domingo, 28 de novembro de 2010

[publicidade institucional] beijo-de-mulata também é fada-do-lar

A Hora do Bolo... Zambeziano


Beijo-de-mulata, para além de ser igualmente maria-sem-vergonha e boa-noite (vide um post colocado aqui há atrasado), vai hoje começar os ensaios para se tornar numa dona de casa zambeziana exemplar. Desta feita, vem aqui ao mato para vos provar que é possível cozinhar as iguarias mais sofisticadas com os mais finos ingredientes da Zambézia.

O primeiro bolo chama-se, precisa e mui apropriadamente, beijo-de-mulata e será feito apenas com os mais genuínos ingredientes do Gilé (incluindo os adquiridos na Barraca do Sr. Pompisk - para ele, se nos estiver a ouvir, um grande abraço!).

Ingredientes para a Massa
- 400 g de farinha de mapira bem pilada e peneirada
- 1 colher de sopa de fermento em pó da barraca do Sr. Pompisk
- 7 colheres de sopa de açúcar ou 14 colheres de sopa de suco de cana-de-açúcar parcialmente evaporado
- 1 colher de sopa de manteiga do Sr. Pompisk
- 3 ovos das galinhas das Irmãs ou 1 ovo de pata do ourives do Gilé
- 1 colher de sobremesa de doce de manga das Irmãs
- 1/2 xícara de caju grosseiramente pilado
- 1 cálice de licor de amarula do Sr. Pompisk
- Óleo de amendoim qb (para fritura)

Calda de Chocolate
- 1 xícara de chocolate em pó do Sr. Pompisk
- 1 xícara de suco de cana-de-açúcar
- 1/4 de xícara de leite em pó
- 1 xícara de coco semi-fresco ralado
- Chá do Gurué qb 

Modo de Preparação
Peça ao cozinheiro para preparar o forno a lenha. Mantenha-o por ali para qualquer eventualidade mas dê-lhe uma tarefa fora da cozinha para ele não assistir à balbúrdia que se segue...

Para a massa: Num pote de barro artesanal coloque a farinha de mapira bem pilada e peneirada (reserve um pouco), o suco de cana, o fermento, a manteiga à temperatura ambiente (desde que não estejam mais de 40 ºC dentro de casa, obviamente), os ovos de galinha ou o ovo de pata levemente batido(s),o licor de amarula, o doce de manga e o caju grosseiramente pilado. Misture com uma espátula fabricada pelo Sr. Ernesto do Bairro Malema (são as melhores!). A seguir mexa com as mãos, bem lavadas em água potável (neste momento utilize a farinha reservada).

Para a calda: Numa panela coloque suco de cana de açúcar, o chocolate e o leite em pó reconstituído com chá do Gurué. Misture até desmanchar o chocolate e reserve.

Enrole bolinhas na palma das mãos (volto a insistir na necessidade de ter lavado as mãos em água potável) e frite em óleo de amendoim não muito quente. Retire e escorra. Em seguida passe pela calda de chocolate e pelo coco ralado e escorra.

Agradeça ao cozinheiro, ofereça-lhe alguns beijos-de-mulata e dispense-o. Aproveite o calor do forno para aquecer água para o banho.

Os beijos-de-mulata duram vários dias em pote fechado, o que é uma grande vantagem, uma vez que no Gilé não se pode confiar no frigorífico... Sabem, é que os desmandos de Cahora Bassa são mais que muitos nesta altura do ano...

(Nota, este bolo foi concebido para ser saboreado ao som da noite zambeziana, mas a banda sonora pode ser adaptada em Lisboa: Caetano Veloso, Magnetic Fields, Marrabenta... Sky is the limit!)

[eu hoje acordei assim] there's no one meaner...


Esta manhã só me apeteceu cantar a frase genial de Terry Jones nesta ópera (sim, esse mesmo, o senhor dos Monty Python escreveu uma ópera: Evil Machines. Com uma história improvável, é certo, mas ainda assim uma ópera contemporânea genial... musicada em Portugal pelo nosso querido Luís Tinoco):
- There's no one meaner... than a vacuum cleaner! (01:54)

Ou melhor, apeteceu-me foi fazer explodir o aspirador juntamente com a vizinha de cima, o que me tornaria definitivamente numa diva operática contemporânea, ao transpôr para a vida do condomínio o que acaba por acontecer em palco...

