso, na minha opinião – na lenda lómuè é a maneira como a pessoa se perde: se o guardião eterno da montanha lá apanhar alguém, começa a falar com essa pessoa tanto e tão depressa que a confunde completamente; e ela, de tão baralhada que fica, nunca mais encontra o caminho de volta.

sábado, 16 de abril de 2011

[a kiss is just a kiss] maputo vs new york


I love New York but...
Mozambique is sweeter to me!

Eu podia dizer que Nova Iorque é uma cidade genuinamente feita à minha medida. Não dorme, fervilha de actividade, tem uma das melhores óperas do mundo e podemos à vontade ter uma crise de "ai que não tenho nada para vestir hoje" em tudo igual àquela que me deu no Gilé em 2008 sem que tenhamos de ir ao mercado a dezenas de quilómetros de casa deprimir-nos a comprar capulanas para enrolar à cintura (lindíssimas, é verdade que são lindíssimas, mas ainda assim, para quem acordou com um "ai que não tenho nada para vestir hoje", deixam o coração desconsolado...).

Mas não é por isso que Nova Iorque foi feita à minha medida. Estas nunca seriam razões suficientes. É preciso algo mais do que uma ópera e dois pares de sapatos para me fazer feliz. É preciso a cidade fazer-me sentir bem comigo própria. A razão é outra. Única e ainda mais comezinha, mas incontornável: Nova Iorque é uma cidade para loiras! Mas loiras mesmo daquelas que não têm um pingo de androgénios no cérebro. Daquelas cujas mães também já não tinham uma gota de androgénios que fosse. Nem as mães das mães delas. Daquelas que nunca-aprendem-o-caminho-para-lado-nenhum-à-terceira-quanto-mais-à-primeira. Daquelas que já mandaram três GPS para o lixo "porque não prestavam para nada" e que "para estarem sempre a dizer recalculando e inverta assim que possível mais valia estarem caladinhos na lixeira municipal onde no máximo só iam poder irritar gaivotas! E mesmo assim só se as apanhassem num dia mau, que as gaivotas são bichos reconhecidamente calmos e orientadinhos no espaço e não são animais para se deixar abater por um recalculando quando estão com pressa para ir apanhar um peixinho para o jantar..."* 

Nova Iorque, meus amigos, está organizada de modo a até uma loira conseguir orientar-se. As ruas começam no número um e vão por aí acima por ordem, muito certinhas e ordeiras até às muitas dezenas e as avenidas cortam-nas em ângulo recto igualmente por ordem (à excepção de uma ou outra, mas vá, não há cidades perfeitas!)... Em suma, não há maneira de uma pessoa, por menos melanina que tenha no cabelo, se perder!

No fundo eu até podia dizer que Nova Iorque é a minha cidade. Mas não digo. É verdade que sou bairrista e parcial. É verdade que as minhas coisas são sempre as melhores porque são minhas e eu gosto delas incondicionalmente. Perdoem-me. Isto se calhar são circularidades de uma rapariga loira... Mas a verdade é que Moçambique é muito melhor do que isto tudo. E ainda por cima Moçambique mima-me a cada esquina... Obrigada ao Pedro! A kiss from not so far.

* Estou a brincar, não foram três GPS, foram só dois...

[o fim do mundo em bicicleta] nampula vs new york


I love the glamour of New York but...
Ok, I really love New York.

Não resisto à beleza de certos momentos... Mas em Moçambique a bicicleta, longe de ser um objecto de glamour e devaneios, serve para transportar tudo. E quando digo tudo quero mesmo dizer tudo! Desde um familiar doente até famílias inteiras, desde grandes fardos de lenha e carvão para ir vender à feira até mobília e animais de grande porte. Por vezes vivos. Sim, leram bem.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

[vozes brancas #45] fashion advisor

Ontem, na consulta com uma menina de quatro anos:

- Porque é que usa sempre essa roupa? [Referindo-se à minha bata branca. Primeira tentativa de resposta: porque é uma generalidade, toda a gente faz o mesmo e é assim que se faz.]
- Sabes que todos os médicos usam sempre bata branca para ver os meninos.
- Mas porquê? [Ok, não a convenci com duas larachas... Ela está a perguntar para que serve a bata branca... Vamos à resposta por analogia...]
- Tu também usas bibe na escola?
- Sim.
- E porque é que usas o bibe na escola?
- Porque é a roupa da escola.
- Não, é para não sujares a roupa com as tintas e as canetas e para poderes brincar à vontade sem te sujares.
- Ah...
- E eu também uso a bata para poder ver os meninos à vontade sem me sujar.
- Mas essa bata é branca... [E pronunciou "branca" com um ar de indisfarçável desgosto... Ok, pronto, ela não estava a perguntar para que servia a bata. Estava a tentar dizer-me delicadamente que a minha bata é feia...]
- Pois, linda, mas as batas dos médicos são brancas... [Mais uma vez a resposta circular de "é assim porque é sempre assim..."]
- Mas devia usar uma bata cor-de-rosa às bolinhas ou com bonecos! O meu bibe é muito mais giro!