[advento] improbabilidades

The gospel is simply a catalogue of unexpected things. It’s not to be expected that an ox and an ass should worship at the crib. Animals are always doing the oddest things in the lives of the saints. It’s all part of the poetry, the Alice-in-Wonderland side, of religion.
Lady Marchmain in Brideshead Revisited

[vozes amadurecidas] incondicionalidades


Natureza morta com medicamentos para a lepra, telemóvel, buganvília, vacinas do kit da Unicef e balança suspensa.
(Palhota-Posto de Saúde, Moneia, Zambézia)

Quando regressei de Moçambique, a mãe de um menino perguntou-me como tinha sido e se tinha gostado da estadia. Apesar de ter ido no verão, a altura do ano em que os meninos estão menos doentes e apesar de ter pedido a uma colega para me ficar a substituir, foram muitas as mães que me telefonaram para o fim do mundo por pequenas intercorrências porque, segundo elas, precisavam de ouvir a minha voz para se tranquilizarem. Não foi fácil, disseram algumas: saber-me longe, sem poder acudir aos seus meninos se fosse necessário.

Quanto a mim, atendi sempre o telefone. Talvez pudesse não o ter feito, mas sei que tenho responsabilidades. Não gosto de alimentar dependências, mas também não sei fazer psicoterapia e mudar personalidades. E como autonomizar quem ainda não tem auto-confiança e está a dar os primeiros passos juntamente com os filhos? E quem sou eu para dizer que é patológico querer falar com alguém que se conhece e em quem se tem confiança quando se tem um problema? De qualquer modo também não tinha ido para fugir de nada nem de ninguém. Tinha ido porque sentia que rebentava de saudades. Não fazia sentido deixar nada para trás.

Mas, roaming à parte, para mim também não foi fácil atender o telefone... Num hospital no meio do mato onde há crianças desnutridas e com doenças gravíssimas, onde morre gente todos os dias, onde faltam recursos humanos e humanidades, onde faltam medicamentos, material e boas-vontades, não é totalmente imediato  responder às angústias de uma mãe de forma empática quando o drama é que tossiu durante a noite e tem o nariz entupido. É violento atender o telefone e entrar de repente em "modo de civilização" quando se está a milhares de quilómetros a lutar com todas as nossas forças para fazer alguma coisa em "modo de fim-do-mundo".

E perguntava-me essa mãe se não tinha sido forte demais para mim assistir, tantas vezes impotente, à miséria das pessoas... Ao que respondi que certamente tinha tido alguns dias maus. E um ou dois dias horríveis também. Mas que o resto compensava. Sobretudo o exemplo de amor incondicional dos Macuas pela família. E que chegava a ser comovente a forma como aquele povo cuidava dos seus filhos e os protegia. Que famílias inteiras eram capazes de percorrer mais de 100 km a pé para levar uma criança doente ao hospital e ficavam por lá durante o tempo que fosse necessário enquanto durasse o tratamento, arriscando-se a perder toda a colheita desse ano por falta de trabalho no campo. Que mesmo que tivessem oito, dez filhos sofriam e dedicavam-se da mesma maneira. E contei-lhe que os Macuas, quando queriam ver se uma pessoa merecia a sua confiança, mandavam sempre primeiro uma criança ter com ela e, dependendo da forma como tratava a criança, assim concluiam se era alguém que merecia ou não o seu respeito. Que era um povo muito místico, muito alegre e muito afável...

A mãe olhava para mim, meia embevecida, meia incrédula, enquanto eu falava com o brilho no olhar que me caracteriza quando falo deste povo e deste país que me encanta. Não costumo falar disto com os doentes e era a primeira vez que falava sobre Moçambique com ela, mas depois destas frases respondeu-me:
- A Doutora não consegue mesmo ver o lado da miséria e da pobreza, pois não? É como se estivesse perdidamente apaixonada...

E é verdade. É mesmo verdade. Estou irremediavelmente apaixonada. Não é que não veja o lado da pobreza e da miséria. Eu vejo. Como vejo... E sofro com ele. Mas é como se esse lado quase não tivesse impacto em mim. 

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

[estados de espírito] censura e castração

Do rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem.
Bertolt Brecht.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

[as melhores do serviço de urgência] pequenas vocações

Ontem no Serviço de Urgência, surpreendentemente calmo apesar da greve, estava a ver-me e desejar-me para acalmar um bebé de 6 meses para ver se o conseguia auscultar. Nem ao colo da mãe se acalmava, nem com chucha ou com Aero-OM, nem com a minha canção da História da Gaivota, que aprendi com os senhores da Música nos Hospitais e que habitualmente acalma mesmo a mais miserável das pequenas criaturas...
- Mas, mãe, não costuma haver nada que acalme o bebé?
- [Um pouco envergonhada] Sim, Doutora, ele costuma acalmar-se quando lhe canto... a tabuada!