[Ora aqui temos uma fashion trendsetter! Cada um é para o que nasce... E ainda por cima tem toda a razão...]

[histórias curtas]

Ele casou-se duas vezes e foi infeliz em ambas. Da primeira vez a mulher fugiu de casa. Da segunda vez, não.
Millor Fernandes

quinta-feira, 14 de abril de 2011

[sabes que estás a trabalhar demasiado quando...]

...entras num taxi à porta do hospital às quatro da tarde, com o sol a dar-te na cara, cumprimentas o taxista com um simpático "Boa noite!" e ainda demoras algum tempo até conseguir perceber por que raio é que ele se virou para ti com um ar preocupado...
- Passa-se alguma coisa, menina?
- Não, obrigada... Acho que é mesmo só vontade de ir já para a cama!
- Mas isso está mesmo mau...
- Pois... ainda quero ver quantos disparates é que vou dizer mais hoje.
- Bem, se vai para a cama já não diz mais nenhum. A não ser que fale durante o sono.
- Não, ainda vou trabalhar mais logo.
[Virou-se para trás novamente com um ar preocupadíssimo.]
- Mas veja lá, se começar a ver que os doentes estão a piorar vá descansar um bocadinho...

[o fenómeno sporting] ubíquo

E não é que também por lá existe um "fenómeno Sporting"?
(Guiné-Bissau, foto daqui)

quarta-feira, 13 de abril de 2011

[adama] a vida é simples, insisto



Guiné-Bissau
(Fotos daqui)

(continuando...)

Meses depois, estava eu em casa a dormir, a recuperar do banco do dia anterior, quando recebo um telefonema de que reconheci num relance o indicativo da Guiné-Bissau: só podia ser da Adama, que me telefonava de vez em quando para dar umas atabalhoadas notícias, no seu português cada vez mais difícil de compreender. Daquela vez, a voz menos jovial pedia-me que lhe telefonasse de volta porque não tinha saldo. Em vão tentei ligar. Um sotaque africano insistia que me tinha enganado no número, que aquele não estava atribuído. Estranho. Muito estranho. Telefonei aos tios de Portugal, mas não tinham notícias dela porque tinham acabado de chegar do estrangeiro. Que de qualquer modo era sempre muito difícil contactar com ela porque na localidade onde vivia não havia rede de telemóvel. Só quando se deslocava a Bissau é que telefonava. Asseguraram-me que mais hora menos hora haveria de conseguir contactar com ela. “A rede lá é muito instável. Ora vai, ora vem.” Que continuasse a tentar, não havia mais a fazer. Tentei em vão. Fiquei perturbada. O que se passaria? Telefonei aos tios no dia seguinte, mas continuavam sem notícias.

Nessa tarde fiquei a saber pela directora do internamento que a Adama tinha falado com a voluntária que a ajudara a voltar para a Guiné e que lhe tinha dito que estava a passar fome, cheia de dores de cabeça e em todo o corpo... Gelei. Que ela não queria voltar para Portugal, não era nada disso, tinha feito questão de dizer, mas que estava a passar muito mal. Pensámos o pior... Para além do horror da fome poderia ter tido um AVC, uma trombose periférica... Que poderíamos fazer por ela? Uma coisa é certa, não tinha sido para isto que a tínhamos mandado de volta para a Guiné...

Só fiquei a saber do desenrolar dos factos na segunda-feira seguinte, quando passei na Unidade de Adolescentes. A voluntária mais um vez tinha sido o seu anjo da guarda. A história foi mais ou menos assim: No momento em que tinha falado com a Adama a voluntária estava no seu local de trabalho, ao lado de uma amiga, que por sua vez tinha um amigo riquíssimo, dono de uma ilha na Guiné, onde ia amiúde passar férias... Falaram com ele e o senhor tinha ficado muito sensibilizado com a história e, por um extraordinário acaso, iria para a Guiné no dia seguinte.

Conseguiram localizar a Adama em Bissau através de um jornalista, cujo contacto nos tinha sido dado pelo tio já no aeroporto, no momento da partida para a Guiné. Segundo o tio, tratava-se de um senhor de toda a confiança e que falava bem a língua local, portanto podia fazer de intérprete entre o magnata da ilha e a nossa protegida...

Ao que parece, o jornalista teve de interromper alegremente uma reunião com o Ministro do Interior para mediar a conversa! Quem me dera ser uma mosca africana para lá ter estado... No dia seguinte a Adama telefonou novamente à voluntária. A voz completamente diferente agradecia, porque já não tinha dores e estava tudo bem. Não telefonava mais porque ia regressar para Galumaro, a sua aldeia. A mãe da Adama também falou, com a voz embargada, uma única palavra em Português: Obrigada! As restantes palavras eram incompreensíveis, mas também não era necessário traduzir.

Lembrei-me há dias desta história, não sei porquê, mas continuo a achá-la inspiradora. Foi extraordinária a corrente de solidariedade que se criou em torno desta menina tão especial para a ajudar a cumprir o seu desejo de permanecer junto da família. E é curioso que tudo quanto lhe pudemos dar no tempo em que cá esteve, desde ter aprendido a falar Português, a conhecer as letras, até ao tratamento da doença, passando pelos amigos que fez, nada disto teria sentido para ela se não tivesse podido voltar. São tantas as vezes que pensamos que os meninos africanos com doenças crónicas não podem nem devem regressar ao seu país, que nem sempre conseguimos sequer pensar como poderemos organizar o seu regresso. Mas como dizia sempre minha tutora, “Se eu tivesse a minha palhota, era na minha palhota que eu haveria de querer estar!”

Depois disto nunca mais tivemos notícias dela... Não tenho muitas ilusões, sei que a vida é dura, que no mato há muitas doenças e que a saúde dela era frágil. Mas quero acreditar que está bem, que a vida continua a ser simples e que a sorte lhe sorri uma vez mais todos os dias...

De vez em quando tenho vontade de a ir procurar. Não seria impossível talvez... Temos o nome dela, a localidade, a história de vida, da família e da doença. E já percebi, por experiência própria, que em África só não se encontra quem não quer mesmo ser encontrado. Quem sabe se um dia alguém não completa esta história?

terça-feira, 12 de abril de 2011

[adama] o que faz a vida ter sentido...

Carnaval em Bissau
(Foto da net, mas não me lembro de onde, desculpem...)


(continuando...)

Durante o internamento connosco, a Adama foi operada e ficou a ver razoavelmente, mas percebemos que a menina não tinha só uma cegueira grave. Tinha uma anemia e uma doença genética que a tornava susceptível a AVC e tromboses venosas. Por milagre nunca tinha tido uma coisa nem outra, mas teve uma complicação no internamento (uma neuropatia) que nos deu água pela barba até a conseguirmos pôr a andar novamente e sem dores...

Enquanto esteve connosco cativou-nos a todos. Aprendeu a falar Português, aprendeu as letras, os números, aprendeu a ler. Conheceu as ruas, a televisão, o computador, a internet, aprendeu a manusear monitores cardio-respiratórios, bombas infusoras, aprendeu os nomes dos medicamentos e a função de cada um. Foi de fim-de-semana para casa de várias amigas, companheiras de quarto que conhecera no internamento. Passou o Natal em casa de uma enfermeira e o ano novo em casa de outra. Não faltou quem se oferecesse para a levar para casa. Só não a conseguimos convencer a voltar a beber leite... "Problema de olho!", respondia invariavelmente com um ar quase ofendido. Questão absolutamente inargumentável! Também acho que nunca aprendeu a gostar da nossa comida...

Entretanto, meses depois, a menina já estava melhor e queria voltar para junto dos pais. Mas era arriscado... E se tivesse um AVC? E se a neuropatia recidivasse? E se descompensasse com uma malária ou outra doença tropical? E se... e se... Foi inamovível. Queria voltar para casa. Como era possível, comentavam as pessoas... Como era possível alguém que tinha agora luz eléctrica, água corrente, acesso a todo o conforto e informação, acesso à educação também... como era possível querer voltar para o mato, para uma palhota? Mas também havia quem a compreendesse... [Não, meus amigos, eu não era a única a compreender as saudades dela! A vida é mais simples do que pensamos. E não é preciso ter vivido no mato para saber que o preço a pagar por não ter o mesmo conforto é muito pequeno...] E, com a ajuda de uma voluntária do nosso hospital, foi possível angariar dinheiro para lhe pagar a viagem de regresso.