[welcome to mozambique] a capulana

Mulheres regressando do rio.
(Gilé, Zambézia)

Tu nunca a viste sem a capulana,
porque a capulana é parte dela.
A capulana de minha mãe é minha capulana.
Também, quando eu era pequenina,
foi o meu berço de menina
nas costas da minha mãe.
É dom de toda a família,
é transporte de mobília.
É enfeite em casa de rico.
A capulana de minha mãe
serve de graça a qualquer
e aceita ser emprestada
a qualquer outra mulher.
Pode servir de tapete
e ser pisada, ser joguete
sem se queixar de ninguém.
É querida se está doente,
nas festas é um presente,
enxuga a fronte a quem chora,
e é contente a toda a hora.
Faz-se toalha de mesa,
faz-se toalha de rosto,
faz-se toalha de altar.
Limpa a baba do menino,
na morte é a nossa mortalha.
A capulana da minha mãe!
Tudo cabe dentro dela,
e nela tudo se agasalha.
Quem tem coração generoso,
jamais a recusou.
Quem a louvou algum dia?
Quem dela se recordou?
A capulana da minha mãe
é como o seu coração,
nasceu para nunca dizer não!

(Poema popular moçambicano)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

[as melhores do serviço de urgência] humor homeopático



Muito obrigada ao Vítor, meu correspondente no Chimoio! Que a dor no peito lhe passe rapidamente e sobretudo que tenha sido só um susto. Sim, que para dores no peito já bastam as minhas...

[a minha vida dava um filme cigano] os doentes devem estar loucos

Esta tarde na consulta com um adolescente cigano e a sua família (felizmente apenas os pais e dois irmãos mais novos):
- Então, Mário, como é que tens passado das tuas alergias e das faltas de ar?
- [Com um ar de enfado] Estou naaa mesma!
- Na mesma?
- [Com o mesmo ar de que aquilo era uma seca que não tinha nada a ver com ele] Sim, naaa mesma!
- É mesmo verdade, mãe?
- [Com uma cara igualzinha à do filho] Sim, Sotôra, ele está na mesma, teve melhoras nenhumas desde que cá veio...
- Mas fez bem a medicação que eu lhe passei?
- Não, Sotôra, ele não tomou nada!

(Is it just me or...)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

[instantes] uma galinha para a senhoras doutoras


A tia da Margarida, uma menina que nos ficou no coração e a quem fomos visitar depois da alta do hospital... Insistia para que levássemos a galinha gorda (viva, obviamente!) como agradecimento por tudo quanto tínhamos feito pela sobrinha... Mas como aceitar quando sabemos que as famílias passam fome tantas vezes e uma galinha é preciosa na economia doméstica?

Acabámos por aceitar mesmo assim, ou melhor, acabei eu, sob o olhar furibundo da R., porque vislumbrámos o seu olhar de desapontamento quando fizemos menção de recusar. Porque de repente sentimos o calor da terra nos nossos pés, a força do olhar a direito desta mulher com uma lágrima a querer despontar e percebemos que a nossa recusa seria uma humilhação para a família... Não há como o povo macua para nos fazer compreender que ninguém é tão pobre que não possa dar alguma coisa e ninguém é tão rico que não possa receber...

O problema foi depois levar no carro a galinha gorda e rebelde, com a mania que fazia solos operáticos e com uma sede insaciável de voar, de dar bicadas e distribuir penas pelo ar... e mais não digo, que já devem estar a calcular o estado em que ficou a minha blusa... mas pronto, ou era a minha blusa ou os estofos do carro!

(Gilé, Zambézia)

sábado, 20 de novembro de 2010

[instantes] hair styling no gilé


Imagens normalíssimas do dia-a-dia no mato... nunca seria o facto de ter colocado rolos no cabelo que iria impedir uma senhora respeitável, mãe de família, camponesa de mão cheia e mulher do dono de uma barraca no mercado, de sair à rua... Pois se até tinha sido na rua que os colocara... No fim do mundo tudo é admissível. Gestos que uma mulher cosmopolita nunca faria fora do recato do seu lar vêm tranquilamente saborear a frescura do fim da tarde e partilhar da luz do dia...
(Gilé, Zambézia)

[as melhores do serviço de urgência] improbabilidades

Aconteceu na semana passada. Exactamente assim, sem tirar nem pôr. À excepção de dois ou três pormenores, como é óbvio. E depois descobri que isto também já tinha acontecido ao próprio Dr. House...

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

[vozes brancas* #31] yes we can!

Esta tarde, no final da consulta de um menino de 24 meses mandei-o fazer o exercício de arrumar os brinquedos nas caixas, prova que ele superou brilhantemente em menos de um minuto e terminou com um entusiástico "Sim, conseguimos!"

Pergunto aos pais, em tom de brincadeira:
- Então ele já anda a ouvir os discursos políticos do Obama?
- Não, esta é uma frase do Bob, o Construtor!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

[alhos e blogalhos] pode alguém falar com uma flor?

Meus queridos amigos, até hoje e por uma questão de coerência este blog sempre se manteve mato. Mato mesmo. Obstinadamente incontactável. Se lá no mato que eu amo não havia rede nem mail, aqui também não houvera de haver, dizia eu. Ou bem... minto. Obviamente minto. Com quantos dentes tenho. Claro que não foi por uma questão de coerência. Foi por comodismo. E também porque ia sempre dizendo de mim para mim que não havia necessidade. Ninguém haveria de querer falar comigo. E desta feita fui sempre ignorando alegremente as reclamações que foram chegando sob diversas formas e meios, vindas de quem se dá ao trabalho de vir aqui ao fim da blogosfera para conhecer, ver, sentir ou matar saudades de Moçambique...

Mas eis que esta madrugada recebo uma reclamação daquele senhor-que-afinal-não-residia-na-África-do-Sul e que me fez uma surpresa aqui há tempos... Não foi bem uma reclamação, vá, mas ainda assim mencionava o facto de eu não ter um endereço electrónico. E a este senhor, que me proporcionou um momento bloguístico absolutamente hilariante, eu não podia dizer que não, podia? Só não revelo a identidade (mas posso dizer que afinal era mesmo um homem) porque não tenho a certeza se ele o aprovaria.

Pronto, tudo para dizer que foi por isto que criei um endereço electrónico que está ali mesmo no fundo, junto ao mapa dos sítios por onde vai crescendo, pior que erva daninha, o beijo-de-mulata.

mulatadobeijo@gmail.com é agora o mail para onde podem escrever se vos fizer sentido falar com uma flor selvagem...

[estados de espírito] o sono e a sesta

A sesta devia ser uma Instituição! Assim mesmo com I grande, que as instituições maiúsculas devem ter letras grandes. E só não digo garrafais que porque não gosto da palavra. Pessoalmente acho que a sesta devia ser tornada tão instituição como a siesta no país de nuestros hermanos. E não me venham dizer que ninguém merece ser institucionalizado, que hoje não estou para trocadilhos à Groucho Marx...

Mas se me permitissem ainda uma extravagância, acho que a sesta em Portugal devia ser uma instituição assim mais à portuguesa, mais user friendly, passe o anglicismo e o pleonasmo (mas, de resto, também os anglicismos e os pleonasmos são portugueses como só eles...): num Portugal perfeito, a sesta seria uma instituição sem muitas regras e sobretudo sem horas para entrar... Mas não. Não vivemos num Portugal perfeito. Neste momento, por exemplo, podia estar a dormir a sesta e não tive sequer uma noite de sono como deve ser...

Pronto. Era só isto. Ide trabalhar que eu ainda vou ali tentar dormir um bocadinho.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

[instantes] hair styling no gilé


Ao fim da tarde, as mães descansavam do dia extenuante na machamba, trançando os cabelos das filhas, num gesto interminável de carinho, repetido um pouco por todas as ruas, por todos os pátios, por todas as casas...
(Gilé, Zambézia)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

[vozes brancas*] os meninos do adeus


Alegre, espontânea e divertida como o fenómeno do Saldanha em Lisboa era a imagem do adeus dos meninos por quem passávamos, que nos saudavam com um "Tataaaaá" e que invariavelmente faziam uma festa da nossa rara passagem à sua porta...
(Gurué, Zambézia)

* Voz branca - timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

[home is where your heart is] ...but what if home doesn't exist anymore?