Na mala levava medicação para um ano inteiro, a referência do médico que a poderia acompanhar, com quem tínhamos contactado a partir de Lisboa, a promessa de que lhe enviaríamos mais medicamentos com a ajuda dos tios quando tivéssemos um portador, um telemóvel para falar connosco e muitas recordações do carinho dos enfermeiros, auxiliares e médicos que a tinham apadrinhado e acarinhado naquela estadia tão longa no hospital... Fomos ao aeroporto despedir-nos. Também nos ia deixar saudades...

[adama] histórias que fazem a vida valer a pena...

Menina...
(Carnaval em Bissau, foto daqui)

Há alguns anos atrás, no meu primeiro ano da especialidade de Pediatria, durante o estágio na Unidade de Adolescentes internámos uma menina de 16 anos, vinda da Guiné-Bissau ao abrigo do protocolo de cooperação com os países de expressão portuguesa. A doença que a fizera vir fora uma cegueira progressiva. A junta médica em Bissau tinha assinado a autorização para a transferência mais um ano antes, mas como quem tem a responsabilidade de pagar a viagem para Portugal é a própria família do doente, a menina tinha tido de esperar esse tempo todo até a aldeia em peso se ter conseguido movimentar para a ajudar a comprar uma passagem para Portugal. Uma passagem só de vinda...

Já no hospital, os tios com quem tinha vindo viver explicaram-me como fora que tudo se tinha passado. Que a menina cedo começara a deixar de ver, mas que os pais tinham negado a doença inicialmente. Pensavam que era uma "doença tradicional".
- Uma doença tradicional? Porquê uma doença tradicional? - interroguei-os.

Ao que parece os pais pertenciam a etnias diferentes e terem-se casado significara a quebra de um tabu profundamente enraizado. Tinham traído os antepassados, renegado as raízes. E sempre souberam que o facto de não terem conseguido resistir ao apelo daquele amor impossível poderia ter consequências graves nos filhos... A nossa menina tinha sido a primeira filha daquele casal. Chamaram-lhe Adama, que significa mulher bonita, amante ardente, em honra àquela paixão arrebatadora, que apesar do sofrimento pela culpa os fazia tão felizes.

Só quando os olhos da Adama passaram de escuros a azulados e, por fim, a totalmente brancos e a menina deixara de conseguir encontrar o caminho para o fontanário para ir buscar água para a família é que os pais se renderam à evidência de que não podiam continuar a fingir que não reparavam no que toda a aldeia já sabia... Foi então que começaram a procurar ajuda...

Seguira-se um longo périplo, primeiro com o curandeiro mais famoso das redondezas, que se recusara a ajudá-los por não haver remédio para a zanga dos antepassados. Desconsolados, procuraram outro curandeiro, igualmente conceituado mas muito mais longe, desta feita um homem de mente mais aberta, também ele casado com uma mulher de outra etnia e que delicadamente não se referira ao tabu quebrado pelos pais. Atribuíra a causa dos olhos brancos ao excesso de leite de cabra, que a menina bebia desde criança, já que o pai era criador de gado... Mas nada parecia ajudá-la. Acabaram por levá-la para o Hospital Simão Mendes, na capital, onde ficou internada durante meses, sem que também pudessem fazer o que quer que fosse por ela... Até que se decidiram a enviá-la para Portugal.

(continua...)

[inspiração pra uma despedida] a dor da gente não sai no jornal



Tentou contra a existência
Num humilde barracão,
Joana de tal, por causa de um tal João. 
Depois de medicada, 
Retirou-se pro seu lar. 
Aí a notícia carece de exatidão,
O lar não mais existe; 
Ninguém volta ao que acabou. 
Joana é mais uma mulata triste que errou. 
Errou na dose, 
Errou no amor; 
Joana errou de João.
Ninguém notou,
Ninguém morou na dor que era o seu mal; 
A dor da gente não sai no jornal...

Haroldo Barbosa/ Luiz Reis, 1961

(Obrigada ao Vítor, correspondente honoris causa deste mato, agora em parte incerta...).

segunda-feira, 11 de abril de 2011

[brinquedos] zambézia vs new york


I love New York but...
Mozambican children are more skillful!

[portugal no seu melhor] hoje temos...

Na sexta-feira, estava eu a descer o Conde de Redondo a caminho dos correios quando fui vítima de assédio religioso, mesmo à porta de uma loja de "artigos para adultos". Fui abordada por uma simpática senhora testemunha de jeová, ávida pela conversão de almas pecadoras para o seu céu, um céu limpo e luminoso, livre de pecados, isento de sofrimento, de impostos e de derivados de sangue... Vi-me e desejei-me para me libertar dela, enquanto quase me perseguia com frases incisivas de morte e arrependimento. Nisto, dei de caras com uma montra de uma loja de ferragens onde se podia ler em várias folhas de formato A4: "Temos baba de caracol"; "Temos leite de burra. Em creme!" (Com ponto de exclamação e tudo) e, pérola das pérolas: "Temos onicomicoses para fungos."

Sinceramente... Para quem não percebeu, é assim como se anunciassem numa loja de artigos de jardinagem: "Temos pulgas para cães.", ou pior ainda, "Temos cães para pulgas!"

É por estas e por outras que a Rua do Conde de Redondo tem lugar cativo em todos os roteiros de Lisboa... E se alguém quiser fazer um dia o Roteiro Humorístico da capital também acho que pode começar por aqui!

[passear com os filhos] nampula vs new york


I love New York but...
in Mozambique babies are happier!

domingo, 10 de abril de 2011

[olhos quentes de sul] ingenuidade e racismo

O engraxador do Rossio...
(Foto daqui)

[Ouvido anteontem...]

- Cheguei pela primeira vez a Portugal, já médica e com vinte e cinco anos, vinda de Angola onde tinha sempre vivido. Tive logo a sensação de que algo de muito estranho se passava, havia muita coisa não batia certo. Nem conseguia dizer ao certo o que era que estranhava até que cheguei ao Rossio e vi um branco dobrado a engraxar os sapatos de outro branco... "Assim não vamos a lado nenhum!", foi logo o que eu pensei!

[inspiração para uma despedida] amanhã não existe!

(...)

Amanhã não existe. Meu somente
É o momento, eu só quem existe
Neste instante, que pode o derradeiro
Ser de quem finjo ser?
 
Ricardo Reis in Odes de Ricardo Reis
Fernando Pessoa

[music and style] nampula vs new york


I love New York but...
Mozambique catches your eye!
Mozambique is funnier...

sexta-feira, 8 de abril de 2011

[a minha vida dava um filme cigano] ...não tinha as cédulas necessárias

Ontem encontrei no corredor do hospital a mãe de uma menina cigana, já muito minha conhecida de "outros carnavais", que tinha sido internada no dia anterior para uma cirurgia programada.

- Boa tarde, então a sua menina já foi operada?
[Desconsolada] - Não, Doutora, foi...
- Então?
- Disseram que não tinha cédulas...
- Não tinha cédula? Mas não está registada a menina?!
- sei, Doutora, disseram que tinha as cédulas necessárias para ser operada...
- Mas isso é muito estranho...
- Pois, Doutora, eles também disseram que era estranho e por isso mudaram-na de enfermaria...
- Mudaram-na de enfermaria?!
- Sim, porque tinha as cédulas baixas não podia estar ali, tinha de ficar no isolamento...

[Ai, valha-me Santo Inácio, que já percebi tudo...]
- Então foi transferida porque tinha as células do sangue baixas?
- Isso, Doutora. Eles até achavam que tinha uma dulcemia, mas afinal parece que é nada disso! Já está melhor...
- Ah... Ainda bem... Então as melhoras.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

[a minha vida dava um filme cigano] aprender a falar...

No corredor do hospital no mês passado, um colega meu Neuropediatra encontrou o pai de um menino cigano de cinco anos, que tinha ido à sua consulta no ano anterior por um atraso gravíssimo da linguagem. Nunca mais regressara à consulta apesar dos esforços do médico em contactar a família, já que a situação era muito preocupante (um clássico: os números de telefone nestes casos nunca são verdadeiros...). O Neuropediatra, senhor de uma memória fotográfica de fazer inveja, faz parar o pai, que assobiava para o lado, tentando passar de fininho...

- Então o senhor nunca mais me apareceu na consulta com o menino?
- [Olhando para baixo...] Hã... Doutori... Pois foi. Nunca mais... [E, de repente, com a face iluminada por um sorriso...] Mas é que ele está muito melhori!
- Está melhor? Então? Mas já diz alguma coisa?
- [Com um grande entusiasmo!] Sim, Doutori, vêja lá que o cabr*** já diz fi*** da p***!