Gilé, Zambézia

Há poucos dias as palavras desta grande senhora da Zambézia tocaram-me profundamente:
Muitos amigos meus perguntam-me por que nunca mais voltei a Quelimane, a Moçambique, depois de ter criado um blog para recordar a minha terra, homenageá-la e lembrar os anos mais felizes da minha vida… Parece-lhes que é um sofrimento que alimento por querer, com medo de encontrar fantasmas escondidos nas dobras do passado... É difícil explicar as razões, talvez até nem encontrasse as palavras adequadas… Seria um regresso solitário a um cenário onde já faltam tantos intervenientes! E se calhar, o cenário até já nem seria o mesmo…
Ao ler o prefácio do livro “ Postais Antigos e outras Memórias da Zambézia” achei que ele (...) encontrara as razões do coração: "(...) Envolto pelos sons mágicos da noite africana, no solitário quarto do Hotel Chuabo, fui acometido da estranha sensação de que eu já ali não pertencia. Que eu era um actor deslocado, num cenário familiar, onde a peça em cena me era estranha. Mas pouco a pouco, compreendi que ninguém poderia acrescentar ou diminuir personalidade àquela cidade, onde o asiático, o europeu e o genuinamente africano se fundem num singular equilíbrio. (...)"
O meu primeiro impulso foi responder-lhe de imediato que não havia que temer. Eu já conheci a Zambézia depois da Independência, depois da guerra civil, depois da desminagem, depois de a paz ter vindo para ficar... Muito depois dos tempos áureos. E ainda assim a verdade é que, em qualquer circunstância, África fica, África chama. África inflama! É lugar-comum nestas ocasiões falar-se romanticamente em feitiço ou em qualquer outra coisa, de racional ou irracional, equivalente a feitiço. E eu, que sou uma rapariga remediada, sem quaisquer aspirações ao Nobel ou ao Prémio-Camões-pela-obra-de-uma-vida, não tenho a menor pretensão de fugir a lugares-comuns. Aliás, acredito piamente que foi o que aconteceu comigo...

A paixão é algo de mágico, fatal e inevitável. E, Graça, aquilo que a apaixonou há trinta anos atrás, as pessoas, a cultura, a língua, a paisagem, o cheiro largo a espaço aberto, o Índico, o pôr-do-sol, os embondeiros, as danças, a liberdade... tudo permanece igual, tenho a certeza. Não acredite naquela frase batida de "nunca voltes a um lugar onde já foste feliz!" Eu, pelo menos, acredito que é possível.

Mas aí comecei a pensar... e tive um arrepio. Do mesmo modo, se daqui a vinte anos o meu Gilé fosse uma cidade desenvolvida, se daqui a vinte anos o meu Gilé tivesse, desgraçadamente, crescido sem mim e já lá não vivesse ninguém que eu tivesse conhecido, se nada restasse das casas onde fui feliz, se já não pudesse voltar a trabalhar no hospital com as crianças que sempre me deixam rendida, eu talvez tivesse medo de não encontrar o meu espaço quando fosse de novo visitá-lo. E provavelmente também teria medo de não reencontrar felicidade no regresso... Oh, please, don't let me grow without Africa!

Mas há histórias de reencontro... Lindíssimas. Não sei é se as vou conseguir contar em segunda mão...

domingo, 14 de novembro de 2010

[voluntariado em moçambique] o mukulukhana

Bicicleta, a minha fortuna....
(Gurué, Zambézia)


(continuação deste post)

O nosso amigo ficou como voluntário na Missão de Murrupula durante dois anos e, nesse tempo, emagreceu, apanhou malárias atrás de malárias, maleitas atrás de maleitas, apanhou até matacanha (tungíase, para os médicos e curiosos da Medicina em geral) porque se recusava a andar de sapatos fechados quando o povo andava tantas vezes descalço, deixou crescer a barba, aprendeu a falar macua, quase que se tornou africano. Aprendeu a fazer de tudo um pouco. Fez de tudo um pouco. Dedicou-se a todos os que lhe pediram ajuda. E dedicou-se, sobretudo, ao tratamento da lepra no distrito. E sim, há lepra em Nampula! E há ainda muita lepra em Moçambique, embora o governo não o admita...