Enfim, como diria o Lépido, tem de se começar por algum lado...

[hoje] mais do que nunca...

Preciso de um café em dose meníngea...

quarta-feira, 6 de abril de 2011

[impaciências] as melhores da sala de partos

Na sala de partos, uma jovem já desesperada pelo trabalho de parto arrastado, pelo jejum de há mais de 12 horas, pelos toques sucessivos, pela ausência de contacto com os amigos e com a família:
- E ele que nunca mais nasce! Não quer nascer... - E voltando-se para a enfermeira parteira, que lhe administrava a medicação - Acha que ele ainda nasce?
- Ó minha senhora, ainda está para nascer o bebé que tivesse ficado lá dentro!

[à mão a comida sabe melhor] zambézia vs new york


I love New York and gourmet restaurants but...
In Mozambique food is genuine happiness!

A vida é simples. Mais do que nos atrevemos a pensar. Sinceramente, comer com 17 talheres e 5 copos é coisa para centopeias, não é para famílias harmoniosas e pessoas de bem... A verdade é que à mão, no mato, com uma família que nos acolhe e partilha o que tem, a comida tem um sabor que nunca imaginaríamos.

Aliás, lembro-me sempre da célebre frase de Henrique VIII, quando os seus conselheiros lhe explicaram que estava na moda comer com garfo porque era mais limpo e mais distinto, uma vez que os garfos podiam ser lavados. "But so can your hands!" foi a resposta histórica.

terça-feira, 5 de abril de 2011

[welcome to mozambique] always dancing!

If it could only be like this always... always summer, the fruit always ripe and everyone dancing in a good temper...
(Nampula, Moçambique)


segunda-feira, 4 de abril de 2011

[instantes] o nascer do sol no índico

Dura um instante, o nascer do sol próximo do equador... mas é sempre em instantes de todos os dias que podemos ser felizes.
(Praia das Chocas, Nampula)

[vozes brancas #44] um bebé na minha barriga

(Continuando o post abaixo... Não, não tem link, não sejam preguiçosos, é o post imediatamente abaixo deste, até mal parece andar aqui com hiperligações, valha-me São Vito!)

Olhei melhor para o menino enquanto a mãe o despia... Olheirento, frágil, com uma barriga inchada e o olhar infeliz que nenhuma criança deveria ter. A mãe também com um ar que quem não estava cá, perdida no meio de pensamentos e preocupações. Alguma coisa se passava, de facto, se bem que não necessariamente algo de orgânico... Palpei-lhe a barriga, inchada, cheia de ar. Nada. Palpação inocente. Nem tumores palpáveis, nem fezes, nem alterações da motilidade intestinal. Absolutamente nada! O menino apesar de triste estava bem nutrido, sem anemia, sem outros sinais que me chamassem a atenção. Olho a mãe nos olhos:
- Mas mãe... passa-se alguma coisa?
- Não, doutora...
- Mas está tudo bem lá em casa?
- Sim, está tudo bem.
[Sempre aprendi por experiência própria que é nas famílias do "lá em casa tudo bem" que as crianças mais sofrem por não poderem verbalizar as suas preocupações e geralmente quando pedem ajuda ou atenção é desta forma desajustada...]

- Mas tem havido preocupações, problemas entre o casal, alguém ficou desempregado, alguma coisa deste tipo? As crianças sentem muito isto, apesar de às vezes acharmos que não se apercebem...
- Não doutora, está tudo bem... Só tenho andado muito preocupada com isto...
- A barriga tem-te doído, meu querido?
- Às vezes dói quando está maior...
- E tem doído muitas vezes?
- Sim. Se calhar tenho um bebé na barriga...
- Ó filho, a mãe já te explicou que só as senhoras crescidas é que podem ter bebés na barriga. Os meninos não - a mãe carinhosa, mas visivelmente agastada por esta deixa do menino.

[Ó diabo... um rapaz de cinco anos e meio a verbalizar fantasias crossgender deste calibre? E ainda por cima parece uma coisa recorrente, já que a mãe reagiu logo... Será esse o problema? Uma perturbação de identidade de género que a mãe não quer aceitar? Será que ele se identifica com uma menina e a mãe anda a tentar reprimir esse tipo de comportamentos? Será que na escola o gozam  por isso? Parece tão frágil, tão franzino, de certeza que nem se consegue defender se os outros miúdos o gozarem e começarem a atacar por causa disso... E já sabemos como são as crianças... O filme todo a desenhar-se na minha cabeça... Claro que numa família destas, em que tem de estar sempre tudo bem, tem de demonstrar o seu sofrimento falando de dores de barriga - ou de dores de cabeça, ou de dores de outra coisa qualquer - nunca falando de sentimentos... Lá terei de fazer de médica incomodativa, mas enfim, o meu papel é ajudar o menino, não é dar palmadinhas nas costas a ninguém... Mas não me apetecia mesmo nada... Com fome, cansada, com falta de paciência... Depois desta tenho mesmo de fazer uma pausa!]

- Parece-lhe que ele tem andado infeliz?
- Ultimamente às vezes parece-me abatido...
- Mas tem brincado?
- Sim, brinca, mas lá na escola têm-me dito que tem brincado mais sozinho...
[Humm... aqui há gato...]

- E com que é que ele gosta de brincar?
- Brinca com os carrinhos dele...
- Só com carrinhos?
- Sim, também gosta de brincar aos polícias e ladrões e às naves espaciais.
- E faz o papel de quem, quando brinca?
[A mãe devia estar a achar aquilo tudo um disparate] - Geralmente faz o papel de polícia ou de comandante das naves espaciais... Mas o que é que isso tem a ver?
- Estava a ver se ele não estaria demasiado triste para conseguir brincar... [Pelos vistos até é muito rapaz...] E tem tido dificuldade em dar-lhe banho ou em vesti-lo de manhã?
- Não. Ele até se veste sozinho.
- E o que é que ele mais gosta de vestir?
- Coisas práticas, fatos de treino e assim. [É rapaz, de facto...]
- Quis mascarar-se no Carnaval?
- Sim, escolheu um fato de Homem-aranha. Tem uma adoração enorme pelo Homem-aranha - mãe e filho sorriam, cumplices, com esta frase.

[Bem, perturbação de identidade de género não tem de certeza... Nem está fora da realidade... Ou seja, ele sente de facto alguma coisa na barriga. Lá vou ter de lhe pedir uma ecografia abdominal. E logo a um miúdo cujo primeiro diagnóstico foi uma perturbação de identidade de género! Isto só a mim... Canário, por que é que os doentes nunca lêem os mesmos livros que os médicos?!]

E pronto, foi assim que fiz o raciocínio improvável e levemente nonsense de que se o menino não estava deprimido nem tinha uma perturbação de identidade de género então só podia mesmo ter um tumor intra-abdominal... e não é que tinha mesmo? Um tumor benigno com 600 gramas. Bem que o pobrezinho dizia que tinha um bebé na barriga!

domingo, 3 de abril de 2011

[vozes brancas #43] um bebé na minha barriga

Há umas semanas atrás, na urgência de pediatria, num fim de tarde daqueles em que parece que nem tempo temos para respirar porque estamos a ver cinquenta meninos ao mesmo tempo e é preciso controlar quem é que já fez os aerossóis, quem é que já veio das análises, por que é que o bebé que mandámos fazer uma radiografia mas que estava um pouco aflito com falta de ar ainda não voltou e se o cirurgião vem do bloco de uma vez e nos atende o telefone, que temos uma menina que achamos que tem uma apendicite. Num daqueles dias em que juramos para nós mesmas que se o cirurgião nos tenta namoriscar com alguma daquelas piadinhas à empregado de mesa: "A menina tem defesa? E tem meio-campo e ataque também?" é desta que lhe damos uma resposta torta! Num daqueles dias em que não tivemos tempo para almoçar e só percebemos isso lá para as 17:00 quando demos por nós a embirrar sem razão com o choro dos bebés e nos obrigámos a fazer uma pausa depois do doente seguinte, antes que a situação se agudizasse...

E foi nestes preparos que chamei um menino de cinco anos e meio que há três horas esperava a sua vez de ser atendido. Motivo da vinda ao serviço de urgência: distensão abdominal há vários meses. Quinta vinda ao serviço de urgência pelo mesmo motivo. Respirei fundo. Controlei-me. O que tinha acontecido para vir precisamente hoje à "hora de ponta" ao serviço de urgência?
- Nada, doutora. É que ele não está melhor...
- Mas já falou com o seu médico?
- Não temos médico de família...
- Mas estou aqui a ver no sistema que já a enviaram a uma consulta de Gastroenterologia e que até faltou à consulta.
- Ó doutora, é que me mandaram porque me disseram que era para tratar da prisão de ventre, mas ele não tem prisão de ventre. Não ia lá fazer nada... Mas eu estou muito preocupada, por isso é que cá venho outra vez.