O método base de trabalho era o mesmo que o nosso: formou activistas locais em todo o distrito para falarem sobre a lepra às pessoas. Os activistas faziam palestras nas igrejas, nos mercados, nas mesquitas, nas reuniões dos régulos das aldeias. Eram 35 os voluntários escolhidos a dedo, todos pessoas respeitadas nas aldeias, que se comprometeram com a missão de fazer passar publicamente duas mensagens simples e básicas sobre a doença: que a lepra tem cura e que se for tratada a tempo não traz complicações. Alguns eram também socorristas nas aldeias, outros filhos ou familiares de leprosos, que tinham visto a família sofrer com a discriminação e o estigma da doença. Como contrapartida... oferecia-lhes uma bicicleta. E, meus amigos, não sorriam. Quem já lá esteve sabe que, no mato em Moçambique, quem tem uma bicicleta é um homem rico. Quem tem uma bicicleta pode transportar fardos pesados, deslocar-se para ir comprar os bens de primeira necessidade que não existem nas aldeias, levar a família ao hospital numa emergência, ir vender os produtos do cultivo das terras ao mercado... Uma bicicleta é um bem precioso!

Os activistas locais tinham também a missão de marcar uma data e um local onde as pessoas que tivessem sinais de lepra pudessem comparecer para serem observadas por ele e pelo enfermeiro Rajá, responsável pelo Programa de Combate à Lepra. Eram estas "concentrações" de doentes de lepra que ocupavam a maior parte dos dias do nosso amigo e que o faziam desdobrar-se com uma imaginação surpreendente.

Para anunciar as concentrações teve a ideia de ajudar a promover o projecto de rádio local que se estava a iniciar e pagava para que, três vezes por dia, as datas e locais fossem publicitados, juntamente com as frases-chave da mensagem dos voluntários.

E foi assim que o nosso amigo se tornou no primeiro mecenas da Murrupula FM. Só que os locutores achavam que as frases eram assim... eeer... como poderiam dizê-lo sem ofender o "patrão"? Sensaboronas... Não tinham sal. Não tinham música. Não ficavam no ouvido por mais que as tentassem dizer de forma enfática... Aliás, os macuas são conhecidos, entre outras coisas, pela sua sensibilidade musical e pelos seus dotes vocais. E aquelas palavras feriam-nos. Mas abraçaram o projecto, agarraram a mensagem e, ao terceiro dia, os locutores já tinham, espontaneamente, alterado a estrutura das frases, dando-lhes uma cor mais africana, tinham pegado na música das palavras e cantavam-nas alegremente. Na segunda semana já tinham inventado uma segunda voz, que acrescentava à música uma profundidade e uma intensidade diferentes. E daí até introduzirem o som dos batuques e o alarido das mulheres foi um pulinho, que acabou por dar à música um ar festivo, anunciando as concentrações como autênticos eventos populares! O resultado foi um autêntico hit que andava na boca de toda a gente. A lepra passou a ser assunto de conversa e palavra repetida e cantada, quando antes era apenas motivo de nojo, tabu e ostracismo!

(continua)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

[vozes brancas* #30] piquenique

Durante as férias de verão, uma amiga minha levou a família para um passeio pelas aldeias históricas da Beira Alta. Uma viagem encantadora, cheia de peripécias, montanhas e morros e castelos para os filhos treparem, sonharem com assaltos violentos, defesas heróicas, reis e vilões, polícias e ladrões, que aos quatro anos, tudo se resume a bons e maus e os bons são polícias e os maus são ladrões e não se fala mais nisso, que a vida é simples e estamos de férias...

Uma tarde, depois de subirem ao castelo de Sortelha, a mãe disse ao mais novo, de quatro anos:
- Vamos ali primeiro visitar a igreja e depois vamos fazer um piquenique assim que encontrarmos um sítio bom.
- Está bem, mãe.

Estavam a visitar a igreja, quando vê o filho aproximar-se com muito interesse do altar, inspeccionando o local em redor e colocando-se em bicos de pés para ver que mais, para além do Santíssimo, estaria sobre a mesa...
- O que é que estás a ver, filho?
- Mãe, aqui é que era um sítio bom para fazermos o piquenique. Esta mesa é grande e tem toalha e tudo!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

[improbabilidades] nomes que dizem tudo

Uma manhã no Gilé, durante a consulta de urgência no hospital, a R. ouviu o técnico sentado ao seu lado suster o riso a custo antes de chamar um menino...
- "Ainda Cardoso" - chamou com um sorriso.
- Presente! - responderam os pais.
- Quem foi que deu o nome ao menino?
- Fui eu... - respondeu o pai - Ele demorava para nascer. Toda a gente perguntava: "Já nasceu?" e nós respondia: "Ainda..."

[tive gémeos] ...e sobrevivemos todos!

As gémeas Felismina e Felisbela, ambas com malária, mas a mamar como se não fosse nada com elas e como se não houvesse amanhã... Aliás, de qualquer modo, em África amanhã não existe!
(Gilé, Zambézia)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

[está melhor, tia p.?] ainda...





Poema da Despedida


Não saberei nunca
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer
Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos.

Mia Couto

(Já voltei há um mês e ainda me dói o peito... Só me apetece chorar... Tenho saudades...)

domingo, 7 de novembro de 2010

[voluntariado em moçambique] o mukulukhana


A missão de Murrupula.
(Nampula, Moçambique)

Em 2006, na mesma altura em que eu estava em Nampula com a minha amiga A., havia um outro voluntário da mesma ONG que estava a trabalhar numa missão próxima da nossa, em Murrupula. Bem, próxima é uma maneira de dizer… era mais ou menos a 100 km de distância, ou seja, como estávamos na estação das chuvas, ficava a umas duas horas de viagem, parcialmente em picada, à velocidade suicida de 30 km/h. Mas valia bem a pena a viagem para o ir visitar porque esse nosso amigo era uma pessoa tão desconcertante quanto fantástica! Antes de partir para Moçambique em voluntariado tinha sido servente de pedreiro, jardineiro, carpinteiro e actor, emprestando dignidade a todas estas profissões.

Era um jovem simples e com um coração enorme, onde tentava a todo o custo que coubessem os pobres e os doentes por quem passava… um homem absolutamente desapossado, despojado, desamarrado… De tal maneira despojado que um dia viu quase barrada a sua entrada nos Estados Unidos quando resolveu ir visitar Nova Iorque de calções, chinelos, t-shirt e sem bagagem de porão, apenas com duas mudas de roupa interior na mochila e um creme de barbear meio vazio – para não ter mais de 50 mL e poder passar no controlo de raios-x. Não levava lâmina de barbear porque era proibido levar lâminas de barbear na bagagem de cabine. E também porque não tencionava fazer a barba. Aliás, o próprio creme de barbear tinha viajado para os Estados Unidos por engano, erroneamente tomado por gel de duche na madrugada remelosa da véspera...

Não sei o que é que os senhores dos serviços de imigração “teerão” pensado… Que estariam perante um homem que se preparava para praticar terrorismo em Nova Iorque? Mendicismo? Banditismo? Nudismo? E no meio da inusitada escassez de conteúdo de uma mochila, até um inocente e renegado creme de barbear meio vazio pode adquirir contornos suspeitos. Tanto mais que o nosso amigo na altura usava uma barba de eremita. “Planeia fazer a barba em Nova Iorque?”, perguntaram-lhe. Ao que ele respondeu que por acaso não, não planeava. Só se fosse necessário, acrescentou a medo, não fosse existir uma cláusula nas leis da imigração que impedisse os estrangeiros de entrar nos Estados Unidos com a barba comprida. Como os senhores lhe franzissem o sobrolho, explicou que se enganara e levara o creme de barbear em vez do gel de duche…

Esteve a um passo de não poder entrar no país. Salvou-o o facto de ter um cartão de crédito válido, um historial limpo nas visitas anteriores ao país, uma estadia já paga num hotel… e, acredito piamente, aquele olhar a direito, transparente e franco que o caracteriza... Bem, acho que já devem estar a visualizar a personalidade do nosso amigo.

(continua, prometo!)

[a céu aberto] uma balança da unicef

A mesma vendedora de tomate pesando a sua mercadoria numa balança da Unicef (!)
(Maputo, Moçambique)

sábado, 6 de novembro de 2010

[instantes] a força que um sorriso pode ter!

A vendedora de tomate num mercado em Maputo.

[como chocar uma mãe às 4 da madrugada] urgências

Comentar que a que a sua princesa bebé tem um "sinalzinho todo sexy" na barriguinha e depois responder à pergunta "Mas é um sinal normal, não é?" explicando que "o sinalzinho todo sexy na barriguinha da princesa" se trata afinal de um mamilo acessório que não regrediu durante o desenvolvimento embrionário... Há horas em que o meu pequeno neurónio desliga o filtro de spam... 