Comecei a hiperventilar... mas enfim... "quem diz a verdade não merece castigo", lá diz a minha mãe. Quem a referenciara à consulta não tinha conseguido transmitir segurança suficiente a esta mãe para a orientar. Tentei chamar a mim alguma paciência e mandei despir o menino.

(continua...)

[where are we gonna dance tonight?] nampula vs new york


I love New York but...
Mozambique is funnier anywhere you go!

sábado, 2 de abril de 2011

[a beleza é simples...] nampula vs new york


New York: o paradigma da mulher bela e produzida implica a aplicação com mestria de base, sombras, efeitos de luz, batom, gloss, lápis... uma trabalheira das antigas!
Nampula: a mulher bonita cobre a face com mussiro.

E está tudo dito, minhas amigas. Podíamos dizer que o efeito seria patético, mas é genial! A máscara de mussiro confere-lhes um ar etéreo e levemente enigmático. Assim como uma gueisha, mas em africana dançante e bem disposta*, e sem a conotação de mulher fácil. E pronto, é só seguir viagem, que o sucesso é garantido! Quem foi que disse "you're only as good as your make-up"? Ah... fui eu... Mas retiro o que disse. Como disse certa vez o Lépido, "nós não temos verdades absolutas, temos momentos!"

Bom fim-de-semana.

* Nota: Este blog é um fervoroso adepto da vírgula de Oxford.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

[the trail of two cities] nampula vs new york

"Nova Iorque é a Meca do turismo dos tempos modernos, com a vantagem de ninguém nos obrigar a andar de sandálias e a deixá-las à porta."
Fernando Bilé in Isto é Comédia
Já os encantos turísticos de Nampula são o facto de não ter turismo e ainda assim podermos usar sandálias o ano inteiro!
Beijo de Mulata

[a tale of two sports] zambézia vs new york


I love New York but...
Mozambique makes deeper sense!

Estive na meia maratona em Nova Iorque... Catorze mil pessoas a correr tentando "chegar primeiro", tentando superar-se ou superar nem que fosse apenas o companheiro incidental à sua esquerda. Catorze mil pessoas transformando o conceito saudável de exercício ao ar livre numa corrida insana numa selva de betão. Ruas fechadas ao trânsito, cobertura televisiva, patrocinadores, a inevitável causa humanitária, movimentação de pessoas, fundos e meios e o diabo a quatro (ou a sete, pronto, já tivemos algures esta conversa)...

Divertido, é certo! Muito divertido. Correr, dar duas voltas ao Central Park e acabar na Times Square no meio de galhofa, amigos e família é qualquer coisa de muito especial, mas enfim... algo nonsense também... Sobretudo porque um dia, na Zambézia, também de manhazinha, partimos ao romper do dia para uma caminhada até ao monte Gilé. Uma distância ainda maior a percorrer, um número de pessoas proporcionalmente também maior, o mesmo objectivo de chegar ao fim. Mas tão diferente...

Diferente no sentido em que o objectivo não era chegar primeiro, mas chegarmos juntos. Pouco a pouco. Sem pressas. Era isso que as pessoas iam cantando, animando-se pelo caminho "Vkhani-vakhani enrwaka!" [Pouco a pouco chegaremos todos!]. E a caminhada teve o seu ponto mais intenso na subida ao monte, morada por excelência de todos os antepassados, território sagrado, quase inviolável. Uma subida em silêncio depois de uma reza que cada um fez para si, reafirmando o seu respeito e temor aos antepassados. Subimos tão alto quanto era possível e aí nos juntámos, numa cerimónia de invocação colectiva para pedir a protecção dos antepassados e depois rezámos em conjunto. No final do dia estávamos todos um pouco mais ricos. Todos um pouco mais próximos. No final do dia podíamos olhar-nos uns aos outros nos olhos e reconhecer-nos porque tínhamos estado juntos, porque nos tínhamos animado e ajudado pelo caminho. No final do dia não sabíamos dizer qual tinha sido mais longa, se a caminhada do corpo, se a caminhada interior.

É a diferença entre um "quero chegar primeiro" e um "quero caminhar contigo"...