[instantes] as danças do fim do mundo

As nossas meninas a ensaiar debaixo da mangueira para o teatro que apresentariam nessa noite. Um mês depois ainda me doem no peito as saudades...
(Gilé, Zambézia)

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

[consultório beijo-de-mulata] alterações climáticas

Desabafo de uma amiga minha que se dá mal com as mudanças de temperatura:
Esta indecisão entre o aquecimento global e a chegada de uma nova era glaciar está a deixar o meu sistema imunitário louco...
Resposta beijo-de-mulata: Minha querida amiga, é fantástico pensar à escala global! Admiro profundamente as pessoas que conseguem colocar o seu dia-a-dia numa perspectiva planetária. Já eu, que sou loira de neurónio único, só consigo pensar numa dimensão humana... e dizer que se calhar tens uma rinite... Mas isso tem a modesta vantagem de, em vez de te aconselhar o Protocolo de Quioto, quase impossível de cumprir e que, na melhor das hipóteses, só terá efeitos daqui a cem anos, te prescrever antes um anti-histamínico e, em calhando, amanhã estás boa...

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

[momentos] à beira do rio molócuè

Uma mamã com o filho nas costas tenta recuperar o seu precioso bidão de água que se lhe escapou no rio... Apesar de já existirem fontanários de água potável no Gilé, essa água é cara e as pessoas não se conseguem dar ao luxo de a utilizar para outros fins que não para beber. A água para cozinhar (que vai ser fervida), para lavar a roupa e tomar banho vem toda do rio... um rio onde eu não entraria sequer para molhar os pés porque, para além do perigo dos crocodilos, está infestado de doenças...
(Gilé, Zambézia)

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

[instantes] a força que um sorriso pode ter!

Mamã Teresa no dia da celebração dos Acordos de Lusaka.
(Gilé, Zambézia)

[vozes brancas* #29] no melhor pano cai a nódoa...

Na consulta com uma princesa de dois anos e oito meses, ex-prematura, com um desenvolvimento fantástico:

 Mãe - Matilde, diga lá à Doutora, qual é a música que a menina mais gosta de ouvir?
Matilde - É o Chopin.
Eu - Ai que linda, meu amor! E o que é que ele toca?
Matilde - Toca piano!
Eu - Ah, muito bem... E que mais é que a menina gosta de ouvir?
Matilde - A Ca'ochinha e o Noddy!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[e porque a vida é simples] e os aniversários nunca nos pegam de surpresa

Hoje o mentor espiritual desta blogger loira faz anos (não, não é o dos soluços, que esse é o mentor espiritual da mulata e raramente vem aqui ao mato). Há anos que não o vejo, mas hoje é dia de lhe agradecer por ter entrado na minha vida com uma frase hilariante sobre a Guerra Civil de Espanha na Rua do Alecrim. De lhe agradecer por me ter proporcionado os momentos mais divertidos da minha adolescência, por me ter feito perceber que o mundo afinal não terminava a doze centímetros da segunda circular e por me ter ensinado que o humor é a melhor defesa da personalidade. Ah... e por existir. Gosto mesmo de ti. E tenho saudades, caramba!

E por vezes as noites duram meses

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

terça-feira, 2 de novembro de 2010

[alhos e blogalhos] consultório beijo-de-mulata

Os apaixonados por África e os que até acham piada às peripécias das crianças da minha consulta que me perdoem esta incursão em terrenos tão estranhos à temática principal deste blog, mas a verdade é que se me parte o coração de ver chegar aqui ao mato tanta gente angustiada com uma questão que, pelo menos para elas, é pertinente e sair daqui cabisbaixa, sem um sim, sem um sopas, sem uma pista de qualquer tipo... O que se passa é muito simples, meus amigos... o que se passa é que desde o dia em que resolvi postar esta história, que vem gente diariamente de todas as partes do mundo com a seguinte angústia, com mais ou menos variações:
- Vou sair com um cara, acho que ele vai me beijar. Uso prótese dentária.
Enfim, custa-me, pronto... Eu sei que nunca me propus fazer serviço público neste blog, eu sei que quem vem aqui vem à sua própria responsabilidade e que nunca prometi nada a ninguém, mas mesmo assim custa-me, o que é que querem? Até porque eu sei a resposta. E a resposta é óbvia: Ninguém beija com os dentes, pessoal! Sosseguem. Peguem na placa, fixem-na com um produto para fixar placas às gengivas e deixem-se levar. Tranquilamente. Não se passa nada. Não sofram. Vai tudo correr bem. Mas, sobretudo, estejam preparadas para tudo. Com descontracção e bom-humor a peripécia mais embaraçosa se pode tornar numa piada privada e ajudar a criar laços. E, quem sabe, talvez até descubram primeiro que "o cara que acham que as vai beijar" também usa, ele próprio, prótese dentária...

Pronto. Era só isto. A emissão seguirá dentro de momentos.